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4 O CASO EICHMANN E A BANALIDADE DO MAL

4.2 O genocídio

Um dos pontos importante relatados especialmente no epílogo da obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal de Hannah Arendt trata da questão do genocídio como um crime que ainda não existia em nenhuma jurisdição de nenhum país. Contudo, esse crime passou a existir devido às consequências das ações dos regimes totalitários e, por meio da retroatividade da lei, criaram códigos penais que estabelecessem punições para os crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Em especial, os nazistas foram julgados pelos massacres cometidos não só contra os judeus, mas, como diz Hannah Arendt, contra o “status humano”. Por essa razão, é importante tratarmos a respeito desse crime, pano de fundo do julgamento de Eichmann em Jerusalém.

A lei pela qual Eichmann foi julgado era a Lei de Israel de 1950, a chamada “Lei do retorno”, criada para o Estado de Israel e para o povo judeu como um todo, que, dentre outras coisas, contém a garantia na qual cada judeu possui cidadania israelense onde quer que se encontre. Com base nessa lei, Eichmann foi “acusado de ter cometido crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra” (RIBAS, 2010, p. 31). Em cima dessas mesmas acusações, os nazistas foram julgados anteriormente em Nuremberg, no documento chamado “Carta”, que “criava jurisprudência para três tipos de crimes: “crimes contra a paz”, “crimes de guerra” e “crimes contra a humanidade” (ARENDT, 1999, p. 277). Segundo nossa autora, somente o último “era novo e sem precedentes” (ARENDT, 1999, p. 277), porém, até certo ponto.

Para Arendt, os crimes contra a paz e os crimes de guerra eram crimes que possuíam precedentes. Para ela, “a guerra agressiva é pelo menos tão velha quanto a história da escrita” (ARENDT, 1999, p. 277). Em relação ao “crime contra a humanidade”, Arendt nos mostra que era um crime que não possuía tipificação em nenhuma lei, um crime antes desconhecido. Arendt partiu do “princípio de nullum crimen, nulla poena sine lege” (ARENDT, 1999, p. 276), que quer dizer “não há crime nem pena sem lei prévia”, portanto, como os nazistas agiram dentro da lei e da jurisdição de um Estado soberano, por mais cruéis que fossem os seus atos e suas leis, eles não deveriam ser julgados, muito menos ser levados à

corte dos vitoriosos. Esse princípio seria ainda mais confirmado se fosse seguido o princípio de Kant, da obediência legítima a todo e qualquer governo. Contudo, Hannah Arendt critica veementemente a questão da obediência cega no campo da política. Talvez essa sua crítica se dê justamente porque numa situação de totalitarismo, como foram os casos nazista e bolchevista, nossa autora considera que a política mesma é destituída de seu sentido, qual seja, a possibilidade de ação na vida pública garantida pela pluralidade dos seres humanos singulares. Contudo, que fique claro que não há nenhuma afirmação de que Hannah Arendt era contra o julgamento dos nazistas, nem mesmo afirmou que estes não cometeram crimes, ela apenas quis dizer que esse era um dos problemas com que a corte de Jerusalém teria que lidar para legitimar o julgamento de Eichmann.

O genocídio foi o termo utilizado para definir os crimes cometidos pelos regimes totalitários, a maldade que se concretizou pela dizimação em massa de pessoas. Genocídio é o massacre parcial ou total de povos inteiros, com o objetivo de destruí-los. Todavia, mesmo não sendo identificado em nenhum código penal, os massacres de povos ou grupos inteiros já ocorriam em outras épocas, como afirma Arendt, e sendo assim, colocam-se como precedentes. Por isso, o conceito de “genocídio”, para ela, não é inteiramente adequado para definir os crimes dos regimes totalitários. A humanidade já praticava esse tipo de ação, fosse para conquistar terras de outros povos, fosse para favorecer interesses políticos, econômicos, religiosos, dentre outros. Conforme a autora:

[...] o conceito de genocídio, introduzido para cobrir um crime antes desconhecido e embora aplicável até certo ponto, não é inteiramente adequado, pela simples razão de que os massacres de povos inteiros não são sem precedentes. Eram a ordem do dia na Antiguidade, e os séculos de colonização e imperialismo fornecem muitos exemplos de tentativas desse tipo, mais ou menos bem-sucedidas. A expressão “massacres administrativos” é a que parece melhor definir o fato. (ARENDT, 1999, p. 311)

O termo “massacres administrativos” parece ser mais propício para Hannah Arendt devido ao fato de que define bem o trabalho de Eichmann. Para Ribas, Arendt usa esse termo, referindo-se aos crimes nazistas, “para destacar a circunstância de ter sido perpetrado dentro e através do aparelho burocrático estatal”, pois “Eichmann fazia parte de uma complexa cadeia de comando na qual cada envolvido desempenhava um determinado papel”, a fim de concretizar a “implementação da Solução final” (RIBAS, 2010, p. 32) e dizimar os judeus. Podemos observar que esse termo destaca a banalidade do mal presente em Eichmann e em outros nazistas que faziam parte dessa “cadeia de comando”, homens que não se

preocupavam com outra coisa a não ser com o desempenho de suas funções. Muito provavelmente, diríamos, se esse termo que Hannah Arendt usa para conceituar o holocausto dos judeus fosse também utilizado por Eichmann e os demais responsáveis pela “Solução Final”, com toda certeza a palavra massacre perderia todo seu sentido para eles, pois conjuntamente com a palavra “administrativos”, eles não teriam outra coisa na cabeça a não ser seus medíocres trabalhos burocráticos.

Para Lafer, o genocídio vai muito além de uma definição de dizimação de grupos, mas diz respeito ao mundo inteiro. Baseado nos conceitos de Hannah Arendt, ele nos afirma que o genocídio diz respeito à humanidade como um todo, característica específica dos regimes totalitários, que tinham como principal objetivo o controle e o extermínio da população mundial para fazer sobreviver apenas a “raça superior” ariana. Dessa forma, Lafer nos diz que, tendo em vista o mal absoluto advindo do totalitarismo, após a Segunda Guerra Mundial houve a necessidade de criação de um “Código Penal Internacional”, a fim de prevenir, julgar e punir outros massacres que ponham em risco a humanidade como um todo. Lafer argumenta que:

O genocídio não é um crime contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. É um crime que ocorre, lógica e praticamente, acima das nações e dos Estados – das comunidades políticas. É um tema global, pois diz respeito ao mundo como um todo. Trata-se, portanto, de um crime contra a humanidade que assinala, pelo seu ineditismo, a especificidade da ruptura totalitária. A ruptura totalitária levou, assim, no pós-Segunda Guerra Mundial, à afirmação de um Direito Internacional Penal. Este procura tutelar interesses e valores de escopo universal, cuja salvaguarda é fundamental para a sobrevivência não apenas de comunidades nacionais, de grupos étnicos, raciais ou religiosos minoritários, mas da própria comunidade internacional. Entre tais valores e interesses está a repressão ao genocídio. (LAFER, 1997, p. 59)

Lafer ainda nos mostra que “o crime de genocídio, administrado por Eichmann e perpetrado no corpo do povo judeu, é um crime contra a humanidade porque é uma recusa frontal da diversidade e da pluralidade”, que são “características da condição humana na proposta arendtiana de um mundo plural” (LAFER, 1997, p. 59). O mal absoluto dos regimes totalitários tem como consequência a destruição dessa pluralidade humana, característica sem a qual os homens não possuem liberdade. Por isso o holocausto foi um dos piores crimes já cometidos pela humanidade, pois destruiu todas as dimensões da pessoa.

Para Ribas, uma das confusões que aconteceram no julgamento de Eichmann se deu em relação à “especificidade do crime de genocídio” que “escapou à corte de Jerusalém” (RIBAS, 2010, p. 34). Eles confundiram o genocídio com homicídio e essa “ilusão comum de

que o crime de genocídio e o crime de homicídio são essencialmente a mesma coisa impediu, para Arendt, que se compreendesse o genocídio como um crime novo” (RIBAS, 2010, p. 34), fazendo com que fosse encarado apenas como massacre de povos, talvez até semelhante ao que faziam os povos bárbaros de outros tempos. Isso tira a característica essencial desse crime, característica nascente dos regimes totalitários, fonte nascente da banalidade do mal. Para Ribas:

O genocídio era um crime sem precedentes, embora não fossem sem precedentes nem a discriminação legalizada, nem a expulsão em larga escala, nem mesmo o massacre de povos inteiros. Para Arendt, o genocídio é um ataque à diversidade humana enquanto tal e, portanto, a uma característica essencial da condição humana, sem a qual a própria palavra humanidade seria destituída de significado [...]. O genocídio implica numa negação da condição humana da pluralidade. (RIBAS, 2010, p. 34-35)

A banalidade do mal nítida nas ações dos genocidas totalitários, autores dos “massacres administrativos”, como diz Hannah Arendt, também se manifesta nas nauseantes afirmações de Eichmann com respeito ao seu discurso de que tudo o que praticou, só o fez porque estava obedecendo às ordens de Hitler. A defesa se utilizou desse argumento para defender Eichmann, mas a corte negou essa defesa, dizendo que “ordens criminosas manifestamente criminosas não devem ser obedecidas” (ARENDT, 1999, p. 315), contudo um dos motivos que complica a acusação com respeito a crimes cometidos por meio de ordens superiores se dá pela “prática das cortes de admitir a declaração de “ordens superiores” como importante circunstância atenuante” (ARENDT, 1999, p. 317). Não obstante, os crimes cometidos por Eichmann tornavam essa admissão um tanto quanto insignificante, dado que estamos falando de “uma atividade que se prolongou durante anos, na qual houve crime sobre crime” (ARENDT, 1999, p. 317), praticamente anulando essa tentativa de argumentação por parte da defesa, que já não tinha tanto poder no julgamento.

Todas essas características do crime de genocídio, nunca antes tipificado em qualquer código penal, são frutos do mal absoluto dos regimes totalitários, que só puderam ocorrer, com todas as características provenientes dos regimes totalitários, por homens como Adolf Eichmann, que Hannah Arendt não hesita em definir como uma “nova espécie de criminoso”, que não possuem senso de responsabilidade pessoal, nem política, que não se sentem nem mesmo culpados por nada. A falta de senso de culpa e responsabilidade é um dos fatores chocantes para Hannah Arendt que caracterizam a banalidade do mal. Dessa maneira,

trataremos a respeito do entendimento de nossa autora sobre a responsabilidade, tão importante para a vida privada, mas sobretudo para a ação na vida pública.

No documento A propósito do mal em Hannah Arendt (páginas 86-90)