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CAPÍTULO 2 JOGA PEDRA NA GENI

2.1. Gramsci e a desforra da esquerda

2.1.1. Montando o quebra-cabeças

Segundo Gramsci, a hegemonia se constitui por meio do “consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social”, ou então através “do aparelho de coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’” (GRAMSCI apud ALMEIDA, 2009, p. 5). Diante de tal assertiva, a articulação de uma nova hegeminia, por parte das classes subalternas, seria possível por meio da cultura, “capaz de romper com a sua desagregação e abrir caminhos para a construção de uma vontade coletiva, contrapondo- se às concepções de mundo oficiais” (SIMONATTO, 2009, p. 45). A cultura se configura como meio de emancipação política das classes subalternas, “o amálgama, o elo de ligação [sic] entre os que se encontram nas mesmas condições e buscam construir uma contra-hegemonia” (SIMONATTO, 2009, p. 45).

Tanto hegemonia quanto contra-hegemonia, constituem-se por meio da atuação do intelectual orgânico. Deixando de considera-los de maneira abstrata, desconectados da

sociedade, “Gramsci apresenta os intelectuais intimamente entrelaçados nas relações sociais, pertencentes a uma classe, a um grupo social vinculado a um determinado modo de produção” (SEMERARO, 2006, p. 376), constituindo-se como as células vivas da sociedade civil e política. Enquanto os intelectuais tradicionais permanecem fechados em seus pareceres eruditos e enciclopédicos, cultivando uma “aura de superioridade com seus saberes livrescos” os intelectuais orgânicos, “ao contrário, são os intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e em expansão. Por isso, estão ao mesmo tempo conectados ao mundo do trabalho, às organizações políticas e culturais mais avançadas que o seu grupo social desenvolve para dirigir a sociedade”. (SEMERARO, 2006, 376-377). Constitui-se um vínculo orgânico entre o intelectual e a classe que ele representa, que se dá no interior da superestrutura, tornando a referida classe hegemônica.

É por esse caráter orgânico que se define qualquer intelectual no seio de determinado bloco histórico. Gramsci distingue diferentes categorias de intelectuais, mas todos têm em comum o vínculo mais ou menos estreito que os liga a uma classe determinada. O caráter orgânico do vínculo entre estrutura e superestrutura reflete-se exatamente nas camadas de intelectuais cuja função é exercer esse vínculo orgânico: os intelectuais formam uma camada social diferenciada, ligada à estrutura – as classes fundamentais no domínio econômico – e encarregada de elaborar e gerir a superestrutura que dará a essa classe homogeneidade e direção do bloco histórico. Evidencia-se assim o caráter dialético do bloco orgânico (GRUPPI, 1977, p. 84).

Parte-se do princípio de que “todos os homens são intelectuais”, ressaltando que, apesar dessa premissa, “nem todos desempenham na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 1982, p. 10). Em Gramsci, o “intelectual orgânico” não se classifica de acordo com seu grau de erudição, como o intelectual tradicional, mas a partir da função social que desempenha, envolvendo-se “ativamente na vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor permanente’” (1982, p. 11). O intelectual age de modo a elaborar um pensamento crítico, com o objetivo de apresentar à sociedade uma nova concepção de mundo e, deste modo, influir nas formas reais de vida.

Por intermédio da elaboração de novos valores, o “intelectual orgânico” tem como responsabilidade a formação de um bloco social e cultural, que seja capaz de disputar a “hegemonia” com outros grupos sociais e, posteriormente, promover uma mudança na esfera das estruturas. Nesse aspecto, é importante enfatizar que a abordagem cultural proposta por Gramsci associa o conceito de “hegemonia” às formas menos estruturadas de pensamento que circulam entre as pessoas comuns, constituindo-se em “uma mistura

de folclore, mito e experiência popular cotidiana” (RUDÉ, 1982, p. 21) e que, no presente escrito, relaciona-se à atuação da imprensa alternativa o governo do presidente-general Médici. Diante dessa perspectiva, os veículos alternativos se constituiriam como via de ligação com as pessoas comuns, o corpo de “intelectuais orgânicos”, responsável pela formulação de uma nova concepção ideológica e moral a respeito do regime militar, construindo uma nova hegemonia, capaz de suscitar o pensamento crítico e incutir na sociedade a necessidade de mudança, de transformação.

Aqui vale ressaltar que, a princípio, seria inviável aplicar a teoria de Gramsci à cultura da classe comum e à atuação da imprensa, uma vez que essa estaria associada aos detentores do poder, enquanto a primeira teria sido relegada, por longos anos, a um papel secundário. Não se pensarmos que, durante a ditadura, a imprensa alternativa atuou de maneira a subverter os padrões da grande imprensa, vinculada ao regime militar e utilizada como meio de propaganda para as ações do mesmo. A adoção do método gramsciano de análise serve de base para abordar a produção alternativa dos jornais por meio do viés cultural, uma vez que muitos desses veículos não se enquadraram na esquerda ortodoxa e partidária, indo ao encontro do conceito de contracultura e dos diversos movimentos ocorridos na década de 1960, além de se alinhar à denominada Nova Esquerda.

Sobre esse aspecto, Queiroz (2004, p. 231) afirma que “nas estruturas de poder da imprensa alternativa havia uma forte inspiração gramsciana, entendendo os jornais como entidades autônomas, com o principal propósito de contribuir para a formação de uma consciência crítica nacional” e acrescenta ainda que os referidos veículos “acabaram por criar um espaço público alternativo”. A partir desses preceitos, a imprensa alternativa se constituiria como ferramenta da sociedade civil para a constituição de uma hegemonia própria, distinta da hegemonia política que se utiliza da coerção como meio para atingir seus fins. A esse respeito, Moraes (1997, p. 98) afirma que “na sociedade civil, as classes procuram ganhar aliados para seus projetos por meio da direção e do consenso. Já na sociedade política as classes impõem uma ‘ditadura’, uma dominação fundada na coerção”.

A figura do intelectual, amplamente debatida na obra gramsciana, da mesma forma como o fazem alguns agentes da comunicação, poderia assim remeter à figura do jornalista, que apresenta as ferramentas necessárias para o desenvolvimento de um espaço aberto ao diálogo com a sociedade civil, além de construir um campo de contra

hegemonia, como o fizera a imprensa alternativa durante o período da ditadura. A esse respeito, Moraes afirma que,

[...] a notável contribuição de Gramsci sobre o embate pela hegemonia no seio da sociedade civil – a partir de sua teoria marxista ampliada do Estado – permite-nos meditar sobre o desempenho dos meios de comunicação. Devemos analisá-los não apenas como suportes ideológicos dos sistemas hegemônicos de pensamento, mas também como lugares de produção de estratégias que objetivam reformular o processo social. Sem deixar de reconhecer a sistemática reverberação dos discursos dominantes das mídias, temos que considerar que debates, polêmicas e contradiscursos se manifestam (MORAES, 1997, p. 100).

Assim, é possível inferir que a constituição de uma nova hegemonia por parte da sociedade civil, se torna efetiva por meio dos aparelhos privados, como a escola, o partido, o sindicato e, também, os veículos de comunicação. Tais aparelhos, produtos das lutas de massa, tem como fim último a obtenção de um “consenso”, indispensável à dominação real de um grupo sobre outro (MORAES, 1997). A imprensa alternativa, por meio dos seus escritos e charges, seria responsável pelo estabelecimento de uma nova visão de mundo, distinta daquela imposta pelos militares e, capaz de suscitar a necessidade de mudança pela crítica à atuação do regime. A revolução, segundo interpretações gramscianas, se iniciaria pelas superestruturas até que, finalmente, atingisse o campo das estruturas, como propusera Karl Marx. Diante dessa perspectiva, a imprensa alternativa não teria apenas um caráter contracultural, mas também de constituição de uma nova hegemonia, encampando a resistência que se estabeleceu contra regime militar e o autoritarismo por ele apregoado.