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O neoclassicismo de Stendhal: a procura de um herói e o encontro com Don Juan

O BELO IDEAL ALHEIO E A EXUMAÇÃO DE FRANCESCO CENC

2.1 O neoclassicismo de Stendhal: a procura de um herói e o encontro com Don Juan

De fato, um herói ao mesmo tempo social e espiritualmente nobre, destaca David Stamm239, não poderia mesmo, neste triste século XIX, ser verossímil. A França,

recordemos brevemente o primeiro capítulo desta dissertação, havia passado por uma revolução que em seus propósitos libertários e igualitários logo esmaecera. A nobreza, que até então desfilava com suas filosofias e ideologias transgressoras, perderia seu status e seu dinheiro à burguesia. Mais do que nunca a afetação, a hipocrisia, as convenções e as vaidades de todos os tipos, inclusive no campo do amor, lamenta Stendhal240, estariam

presentes. Bêtes que fariam de sua nação um território tão "gangrenado" quanto a Inglaterra a ponto de deixar turvo e incompreensível o coração de seus contemporâneos.

Ora, diante de semelhante pintura, em que todos os gestos enérgicos e naturais estariam interditos241, cita Stendhal um conterrâneo: "En France, les grands passions sont

aussi rares que les grands hommes"242. A pergunta, então, que permanece no espírito de

Stendhal243 é onde, em que povo, em qual século encontrar essa paixão pura, forte, capaz de

expulsar toda vaidade e afetação de seu tempo, e a qual idealizaria em seus heróis.

Teria sido mais do necessário, admite o autor desde seus primeiros escritos244, e em

aparente contradição à crítica que sempre fizera à cópia cega dos gênios e heróis de outrora, procurar o belo ideal alheio. Num impulso que tiveram muitos artistas de seu tempo, portanto, é no além-França que Stendhal mergulharia em busca de seu herói verdadeiramente romântico.

239 STAMM, David. Je est un autre - le désir ontologique de Stendhal à Proust. Munich: Grin, 2008, p. 14. 240 STENDHAL. Préface aux Chroniques Italiennes. In: REN II, p. 557.

241 DBA, p. 162.

242 "Na França, as grandes paixões são tão raras quanto os grandes homens". DA, p. 124. 243 Id., Préface aux Chroniques Italiennes. In: REN II, p. 557.

Nesse sentido poderíamos dizer que nosso autor é um neoclássico, como o fora seu mestre Winckelmann. Bem o repara Claudon245, muito se refere a crítica stendhaliana,

graças a publicação de Racine et Shakespeare, à filiação do autor ao movimento romântico, quando não à sua aproximação, por conta daquele miror fidèle, do Realismo. Porém Stendhal sempre se revelou um homem de outro tempo, admirado com a arquitetura, a escultura, a música e a literatura do passado: "En musique, comme pour beaucoup d'autres choses, hélas!, je suis un homme d'un autre siècle"246.

Destarte, o neoclassicismo, acrescenta o crítico247, em muito se aproximaria da alma

daqueles que defenderiam o Romantismo. Isso porque, longe do simples "renascimento" das formas, dogmas e modelos de outrora, tal movimento, em sua concepção germânica, seria proveniente da nostalgia de um passado grandioso, da consciência de que o tempo incessantemente escoava, da certeza de que o mundo atual, em seu racionalismo e mesquinharias, nada mais poderia de belo oferecer.

A melancolia advinda desse sintoma de "passagem", com efeito, reforçaria Lukács, estaria intrinsecamente ligada ao espírito dessa burguesia pós-revolucionária que vira um Napoleão derrotado e da qual fizera parte Stendhal. Logo, se a grande questão do romantismo para o autor, já o vimos, era de apresentar o que o seu século precisava, ou seja, algo se qualificasse como "promessa de felicidade", muito do que estivesse fora (de sua nação) e além (de seu século) seria resgatado.

Assim, a memória do passado aliada à experiência do presente, no romance stendhaliano, resume Maria C. Scott248, se tornaria essencial para a compreensão do curso

de sua história. Mas o passado que escolheria Stendhal, diferentemente dos neoclássicos, e apesar de seu longo e entusiasmado trabalho na Histoire de la peinture en Italie, não seria a "bocejante" antiguidade greco-romana. Embora ainda dignos de admiração, os clássicos

245 CLAUDON, Francis. "Stendhal et le néo-classicisme". In: DEL LITTO, Victor (Org.). Stendhal et le

romantisme: actes du XVe congrès international stendhalien (Mayence 1982). Genève: Librairie Droz, 1984, p. 191.

246 "Para música, bem como para várias outras coisas, sou um homem de outro século". VHM, p 330. 247 CLAUDON, Francis. op. cit., pp. 191-192.

248 SCOTT, Maria C. Stendhal's Heroines: escaping history through history. Nineteenth-Century French

não possuíam a tão referida paixão pelo autor procurada: "Les classiques grecs e latins n'ont pas offert de ressource dans ce besoin des cœurs. La plupart appartiennent à une époque aussi artificielle et aussi éloignée de la représentation naïve des passions impétueuses que celle dont nous sortons"249.

Enfim, se Stendhal aproxima-se do neoclassicismo enquanto movimento, destaca Claudon250, é por conta de seu coração nostálgico, sensível, e não por conta da mera

recuperação, imitação ou cópia dos grandes artistas ou obras do passado. Com efeito, de acordo com a própria definição que dá ao termo em Racine et Shakespeare, Stendhal jamais poderia ser considerado um neoclássico, ou classicista, como preferimos outrora traduzir. Sua intenção não é de exumar regras, modelos, feições, vestimentas ou edifícios do passado. A única coisa que este autor deseja trazer a seus romances é o coração apaixonado que os clássicos, aliás, que a grande maioria dos povos e épocas, não tiveram.

De fato, declara em suas Chroniques Italiennes251, não sabe se poderia encontrar

fora dos países du midi, a Itália e a Espanha, um povo verdadeiramente civilizado, um povo que vivesse de paixões, e não da galanteria252, que fosse natural, que tivesse energia,

vontade253, em que a bílis corresse nas veias, que fosse forte, impetuoso254, que, enfim,

possuísse um coração a tal ponto purificado de todo tipo de vaidade para que pudesse ser a nu observado.

Na verdade, acreditava que não poderia encontrá-lo fora da Espanha antes de seu afrancesamento no XIX, especificamente, da Espanha quixotesca255, selvagem, erótica,

misteriosa, e da Itália antes da chegada dos franceses em 1726, quando estes, trazendo na bagagem a galanteria e o luxo, corromperam a moda que antes "pendia" aos costumes

249 "Os clássicos gregos e latinos não ofereceram recursos à s necessidades do coração. A maior parte pertence a uma época tão artificial e tão afastada da representação ingênua das paixões impetuosas como aquela da qual acabamos de sair". HPI, p. 404.

250 CLAUDON, Francis. op. cit., p. 200.

251 STENDHAL. Préface aux Chroniques Italiennes. In: REN II,p. 557. 252 Ibid., p. 562.

253 DA, p 125. 254 HPI, p. 215.

espanhóis256. Itália, aliás, berço da paixão almejada por Stendhal257, da virtù, dos grandes

homens; Itália que só poderia ser, portanto, a do Renascimento.

Como já mencionamos, essa busca pela morada da paixão fez parte da sede de exotismo que tiveram muitos contemporâneos do autor e que outrora o grande mestre, o pré-romântico Shakespeare, tivera. Na verdade, conta-nos Inmaculada Ballano258, no caso

da Espanha o interesse viria desde o século XVIII, quando, de um lado, viu-se os filósofos das Luzes classificarem-na como o país da Inquisição, das trevas, do obscurantismo sócio- moral, e, de outro, literatos que, curiosos sobre as belezas naturais e femininas, procuravam peças e novelas de autores espanhóis na ânsia de adaptá-las ao gosto francês. E bastaria lembrar, acrescenta a autora, de Beaumarchais e seus Le barbier de Séville e Le Mariage de Figaro, para notar as fantasias alegres que sonhavam e desejavam os franceses de então neste país.

Mas esta visão se alteraria, diz Philippe Kaenel259, durante a Restauração. De fato,

neste período o interesse pela nação reaviva-se graças ao heroísmo com que ela resistiria às incursões de Napoleão e ao governo do irmão do César, José Bonaparte, e graças também, por outro lado, afirma Ballano citando Herr260, à perda de seu Império e à posterior derrota

em 1823. Interesse que aumentaria com as obras e relatos dos exilados espanhóis em Paris e com as narrativas de viagem de alguns franceses, como o próprio Stendhal, o qual, ocupando sempre cargos administrativos no governo, pôde conhecer diversos países antes quase desconhecidos e anotá-los em suas mémoires, voyages e journaux. Isso sem levar em conta o interesse, ainda destaca Ballano261, que sempre despertariam as obras do Siglo de

Oro, obras tais como Don Quixote, que se tornaria, para os românticos, o modelo de herói tragicômico, essencialmente belo-sublime, sinônimo da honra, da justiça e da grandeza de alma.

256 Id., "San francesco a ripa". In: REN II, p. 733. 257 CI, p. 237.

258 BALLANO, Inmaculada. España en Stendhal: Imagen Sociocultural y Literaturización de un Mito. Mungia: Edition Reichenberger, 1997, p. 02.

259 KAENEL, Philippe. "Don Quichotte", Daumier et la légende de l'artiste. Artibus et Historiae, Krakow, v. 23, n. 46, pp. 163-177, 2002, p. 163.

260 BALLANO, Inmaculada., op. cit., p. 16. 261 Ibid., p. 09.

A imagem que teríamos dessa Espanha redescoberta, destarte, oscilaria entre dois polos. De um lado, aqueles que prefeririam sua imagem real, sem idealizações, exageros, deformações e, de outro, aqueles que a imaginariam a terra da violência, da revolta, dos ladrões, da vingança, dos toureiros, do flamenco, das belas e sensuais morenas como Carmen; terra misteriosa e esquecida, terra de verdadeiros heróis, distante da galanteria, da máquina a vapor, da hipocrisia e da vaidade.

Porém, relembra Ballano262 o historiador Ferdinand Brunetière, o Romantismo

francês não teria tido mesmo por pretensão a exatidão dos fatos. E não é que os autores desconhecessem a biografia e a bibliografia local, como afirmara o espanholista Morel- Fatio. O que o movimento pretendia era encontrar o caráter de uma literatura que recuperasse algo que a França não mais possuía.

O fato é que esse universo du midi, trazido à literatura francesa, seria, de qualquer maneira, deformado, "literaturizado", conclui Ballano263. E o retrato final, portanto,

apareceria como a conjunção entre a percepção clara da realidade, resultado das viagens a esse país por si só repleto de contrastes, e o desejo de nela enxergar o que sua própria nação precisava, desejava. A conjunção, enfim, entre a vontade de pintar a verdade e a necessidade de fazer seu ideal. Metade original e metade convencional, sintetiza a autora, seria, destarte, a imagem que os românticos teriam, incluindo Stendhal.

Para o autor, a Espanha, assim, aparece como a morada das paixões, da volúpia264, o

país de clima quente em que o recato inexistia, em que carícias ternas eram trocadas em público265, em que se cantava, acompanhado de uma guitarra, debaixo da janela da

amada266. O país do verdadeiro, das loucuras apaixonadas267, representante genuíno e ainda

vivo, no século XIX, apesar do crescente afrancesamento, da Idade Média. Nação das grandes, e não pequenas verdades, de um povo brusco, despreocupado com as

262 Ibid., p. 04. 263 Ibid., p. 07. 264 DA, p.145. 265 Ibid., p. 57.

266 Id., "Lettre à Pauline Beyle". In: CPC I, p 141. 267 DA, p. 57.

mesquinharias da elegância e com a vida alheia, povo cheio de um orgulho selvagem268. Tal

é a imagem que vê Stendhal em suas incursões por Cádis, Sevilha, em 1810, em 1829... Semelhante processo de visualização e idealização se daria na composição da imagem da Itália entre os românticos. Bem recorda Luiz Costa Lima269, a França, desde o

alto renascimento, em batalhas contra a Alemanha e contra a Espanha, participaria do cenário político italiano. Mas teria sido com Napoleão e suas campanhas na península ainda no século XVIII, levando consigo os ideais da Revolução, diz Stendhal, que a Itália reavivaria aquela referida paixão e atrairia a atenção de seus contemporâneos: "Si Bonaparte doit être condamné pour avoir abaissé la France, et surtout Paris, il a incontestablement élevé l'Italie"270.

Tal atenção seria redobrada com a busca deste país por unificação. É a Itália do Risorgimento, em luta contra o clericalismo e o absolutismo que se estabelecera após a derrota de Napoleão, procurando a união de seus estados, então divididos entre a Áustria, o papa, a casa de Saboia e os Bourbons, na ânsia de encontrar sua liberdade; a Itália nacionalista, a nação das organizações secretas, de um jacobinismo verdadeiro, a pátria- mãe das virtudes napoleônicas271, que conquista o romantismo francês, ou melhor, que

seduz Stendhal.

Para o autor, portanto, o retrato deste país superaria a veia de um romanticismo exótico, totalmente idealizado, exagerado. Seu conhecimento da Itália tem os pés fincados na realidade: conhecendo esta terra já em 1800, e nela retornando por diversas vezes ao longo de sua vida, Stendhal pôde recolher impressões sobre as relações sociais, sobre o modus operandi nos tempos de guerra, sobre a música, a arte, os fatos e as personagens de sua história oficial.

268 Ibid., p. 46.

269 COSTA LIMA, Luiz. Stendhal e a Itália. In: STENDHAL. Crônicas Italianas. São Paulo: Max Limonad, 1981, p. 07.

270 "Se Bonaparte deve ser condenado por ter piorado a França, e sobretudo Paris, ele incontestavelmente melhorou a Itália". HPI, p. 287.

271 Para Manzini, Napoleão seria sempre, para Stendhal, uma figura dúbia, a conjunção das virtudes romanas, como a coragem, a força, a paixão, e dos vícios franceses, como a vaidade, a intolerância. MANZINI, Francesco. Stendhal's Parallel Lives. Bern: Peter Lang, 2004, p. 232.

Contudo, afirma Manzini272, enviada ao reino do romance, da novela, tais

impressões se misturariam à imagem de uma Itália dos sonhos, de uma Itália desejada, que não é o que é, mas o que se torna para o autor depois de suas viagens e leituras, depois da desilusão com sua própria pátria, com seu século273.

Assim, teríamos um retrato dúbio, tal qual o da Espanha, entre fatos verídicos, o quadro de um contexto histórico-social, e figuras imaginadas, pintura de homens e mulheres em suas individualidades.

Resultado da observação do "estado do sol", ou do "clima", do "caráter dos habitantes", "da pintura, escultura e arquitetura", e, enfim, da "música"274, Stendhal nos

ofereceria, então, um país "onde a natureza reunira todos elementos de felicidade"275,

sensível a todas as belezas276, em que a sensibilidade estava a serviço das paixões277, onde o

amor era louco, impaciente, furioso278 e não se escondia por medo do ridículo279; uma pátria

repleta de mulheres encantadoras280, cheia de Ângelas Pietragruas, em que a única ocupação

era o prazer281, e não a vaidade, a vida em sociedade, a fofoca, a inveja ou a imitação de

modelos282. Uma terra insuportável para as pessoas elegantes283, porém jamais entediada284,

sempre original, natural285. Uma Itália, enfim, em que a virtude (virtù) falava mais alto que

a honra286, em que o ódio e a revolta animavam a bílis287, onde a ação e a energia

substituíam a leitura de romances288, onde matava-se por vingança, por traição, e não por

272 Ibid., p. 15.

273 Desilusão tamanha, aliás, que faria com que Stendhal para sempre favorecesse as "raízes italianas" de sua mãe, dos Gagnoni, e não Gagnon.

274 STENDHAL. "Lettre à Pauline Périer-Lagrange". In: CPC II, p. 624. 275 HPI, p. 283. 276 DA, p. 132. 277 Ibid., p. 134. 278 VR, p. 27. 279 DA, p. 154. 280 HPI, p. 196. 281 DA, p. XVIII. 282 Ibid., p. 154. 283 HPI, p. 286. 284 DA, p. 135. 285 HPI, p. 285. 286 Ibid., p 283. 287 DA, p. 155. 288 Ibid., p. 129.

dinheiro289, onde, portanto, os grandes homens eram menos impossíveis290.

Apenas nestas duas nações, a Espanha e a Itália, concluiria Stendhal291, poderia ter

em abundância encontrado monstros apaixonados que em outros lugares se escondiam - e que na França raramente e rapidamente apareceram -, monstros como os brigands, os carbonários, heróis do povo em defesa da liberdade, em luta contra o despotismo. Monstros como Don Juan, o herói de coração transparente292 a quem Stendhal, o autor procurador de

modelos, exumaria na construção de todos os seus heróis, na confecção de seu ideal de Romantismo293.