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Galhofa da História: a charge como fonte

CAPÍTULO 3 DEUS É UM CARA GOZADOR

3.3. Galhofa da História: a charge como fonte

“Marc Bloch e Lucien Febvre, os fundadores dos Annales, conclamaram [...] os historiadores a saírem de seus gabinetes e farejarem, tal como o ogro da lenda – ‘a carne humana’ – em qualquer lugar onde pudesse ser encontrada” (MAUAD; CARDOSO, 1997, p. 401), não mais restringindo a produção historiográfica à análise de documentos escritos, como o fizera a Escola Positivista. Todos os vestígios do passado, todos os lugares por onde o homem deixou seu rastro, se constituiriam como fonte para o estudo da história, ampliando o campo de visão do historiador, ao oferecer novas respostas aos velhos problemas.

O nascimento da concepção materialista da história, enviesada por Karl Marx, teve na revolução dos Annales uma via de expressão. Isso porque, assim como o marxismo, a escola francesa iria promover um exercício de crítica e inovação dos paradigmas da história, uma história de amplas dimensões que “deveria abarcar ‘todo vestígio humano’ produzido no tempo e todo fenômeno ou realidade histórico-social possíveis” (ROJAS, 2000, p. 57). A Nova Escola rejeitava a construção histórica pautada exclusivamente em documentos de caráter oficial, abrindo espaço à conjugação de distintos saberes.

Dessa forma, os Annales reencontram, por vias e armas próprias, mitos dos descobrimentos e rupturas antecipados pelo projeto pioneiro e fundador do marxismo original. Assimilam, também, as distintas formas e heranças da historiografia acadêmico-críticas alemãs e francesas, redefinindo radicalmente o ofício dos historiadores [...] Essa profunda e definitiva transformação já esboçada no campo dos estudos históricos, com o nascimento da concepção materialista da história de Karl Marx, veio a concretizar-se, nos meios acadêmicos e universitários da historiografia européia e ocidental, só após oito décadas, através dessa revolução na teoria da história, representada pelos primeiros Annales (ROJAS, 2004, p. 71)

Diante dessa perspectiva, “tudo o que é humano ou a ele se refira, em qualquer época de ocorrência, é objeto pertinente e passível de análise histórica” (ROJAS, 2004, p. 74), dilatando o universo da pesquisa historiográfica e incluindo entre suas fontes vestígios que, por longo tempo, foram desprezados pelo historiador, sendo relegados à qualidade de quinquilharias. “O relativismo cultural aqui implícito merece ser enfatizado. A base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente constituída” (ROJAS, 2004, p. 74). Segundo Burke (1992, p. 11-12), “este relativismo também destrói a tradicional distinção entre o que é central e o que é periférico na história”, trazendo à tona novas fontes e suscitando novos paradigmas.

“Bem cedo, enquanto os cabeçudos teóricos de um e outro campo permaneciam teimosamente apegados a suas posições inconciliáveis, já espíritos inovadores atenderam ao apelo insistente da sociologia e do marxismo” (GLÉNISSON, 1977, p. 229), estabelecendo um novo fazer histórico que abarcava a contribuição das demais ciências humanas, abrindo-se ao mundo exterior ao invés de “encerrar-se em sua torre de marfim”. A exemplo de Braudel, a nova historiografia iria propor uma visão de mundo original, capaz de conciliar distintas realidades que estiveram sob atuação humana. Segundo Rojas (2004), a história foi radicalmente ampliada, redefinida, e aprofundada, dando espaço a um vasto conjunto de inovações técnicas, metodológicas e epistemológicas.

Opondo-se veementemente à tradicional historiografia, os Annales buscavam rejeitar uma história objetiva, portadora de “verdades” irrefutáveis e constituídas exclusivamente a partir de documentos “oficiais”. A esse respeito, Peter Burke (1992, p. 15) afirma que, “hoje em dia, este ideal é, em geral, considerado irrealista [...] Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos”, sendo impossível reconstituir ou analisar acontecimentos históricos somente à luz de documentos oficiais, acreditando que esses são capazes de oferecer uma versão definitiva da história.

Tradicionalmente os historiadores tem se referido aos seus documentos como ‘fontes’, como se eles estivessem enchendo baldes no riacho da Verdade, suas histórias tornando-se cada vez mais puras, à medida que se aproximam das origens. A metáfora é vivida, mas também ilusória no sentido de que implica a possibilidade de um relato do passado que não seja contaminado por intermediários. É certamente impossível estudar o passado sem a assistência de toda uma cadeia de intermediários, incluindo não apenas os primeiros historiadores, mas também os arquivistas que organizaram os documentos, os escribas que escreveram e as testemunhas cujas palavras foram registradas (BURKE, 2004, p. 16).

A “história em migalhas”, enviesada pela Nova Escola, propõe uma história em movimento, mutável, analisada a partir de uma diversidade de indícios, que permitem a constante reconstrução do passado. Tais indícios, de caráter escrito, material ou visual, como propusera Peter Burke (2004), suscitam diferentes problemáticas para um mesmo acontecimento histórico, abrindo o leque de interpretação e compreensão do fazer historiográfico. A história, não mais vinculada a um saber científico incontestável, passa agora por uma revolução, aproximando-se das incertezas do historiador e das instabilidades humanas. “O historiador não é mais o defensor de uma sociedade que avança com valores sólidos e universais, ele foi sacudido, assim como o mundo que o cerca, pela relatividade dos valores que alcançam o Ocidente” (DOSSE, 2003, p. 269- 270).

A perspectiva segundo a qual a história pode ser reconstituída a partir de uma diversidade de vestígios do passado, consente a utilização da imagem como fonte historiográfica, o que seria uma possibilidade remota antes dos novos paradigmas introduzidos pelos Annales. Para Peter Burke (2004, p. 17), “as imagens nos permitem ‘imaginar’ o passado de forma mais vívida”, suscitando novos incômodos - nem sempre fáceis de resolver - que possibilitam analisar a história a partir de uma perspectiva distinta, marginal, que transforma o historiador no “vagabundo que busca, nas margens do social, os fantasmas do passado e o discurso dos mortos” (DOSSE, 2003, p. 276). A história deixa de ser escrita a partir da perspectiva de personagens de renome e emerge das margens sociais, dos sujeitos anônimos.

Depreende-se, então, que a imagem, relegada à marginalidade no universo dos vestígios historiográficos, adquire um novo ‘status’ sob a luz dos Annales, suscitando modelos originais de análise do passado, uma vez que, para essa vertente, “a imagem é o veículo próprio para as representações simbólicas que a sociedade e a cultura forjam sobre

si mesmas, o modo privilegiado para representações do coletivo” (TEIXEIRA, 2005, p. 16), o que permite ao historiador a construção de uma nova interpretação, não mais complementar ao texto ou às fontes escritas, mas independente e capaz “de oferecer novas respostas ou suscitar novas questões” (BURKE, 2004, p. 12). Diante dessa perspectiva, justifica-se a utilização da imagem como fonte historiográfica e sua possível contribuição no fazer histórico enviesado pela pesquisa em voga.

Isso porque, a imagem foi deliberadamente utilizada pelos colaboradores do Pasquim que, além de pretenderem alavancar uma publicação mais despojada e menos sisuda do que as publicações veiculadas pela grande imprensa passaram a utilizar as ilustrações como via em potencial para “driblar” a censura e expressar opinião contrária às imposições do Estado ditatorial. “Ao mesmo tempo em que o desprezo pelo objeto, intrínseco à caricatura e à charge, era captado e compartilhado pela intelectualidade, no estamento militar gerava uma reação de ódio incontida” (KUCINSKI, 2001, p. 113), o que acabou por transformar as imagens em veículo de oposição, configurando-as como um testemunho histórico da resistência pacífica e mordaz empreendida pela imprensa alternativa nos “Anos de Chumbo”, além de suscitar novos paradigmas para o estudo da história militar no Brasil.

Novos paradigmas, novos desafios. Ao historiador que se propõe enviesar por esse caminho, cabe a tarefa de lidar com vestígios os quais não se enquadram nos velhos métodos de análise e construção historiográfica, o que aumenta a dificuldade e minucia de seu trabalho. Dar início a um processo de reconstrução histórica, pautado pelo uso de fontes imagéticas, é reconhecer que “essas fontes suscitam problemas embaraçosos” (BURKE, 1992, p. 25), e perguntas cujas respostas não são tão precisas ou evidentes como aquelas provocadas pelos documentos escritos e de caráter oficial. A esse respeito, Peter Burke afirma que

os maiores problemas para os novos historiadores [...], são certamente aqueles das fontes e dos métodos. Já foi sugerido que quando os historiadores começaram a fazer novos tipos de perguntas sobre o passado, para escolher novos objetos de pesquisa, tiveram de buscar novos tipos de fontes, para suplementar os documentos oficiais. Alguns se voltaram para a história oral; outros à evidência das imagens (BURKE, 1992, p. 25).

Ao historiador se impõe o desafio segundo o qual “imagens são testemunhas mudas, e é difícil traduzir em palavras o seu testemunho” (BURKE, 2004, p. 18), o que

pode provocar interpretações não idealizadas nem mesmo pelo artista. Corre-se o risco de promover uma leitura que se enquadre na problemática do historiador, mas que em nada suscite as possíveis intenções daquele que produziu a imagem. Diante dessa perspectiva, Burke (2004, p. 18) recomenda que, “para utilizar a evidência de imagens de forma segura, e de modo eficaz, é necessário, como no caso de outros tipos de fonte, estar consciente das suas fragilidades”, cabendo ao historiador tomar os devidos cuidados para a análise das imagens, não tentando simplesmente encaixá-las em modelos previamente estabelecidos.

“Os critérios para interpretação dos significados latentes, em particular, são na verdade difíceis de ser formulados”, como explica Burke (1992, p. 27). Até mesmo as teorias que, em um passado recente, foram tão recorrentes no uso de imagens como fonte historiográfica, acabam levantando problemas que limitam a atuação do historiador, e podem vir a provocar análises pouco condizentes com a realidade, ou mesmo superficiais, como é o caso do método iconográfico/iconológico, perpetrado por Erwin Panofsky90. “Pode-se dizer que para os iconografistas, pinturas não são feitas simplesmente para serem observadas, mas também para serem ‘lidas’. Hoje, essa ideia já se tornou lugar- comum”, explica Burke (2004, p. 44) ao abordar o referido modelo de interpretação. “Os problemas da iconografia tornam-se ainda mais embaraçosos quando os historiadores de outros tópicos tentam usar gravuras para seus próprios propósitos, como evidências de atitudes religiosas ou políticas” (BURKE, 1992, p. 27).

Ainda que o método iconográfico seja acusado de intuição e especulação, oferece- nos uma importante pista no uso de imagens como fontes historiográficas, ao propor que “para interpretar a mensagem, é necessário familiarizar-se com os códigos culturais” (BURKE, 2004, p. 46) e, portanto, compreender a imagem como parte integrante de uma cultura, sendo sua confecção por ela influenciada. A esse respeito, De Certeau afirma que

toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em

90 Sobre o método iconográfico/iconológico, divulgado através das obras de Erwin Panofsky, Meneses

(2012, p. 247) afirma que um foco de ressalvas “é seu idealismo epistemológico, tendo sido criticada sua pretensão de verdade e objetividade incontaminadas por ideologias”. Segundo o autor, outro problema relacionado ao modelo é a excessiva dependência textual. “Pior é tomar o texto como matriz e, portanto, a imagem como sua ilustração [...] Ao contrário, pode-se acrescentar que muitas vezes é a imagem que gera textos, como documentam inúmeros casos, a começar pela Antiguidade” (MENESES, 2012, p. 247).

uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhe serão propostas, se organizam (DE CERTEAU, 1982, p. 56).

Ainda que se refute o método em sua totalidade, ele pode se constituir como ponto de partida para a análise de fontes imagéticas. “Os historiadores precisam da iconografia, porém, devem ir além dela. É necessário que eles pratiquem a iconologia de uma forma mais sistemática, o que pode incluir o uso da psicanálise, do estruturalismo e [...] da teoria da recepção” (BURKE, 2004, p. 52). Desse modo, se estabelece como referência o que De Certeau definiu como lugar de produção socioeconômico, político e cultural, mas tomando os devidos cuidados como Burke (2004, p. 52) reiterou ao afirmar que “o método incorre no risco de subestimar a variedade de imagens, sem falar na diversidade de questões históricas para as quais as imagens podem auxiliar a encontrar respostas”.

Isso porque, o “valor real da imagem [...] reside em sua capacidade de transmitir informações que não podem ser codificadas de nenhuma outra forma” (WOODFIELD, 2012, p. 46), auxiliando o historiador no arrolamento de vestígios referentes a um determinado período, além de levantar os possíveis funcionamentos de um acontecimento histórico, que parecia esgotado por fontes escritas ou mesmo materiais. Diante dessa perspectiva, os métodos empregados para a análise de imagens são os mais variados, suscitando distintos problemas uma vez que, tal segmento, é ainda desconhecido pelo profissional da história, habituado ao trato com outros tipos de fonte.

Aliás, o uso da imagem como fonte historiográfica, recorrente a partir das mudanças empreendidas pela Escola dos Annales, não permite sequer o uso de um método determinado, uma vez que a infinidade de significados suscitados pela imagem impossibilita um caminho unilateral. A resposta, se é que existe uma resposta, pode ser encontrada na multidisciplinaridade, no estudo não estrito da história, mas em sua relação com outras áreas do conhecimento, como a linguística ou mesmo a psicologia.

Diante de tal assertiva, resta ao presente estudo procurar estabelecer um caminho coerente para a análise de imagens e, quiçá, o uso dessas na compreensão de um determinado período histórico, já tão esgotado pelo texto escrito e a diversidade de documentos encontrados, uma vez que aborda a recente história de nosso país. Assim, pretende-se construir um entremeio entre história e linguística por meio da Análise de Discurso, a fim de propor um possível método analítico para o trato com a fonte escolhida, uma vez que “é a inscrição da história na língua que faz com que ela signifique”

(ORLANDI, 1994, p. 52). Tal escolha se dá, em primeiro lugar, pela familiaridade da autora com o tema, devido à graduação na área da comunicação, e a proximidade desse com as fontes de caráter jornalístico. Em segundo lugar, pela afinidade entre história e jornalismo, ou seja, entre história e comunicação, de modo que uma teoria da comunicação poderia bem servir à análise de uma fonte encontrada estritamente no campo jornalístico. Por fim, justifica-se o emprego de tal método pela diversidade de sentidos que a Análise do Discurso pode suscitar diante de um determinado objeto de estudo, sem a pretensiosa intenção de esgotá-lo. Isso porque,

[...] o trabalho com o discurso leva a uma forma de conhecimento específico com um objeto que não é simplesmente o resultado da relação de um objeto de uma disciplina, com outro de outra disciplina. A AD, nessa perspectiva, não é apenas aplicação da Lingüística sobre o objeto das Ciências Sociais e nem o inverso, ou seja, aplicação das Ciências Sociais sobre o objeto da Lingüística. Longe disso, a consideração do discurso leva a uma outra prática analítica seja sobre a linguagem, seja sobre a sociedade, seja sobre o sujeito (ORLANDI, 1994, p. 53-54).

Diante desse panorama, a presente pesquisa propõe o uso da charge como fonte historiográfica, levantando suas possíveis contribuições para a compreensão do Governo Médici (1969-1974), por meio da Análise de Discurso, brevemente apresentada em tópico posterior.