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1. O Regulamento de Disciplina Militar de 2009

1.1. Generalidades

Fazendo uso da faculdade conferida pela alínea c) do artigo 161.º da CRP, a Assembleia da República aprovou a Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de julho, procedendo à revogação expressa do Decreto-Lei n.º 142/77, de 09 de abril, ao abrigo do qual vigorou o anterior regulamento de disciplina militar, por um período que se estendeu por mais de três décadas.

Este ainda recente regime disciplinar, acaba por se aproximar em diversos pontos das regras que são aplicáveis a um qualquer funcionário público quando envolvido no âmbito de um procedimento disciplinar. Essa é uma conclusão visível não só ao nível da ampliação das regras procedimentais, mas também em matéria de garantias de defesa ao dispor dos militares que tenham sido constituídos arguidos em processo disciplinar.

Desde logo há a destacar a segmentação dos deveres militares em deveres gerais e especiais, bem como a substancial revisão dos conteúdos dos deveres militares no sentido da sua atualização e concretização objetiva. A esse título parece-nos que o atual RDM denota uma melhor sistematização dos deveres dos militares e uma superior

A inconstitucionalidade do Recurso Hierárquico Necessário. Em especial, as sanções aplicadas no âmbito do Regulamento de Disciplina Militar

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enunciação exemplificativa de condutas passíveis de sancionamento154, ainda que possam subsistir alguns conceitos vagos e indeterminados.

Desse modo definem-se como deveres especiais os de obediência e de autoridade que correspondem ao valor da hierarquia, os de disponibilidade, de zelo, responsabilidade, isenção política e aprumo decorrentes do valor da missão, de tutela, de lealdade e de camaradagem. Para respeitar o valor da coesão e da segurança constam os deveres de sigilo e de honestidade, e por fim o dever de correção para salvaguarda dos valores da missão e da disciplina em sentido estrito155.

Este novo regime disciplinar militar mantendo alguns dos traços caracterizantes do direito penal156, apresenta disparidades relevantes ao nível dos fins prosseguidos e em particular no campo da discricionariedade, quer na forma de identificação da infração disciplinar como na decisão acerca do modo e possibilidade de punição.

De relevar ainda a supressão do preceito importado do artigo 271.º da CRP que aludia para o direito da respeitosa representação157, através do qual era dirimido o conflito entre o princípio da legalidade e o princípio da hierarquia. Apesar de este ser um instituto que vigorava na disciplina militar desde o Regulamento de Conde de Lippe, a sua eliminação deu azo a fundadas dúvidas acerca da proeminência de situações que reflitam abuso de autoridade.

Esta alteração pelo impacto que gerou na instituição militar deve merecer reflexão por parte do legislador, não só para evitar o uso desmedido do poder discricionário mas principalmente para não colocar o subordinado na situação de ter de

154Partilhamos assim da opinião revelada por VITOR M. GIL PRATA, A Justiça Militar e a Defesa Nacional, Ed. Coisas de Ler, 2012, pág. 95.

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Assunto abordado pelo Juiz Conselheiro ALFREDO RUI GONÇALVES PEREIRA na palestra ocorrida no âmbito do Seminário subordinada ao tema O Exército e a Justiça Disciplinar, em 06 de maio de 2009, na Academia Militar de Lisboa.

156Aliás, não deixa de ser sintomático que o RDM consagre como subsidiariamente aplicáveis os princípios gerais do direito penal e a legislação processual penal com prioridade sobre o Código do Procedimento Administrativo.

157Recorde-se que o artigo 271.º da CRP através do seu n.º 2 refere que “É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito”.

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ajuizar se uma ordem é ou não legal, porquanto pode não dispor de todos os elementos de informação.

Realce ainda para o exposto nos artigos 8.º e 9.º do RDM, que proclamam o princípio da independência e autonomia do processo disciplinar face ao procedimento criminal, constituindo igualmente uma novidade comparativamente com o regime anterior. Na base desta mudança estarão as assimetrias que existem entre ambas as jurisdições, quer ao nível dos fundamentos como dos fins que prosseguem.

De acordo com este novo regime a autoridade militar deixa de estar vinculada à necessidade de suspensão do processo disciplinar até à tomada de decisão final sobre o procedimento criminal, da mesma forma que o oficial instrutor não fica vinculado na fase instrutória a aguardar a decisão judicial que irá caracterizar em termos definitivos e penais os factos participados158.

Estas disposições que tendem a demarcar as especificidades da administração militar e a acautelar a eventual perda de oportunidade punitiva, acabam contudo por colidir com as inovações verificadas no capítulo relativo aos meios de impugnação. Neste âmbito deixou agora de se verificar o cumprimento imediato das penas disciplinares, exceção feita às penas de natureza corretiva (repreensão e repreensão agravada).

Fazendo uso da nossa experiência empírica, assistiu-se a uma mudança que causou diversos constrangimentos para a predominância da disciplina na maioria das unidades militares, que em determinadas situações não se coadunam com a preterição do imediato cumprimento da pena. Por outro lado e como veremos oportunamente, não se perceciona os motivos que tiveram na origem da manutenção desse efeito imediato

158Neste sentido debruça-se a jurisprudência do STA, através do Acórdão de 18 de fevereiro de 1999, que concordando com a independência entre o procedimento disciplinar e o criminal, acresce que apenas em casos de erro grosseiro ou palmar se poderá sindicar os critérios utilizados para a fixação da medida da pena, porquanto a administração goza de ampla margem de discricionariedade.

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relativamente às penas tidas por menos gravosas, que também acarretam consequências para a esfera jurídica e social do militar punido159.

Este último preceito constituindo um plágio de uma norma que se encontrava exposta no artigo 60.º do ora extinto EDFP160, com a agravante de não comportar a cláusula de salvaguarda ali prevista, acaba por olvidar a especialidade do direito disciplinar militar assente em valores jurídicos que não assumem o mesmo grau de importância no ordenamento administrativo em geral, e cujas atribuições podem implicar inclusivamente o sacrifício da própria vida.