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O BELO IDEAL ALHEIO E A EXUMAÇÃO DE FRANCESCO CENC

2.2 A gênese de Don Juan: um ideal romântico

Apesar de muito ter pensado sobre a figura de Don Juan, Stendhal não se preocupou em sistematizar suas ideias em um único estudo teórico, deixando-as dispersas em correspondências, diários, romances e novelas. E nessa nebulosa literária é que se encontra a maior dificuldade desse estudo e, por consequência, sua "originalidade". Contudo, no que diz respeito à origem e às linhas gerais do mito, contamos com uma espécie de prefácio à crônica Les Cenci (1837) em que o autor, em poucas páginas, de fato desejou resumir seu pensamento.

Assim, antes de partir à reflexão e ao entendimento dos modelos de Don Juan "condenados" ou "exaltados" pelo autor, cerne da presente pesquisa, uma breve introdução

289 Id., Préface aux Chroniques Italiennes. In: REN II, p. 559. 290 HPI, p. 285.

291 DA, p.135. 292 CI, p. .192.

293 Don Juan, Romeu e Julieta, a Virgem Maria, Tristão e Isolda, entre outras figuras, diz Renato Mezan, fariam parte da constelação de heróis a que Stendhal sub-repticiamente recorreria na composição de seus heróis. MEZAN, Renato. A sombra de Don Juan e outros ensaios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, p. 205.

acerca da gênese e das particularidades do mito na visão do autor urge.

A dois motivos complementares atribui Stendhal o nascimento de Don Juan. O primeiro e maior deles foi, sem dúvida, o Cristianismo. Vejamos o porquê.

Repara o autor294 que a religião cristã, longe de se afastar de uma espécie de

galanteria, dela teria hipocritamente se utilizado. Isso porque, ao pregar a igualdade e irmandade entre as almas, conseguiu seduzir homens de todas as classes, desde camponeses até cortesões. Em especial nos períodos de guerras e pestes, quando, com um discurso aterrorizador que justificava a morte e a vida como resultados do juízo de um Deus que bem enxergava o Bem e o Mal, trouxe conforto e respostas à miséria humana.

Aproveitando-se desse poder que apelava às memórias mais íntimas do ser, a Igreja, então, criaria seus próprios dogmas e liturgias. A honestidade, por exemplo, recorda-nos Ian Watt295, deixaria de ser uma qualidade requerida dentro do clã e da família para se tornar

conduta moral obrigatória e universal. Da mesma forma, as paixões e os prazeres dos sentidos deixariam de ser uma prática comum para se tornarem uma prática reprovável e individualista, ínfima se comparada com a pura e generosa bondade de Cristo. O mundo das coisas sagradas, diz Bataille296, passaria, desde então, a compreender duas categorias, a do

puro, efetivamente sacro, e a do impuro, profano, pecaminoso, transgressor. O erotismo, essencial nas religiões primitivas, torna-se parte desta segunda categoria, perde seu caráter sagrado, identifica-se ao mundo das trevas. Como bem resume Guy Vogelweith297, o

Cristianismo viria, assim, recusar a mística do "eu".

Seguindo a mesma linha de pensamento de Stendhal, Søren Kierkegaard, seis anos após o francês298, esclareceria essa dinâmica entre prazer e religiosidade. De acordo com o

filósofo299, o Cristianismo, como espírito, princípio positivo no mundo, negaria a

294 CI, p. 188.

295 WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Tradução Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 109.

296 BATAILLE, Georges. Erotism. New York: City Lights Books, 1962, p. 121.

297 VOGELWEITH, Guy. "Don Juan e Narciso" In: MACHADO, Álvaro Manuel (Org.). O mito de Don

Juan. Lisboa: Vega, 1988, p. 68.

298 KIERKEGAARD, Søren. Los estadios eroticos inmediatos o lo erotico musical. Tradução Javier Armada. Buenos Aires: Aguilar, 1977.

sensualidade. Mas excluindo-o é que o afirmaria como princípio, como força, pois que o espírito só poderia negar algo que se mostrasse também como princípio, ainda que isso apenas se desse no momento mesmo da exclusão. Assim, embora a sensualidade já estivesse antes no mundo, apenas com a religião cristã ela seria definida como categoria espiritual300.

Com efeito, nota o filósofo, a sensualidade nos povos antigos pagãos era algo psíquico, era parte essencial da individualidade. O amor estava em todos os lugares, e o prazer estava em harmonia com a religião301. É o que Stendhal já havia percebido quando

dissera que "tous les grands hommes grecs étaient libertins; cette passion dans un homme indique l'énergie, qualité sine qua non genius."302

A respeito disso, acrescenta ainda Ian Watt303 o fato de que mesmo nos tempos de

David, que se tornaria figura importantíssima para o Cristianismo304, qualquer obstáculo à

posse da mulher desejada era prontamente descartado, valendo apenas como lei a satisfação pessoal. Daí a certeza de Stendhal ao dizer305 que Don Juan seria um efeito sem causa na

antiguidade, quando a religião pregava o prazer e só era banido aquilo que pudesse prejudicar a pátria, o bem comum. Ninguém, lembra o autor com ironia, enxergava qualquer merecimento em sofrer. Essa tese do sofrimento enquanto superioridade e felicidade abstrata só viria, de fato, após Jesus Cristo.

Do exposto podemos concluir que Don Juan era excluído e excluía-se de uma moral

300 Da mesma forma nota Bataille que o erotismo, na verdade, não simplesmente se torna profano, mas aparece como um anjo caído, excluído do mundo sagrado e, por esse mesmo motivo, deste ainda conservando um caráter "supranatural". De fato, conclui o autor, sagrado e interdito se confundem, se complementam. BATAILLE, Georges., op. cit., p. 65 e p. 121.

301 Recordemos, a título de exemplo, a lenda do fecundador ideal apresentada por Rank em Don Juan et le

Double. Segundo o autor, era Deus quem ocupava essa função privilegiada. Contudo, outro homem,

desde que representasse esse Deus na Terra, teria o direito exercer o papel do "père dieu dominateur" e, destarte, fecundar a mulher para que seu marido não corresse o risco de perder a alma. Logo, enfatiza Rank, esta figura não poderia ser vista como um mero celerado em busca da possessão e prazeres, mas como um herói que realiza sua função: compartilhar sua alma. Cf. RANK, Otto. Don Juan et le Double. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1973, pp. 107-108.

302 "todos os grandes homens gregos eram libertinos; em um homem essa paixão indica energia, qualidade

sine qua non genius". ML II, p. 26.

303 WATT, Ian. op. cit., p. 114.

304 Para o Cristianismo, David, além ter sido o Rei de Israel e do povo judaico, foi um ancestral de José, pai de Jesus na Terra.

cristã coercitiva. Entretanto, ao ser excluído dessa moral é que surgiria no mundo enquanto conceito, enquanto caráter. Mas a outro fator também atribuiria Stendhal306 o surgimento

dessa figura: a cavalaria. E com razão o autor a chamaria de filha da religião, pois que a Igreja protegia os cavaleiros que, a seu serviço nas cruzadas, lutavam e davam suas vidas por Deus.

Porém essa mesma Igreja condenava aqueles cavaleiros que, por dinheiro e admiração, inscreviam-se em torneios. Mas seria através deles que, para Stendhal, os homens passariam a tomar as mulheres como juízes de seu mérito e, ao mesmo tempo, como objeto de culto. Da cavalaria, então, surgiria o ideal de amor cortês.

Codificado no século XII por André le Chapelain, esse ideal viria estabelecer duas formas de amar, uma nobre, quase celestial, e outra desonrosa, mais mundana. Logo, o cavaleiro que aspirasse a distinção de uma bela mulher de uma classe social superior deveria pautar seu comportamento no respeito, na virtude e na elegância; e deveria, acima de tudo, proteger a honra da amada até o dia da união eterna, o casamento.

Para Montesquieu307 essa ideia de que os homens deveriam assumir a função de

guardiões da virtude e da beleza das mulheres, já que dessa virtude e dessa beleza necessitavam para o sucesso, conduziria ao esprit de galanterie:

On n'y juge pas les actions des hommes comme bonnes, mais comme belles; comme justes, mais comme grandes; comme raisonnables, mais comme extraordinaires. Dès que l'honneur y peut trouver quelque chose de noble, il est ou le juge qui les rend légitimes, ou le sophiste qui les justifie. Il permet la galanterie lorsqu'elle est unie à l'idée des sentiments du cœur, ou à l'idée de conquête [...]308

E é a essa "idée de conquête" que precisamos nos ater, dado que Stendhal muito dela teria se servido para definir a gênese e a missão de Don Juan. Isso porque, pensando na galanteria como instrumento na conquista, Montesquieu resumidamente a definiria como

306 MT I, p. 332.

307 MONTESQUIEU., op. cit., p. 450.

308 "As ações dos homens não são julgadas como boas, mas como belas; não como justas, mas como grandes; não como razoáveis, mas como extraordinárias. Desde que se pode encontrar qualquer coisa de nobre na honra, ela é ou o juiz que torna essas ações legítimas, ou o sofista que as justifica. Ela permite a galanteria quando está unida à ideia dos sentimentos do coração, ou à ideia de conquista [...]". Ibid., p. 28.

algo "qui n'est point l'amour, mais le délicat, mais le léger, mais le perpétuel mensonge de l'amour."309

Nesse ponto podemos perceber que o ideal de amor cortês, o fin'amour, ao regulamentar uma maneira distinta de se portar em presença da mulher almejada e ao assumir a galanteria como arma de combate, deixa claro a Montesquieu que o propósito final não era o amor, o amor-paixão, como diria Stendhal, sequer o amor-físico, mas uma certa distinção da vaidade que casava, aqui, com um sentimento delicado, o amor-gosto, se quisermos.

E será justamente contra esse sistema hipócrita que Don Juan virá ao mundo, na opinião de Stendhal. Sua revolta ao ideal de cavalaria e à galanteria que cerceavam a liberdade de seu coração e de seu corpo, que se impunham a seu natural, contudo, dar-se-ia de uma maneira peculiar. Sabendo que a mulher, enquanto guardiã da honra familiar e religiosa, era indispensável a esse sistema, a esse jogo pela distinção, então, conta-nos o autor310, Don Juan procurará, pela via do prazer, adorá-la, mostrando-se, desta maneira,

superior aos outros homens, apresentando-se, enfim, coberto da admiração e do respeito de seus contemporâneos apenas para deles zombar, apenas para lhes revelar o quão equivocados estavam, o quão hipócritas eram.

Nesse sentido o filósofo Irving Singer explica-nos311 que Don Juan se torna uma

paródia demoníaca da vida de Cristo ao se dedicar apaixonadamente não ao espiritual, mas ao sensual. Com clareza vemos que essa personagem está intimamente ligada a muitos preceitos morais da Antiguidade, mas sua dedicação ao prazer, à conquista da mulher será, para Stendhal, antes de tudo, o princípio de uma revolução contra diversas instituições: "Il mettait sa gloire à braver tout ce qu'on respecte, et ce n'était qu'après avoir satisfait à ce premier sentiment de son cœur qu'il trouvait le bonheur auprès des femmes."312

Obviamente, para tal empreitada, diz o autor, um pendor natural à figura feminina

309 "que não é o amor, mas o delicado, o suave, a perpétua mentira do amor". Ibid., p. 449. 310 MT I, pp. 332-33.

311 SINGER, Irving. Mozart and Beethoven. Cambridge: MIT Press, 2010, p. 27.

312 "Sua glória era enfrentar tudo o que se respeitava, e só depois de ter satisfeito esse primeiro sentimento de seu coração é que encontraria a felicidade junto das mulheres". .MT I, p. 331.

era requerido, bem como bastante dinheiro, instrumento necessário ao curso de sua ardente imaginação e ao "perdão" celeste. E desse apontamento emerge, a nosso ver, um dos pontos cruciais da interpretação de Stendhal a respeito do mito original: a mulher, aqui, ainda não será seduzida, enganada pelas palavras; Don Juan não se serve, nesse momento, da galanteria, uma vez que ela é um dos motivos de sua revolta. Aliás, afirma Stendhal transformando Don juan um herdeiro da antiguidade pré-cristã: "chez les Grecs, jamais de galanterie313 envers les femmes qui n'étaient que des servants [...]"314.

A mulher, então, torna-se um objeto duplamente útil: serve à sua revolução ao mesmo tempo em que sacia seus desejos naturais. Desejos, aliás, que a mulher também possui. Nesse caso, como bem lembra Ortega y Gasset315, Don Juan não é o homem que faz

amor com as mulheres, mas o homem com que as mulheres fazem amor, com o que parece concordar Stendhal316 ao afirmar que homens e mulheres desejam no fundo a mesma coisa:

eles querem conquistar; elas, ser conquistadas.

Por conseguinte, ele não precisará adotar o discurso cortês, não precisará fingir um amor puro e desinteressado para atender as exigências de sua vaidade. Ele irá apenas respeitar o instinto, um desejo em si já natural, ao desrespeitar os códigos insensatos da cavalaria e da religião:

Don Juan n'étant point seulement l'homme à femmes ni même le séducteur, mais l'homme qui oppose et qui jusqu'à la mort, préfère son désir à l'ordre établi, ne pouvait apparaître que dans une société qui réprouve et, en même temps, stimule le désir.317

Destarte, concluímos que os Don Juans, em sua origem (grifo nosso) descritos pelo

313 Mais uma vez observamos a reverberação das ideias de Montesquieu: "[...] cet esprit de galanterie qu'on peut dire avoir été peu connu par les anciens [...]" [esse espírito de galanteria que podemos afirmar ter sido pouco conhecido pelos antigos]. MONTESQUIEU. op. cit., p. 450.

314 "os gregos jamais utilizavam a galanteria com as mulheres, que não passavam de servas". PR II, p. 30 315 ORTEGA Y GASSET, José. "Amor en Stendhal", p. 15. In: STENDHAL. Del amor. Tradução Consuelo

Berges. Madrid: Alianza, 1973. 316 ML II, pp. 23-24.

317 "Don Juan não sendo apenas o homem com um pendor pelas mulheres, nem mesmo o sedutor, mas o homem que se opõe e que, até à morte, prefere seu desejo à ordem estabelecida, poderia aparecer apenas em uma sociedade que reprovasse e, ao mesmo tempo, estimulasse o desejo." ALBOUY, Pierre. apud LAU-PAU, Claude. Quelques exemples interessants de donjuanisme chez Balzac: formes et variations. 1980. 82p. Dissertação (Mestrado em artes) - Departamento de francês, University of British Columbia, Columbia, 1980.

autor, são seres de paixão, isto é, de força, de energia, de vontade. São homens que devem "violer les lois", "se moquer du juge"318, "braver ce qui leur semblait des idées non fondées

en raison dans la religion de leurs contemporains"319. Enfim são transgressores e, como tais,

em suas ações, vêm minar os princípios irracionais e hipócritas de uma sociedade, vêm atacar o interdito.

Transgressores, aliás, no sentido da transcendência, não da negação, da destruição, enfatiza Bataille320. O tabu existe como limite autoritário, irracional, porém a interdição

existe justamente para ser transgredida. A transgressão é o complemento do limite: "Transgression is complementary to the profane world, exceeding its limits but not destroying. [...] The profane world is the world of taboos. The sacred world depends on limited acts of transgression"321. Transgressão, no entanto, que nas leis dos homens e da

religião constituiria para sempre um sacrilégio322. Por este motivo, afirmou Stendhal323, o

maior prazer que poderia ter um Don Juan era de cometer um pecado.

Logo, é à religião cristão e à monarquia nos moldes franceses, com sua corte e cortesania, que nosso autor324, em resumo, atribuiria o nascimento desta figura singular,

bem como o papel erótico-satânico que ela então representaria, o papel do Demônio, ou Anjo, ou Deus da transgressão (da desobediência e da revolta), como o denominou Bataille325. E não sem razão, portanto, se referiria ele326 ao primeiro Don Juan da história

literária, o Don Juan de Tirso de Molina, como as figuras simultâneas do Diabo e do Amor.