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O antissemitismo

No documento A propósito do mal em Hannah Arendt (páginas 51-55)

3 O TOTALITARISMO E O MAL ABSOLUTO

3.2 O antissemitismo

A Segunda Guerra Mundial ajudou a encobrir uma série de massacres cometidos pelos nazistas nos campos de concentração. O totalitarismo precisava de uma máquina de destruição de pessoas para dar movimento à dominação total. Os judeus se tornaram as “cobaias” de teste para pôr em prática a “fábrica da morte”, nome dado por Hannah Arendt aos campos de concentração e o processo de extermínio. Eles foram o grupo que experimentou mais fortemente o mal absoluto do nazismo, tendo cerca de 4,5 a 6 milhões de mortos enquanto durou a guerra. Dessa forma, é importante tratarmos a respeito das razões pelas quais eles foram escolhidos como as vítimas do grande mal que assolou o século XX e a história da humanidade como um todo. Discorreremos também a respeito de alguns sofrimentos experimentados pelos judeus. É importante sabermos sobre tais acontecimentos para compreendermos os efeitos do mal absoluto.

Um dos objetivos de Hannah Arendt ao discorrer a respeito do totalitarismo “era la de examinar los modos por los que el antisemitismo había dejado de ser un persistente prejuicio social para transformarse en una visión del mundo ideológica” (ARENDT, 2009, p. 22-23) e como isso se transformou num dos maiores massacres da história da humanidade. Entender “cómo esto había sido posible en Alemania y no en algún otro lugar” (ARENDT, 2009, p. 23) é uma dos cuidados que a autora toma no entendimento dos regimes totalitários.

Nas primeiras páginas de Origens do totalitarismo, nas quais Hannah Arendt trata a respeito do antissemitismo, ela nos mostra a propagação da “doutrina do ‘eterno antissemitismo’, na qual o ódio aos judeus é apresentado como reação normal e natural” (ARENDT, 2012, p. 31), como se matar judeus fizesse parte de um projeto natural da espécie humana. Essa visão foi utilizada fortemente por Hitler para disseminar o ódio ao povo judeu, a fim de que fossem desprezados por toda a sociedade e tidos como indesejáveis. Hannah Arendt nos mostra que essa ideia foi tomada pelos “antissemitas profissionais”, os quais diziam que “se é verdade que a humanidade tem insistido em assassinar judeus durante mais de 2 mil anos”, podemos concluir que “a matança de judeus é uma ocupação normal e até mesmo humana, e o ódio aos judeus fica justificado, sem necessitar de argumentos”

(ARENDT, 2012, p. 31), palavras que demonstram um sadismo nefando como argumento de justificação para o extermínio.

Essa ideia do antissemitismo parece ser aceita pelos próprios judeus, como nos diz Hannah Arendt, como uma “ideia consoladora de que o antissemitismo [...] podia ser um excelente meio de manter o povo unido” (ARENDT, 2012, p. 31), visão essa que ela considera um verdadeiro erro de interpretação. Para ela, “os judeus confundem o moderno antissemitismo com o antigo ódio religioso antijudaico”, intepretação que foi “responsável pela fatal subestimação dos perigos reais e sem precedentes que estavam por vir” (ARENDT, 2012, p. 32), fazendo com que os judeus não se preparassem para a cruel realidade que os assolou na metade do século passado. Mas por que os judeus foram escolhidos para sofrer este mal? Qual a peculiaridade desse grupo em relação aos demais?

Hannah Arendt apresenta um histórico a respeito do povo judeu e sua relação com a sociedade27, um povo que ascendeu com riquezas e privilégios no período feudal e permaneceu assim até o imperialismo do século XIX, quando “perderam então sua posição exclusiva nos negócios do Estado para homens de negócios de mentalidade imperialista” (ARENDT, 2012, p. 41), mas permaneceram com boa parte de suas riquezas. Dentre os aspectos fundamentais da escolha dos judeus por parte dos nazistas como “bodes expiatórios” do movimento de extermínio, destacamos dois motivos: em primeiro lugar, o fato de serem um povo rico, porém uma riqueza considerada egoísta, pois não tinha utilidade para o povo em geral, apenas para seu grupo. Em segundo lugar, por serem um povo sem um país próprio, sem um lugar que possam chamar de seu, são considerados um povo em território alheio.

Em relação ao primeiro ponto, Hannah Arendt nos mostra no início de seu livro, citando o exemplo ocorrido na França, que o povo só tolerava a riqueza da aristocracia porque ela vinha junto com o poder, pois este trazia “alguma coisa concreta para o bem comum” (ARENDT, 2012, p. 27). Ela chega inclusive a dizer que o povo pode “tolerar a exploração quando esta tem alguma função real” (ARENDT, 2012, p. 27). Mas a riqueza egoísta, sem função real para o povo, não é jamais tolerável. Por essa razão, “o antissemitismo alcançou o seu clímax quando os judeus haviam [...] perdido as funções públicas e a influência, e quando nada lhes restava senão sua riqueza” (ARENDT, 2012, p. 27) e, baseado nesse crescimento por meio do acúmulo de riqueza, o totalitarismo disseminou a ideia de que os judeus pleiteavam a dominação mundial, dando ao antissemitismo um lugar central na ideologia nazista.

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Em segundo lugar, o fato de que os judeus eram um povo sem território próprio facilitou seu controle por parte dos nazistas. Quando um povo constitui uma nação, com seu próprio país, governo e leis próprias, com seu exército ou polícia de segurança, se tornam mais difíceis de serem controlados. Os judeus eram um povo dentro de um povo, uma minoria, cercada por uma grande massa. Dessa maneira, a disseminação do ódio para com os judeus ganhou bastante força, como se eles fossem parasitas infiltrados no meio do povo alemão, sugando aquilo que não lhes pertencia. O antissemitismo se caracteriza “como un conflicto natural surgido del hecho de que los judíos eran una entidad nacional separada y diferente de las naciones entre las cuales vivían” (ARENDT, 2009, p. 69). Eram apenas um povo que deveria ser exterminado pelo simples fato de existir, para dar vida ao movimento. Para Souza, as minorias sofreram bastantes repressões políticas na Europa por não terem sido identificadas enquanto nações, por isso ele escreve:

Caracteriza o totalitarismo [...] a busca incansável por inimigos a serem destruídos, minorias a serem liquidadas pelo simples fato de existirem. Funcionou como ponto de partida de tal processo o fato de as minorias européias terem sido definidas como comunidades religiosas e culturais, não como nacionalidades. (SOUZA, 2007, p. 248-249)

Segundo Hannah Arendt, nos anos que antecediam a Segunda Guerra Mundial, os judeus “foram os últimos a perceber as circunstâncias que os arrastavam para o centro do conflito”, não “souberam avaliar o antissemitismo”, nem “reconhecer o momento em que a discriminação se transformava em argumento político” (ARENDT, 2012, p. 53), talvez por estarem acostumados com um antissemitismo histórico, mas não imaginavam a que nível esse preconceito racial seria levado por parte dos nazistas. O mal extremo do partido de Hitler haveria de colocar os judeus como vítimas do primeiro assassinato em massa de grupos inteiros, no crime depois especificado como “genocídio”, o qual trataremos no próximo capítulo.

O mal que recaiu sobre os judeus os fez passar por cruéis tormentos e extermínios como se fossem pragas na sociedade. Eles foram vítimas de um sofrimento físico que recebeu alguns nomes como holocausto ou Shoah. Magalhães nos fala a respeito desses termos. Quando ao “holocausto”, esse “é um termo impreciso, quase um eufemismo”, pois o holocausto dizia “respeito aos sacrifícios de animais que se faziam aos deuses, logo, um ato voluntário dedicado ao Sagrado” (MAGALHÃES, 2001, p. 63). Todavia, “nem o elemento religioso nem qualquer hipótese de livre opção estiveram presentes, fossem da parte das

vítimas, fossem dos perpetradores” (MAGALHÃES, 2001, p. 63), não ocasionando um ato voluntário. Quanto ao termo Shoah “significa extermínio, catástrofe, devastação, pressupondo um castigo” (MAGALHÃES, 2001, p. 63) enviado por Deus como punição aos judeus, termo que também “não se aplica, porquanto as vítimas não foram presas por algum erro ou crime e, mesmo que o tivessem sido, a pena não era executada em nome de um mandato divino” (MAGALHÃES, 2001, p. 63). Embora esses termos possam ter sido usados pelos judeus ou por outros, o fato é que houve um extermínio em massa, que o direito haveria de denominar “genocídio” nos julgamentos de Nuremberg e de Eichmann em Jerusalém, e que milhões de vidas foram ceifadas de forma impessoal e por motivos totalmente banais.

Se quisermos dar um nome verdadeiro ao que os judeus sofreram, podemos realmente chamar de tortura, tanto física quanto psicológica. Crime, genocídio, trabalho escravo, pressão psicológica são alguns nomes que Magalhães analisa28 a respeito do sofrimento judeu. Além dessas coisas que já são bastante cruéis, os judeus ainda sofreram nos campos de concentração e extermínio humilhações, danos morais, bem como foram usados para fins científicos, tendo que passar involuntariamente por testes dolorosos e perigosos, além de insanos, desnecessários e totalmente sem sentido. Isso caracteriza o mal absoluto, talvez o melhor termo para descrever os regimes totalitários encontrado por Hannah Arendt.

Os sofrimentos morais pelos quais os judeus passaram, para além de todo o terrível sofrimento físico, tornou o próprio suicídio algo banal29. Os judeus, antes mesmo dos campos de concentração, por tudo que já vinham sofrendo, encontraram na interrupção da própria vida uma maneira de livrar-se de seus sofrimentos. O impacto de uma ação como o suicídio pareciam não os preocuparem. Como sabemos, por vezes, nem o poder o dinheiro ou o fato de pertencer a uma religião, são suficientes para dar forças às pessoas para lutar contra os problemas sociais que enfrentam no dia a dia. Os judeus são a prova viva de que o massacre social, causado pelo mal absoluto, é uma fonte de extermínio. Conforme Arendt:

[...] nossos suicidas não são rebeldes loucos que desafiam a vida e o mundo, que tentam matar em si próprios todo o universo. Sua forma de desaparecer é silenciosa e modesta; eles parecem desculpar-se pela solução violenta que encontraram para seus problemas pessoais. Em sua opinião, geralmente, os acontecimentos políticos não tiveram nada a ver com seu destino individual; em bons ou maus tempos eles acreditariam unicamente em sua personalidade. Agora eles encontram algumas deficiências misteriosas em si próprios que os impedem de conviver. Tendo sentido

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Cf. MAGALHÃES, 2001, p. 65-66.

29 Entenda-se o termo “banal” no mesmo sentido que será relacionado com o tema do mal no terceiro capítulo.

Não é uma diminuição do que os judeus sofreram, ou um menosprezo pelo que fizeram com suas vidas, mas sim uma relação com as motivações que os levaram a cometer suicídio.

que tinham direito a um certo padrão social desde a sua tenra infância, eles são considerados fracassos aos seus próprios olhos caso esse status não possa ser mantido. Seu otimismo é a vã tentativa de manter a cabeça fora da água. Por trás dessa fachada de alegria, eles lutam constantemente com seu desespero. Finalmente, eles morrem de um tipo de egoísmo. (ARENDT, 2016, p. 483-484)

O antissemitismo e o massacre dos judeus foram uma realidade concretizada pelos nazistas para pôr em prática o movimento totalitário. Mas não seria possível que eles tivessem realizado tal extermínio, fosse dos judeus, fosse de outros grupos, se não tivessem conseguido o apoio das massas que formavam a sociedade alemã. Dessa forma, por meio da propaganda, os regimes totalitários puseram em prática a conquista das massas, tornando-as supérfluas, efeitos do mal absoluto.

No documento A propósito do mal em Hannah Arendt (páginas 51-55)