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CAPÍTULO 1: ESPAÇO MITOLÓGICO

1.5. Geografia Xamânica?

Todo o cosmos e a vida material, conclui-se, está organizado e sistematizado a partir de uma tradução do espaço mitológico. CAYÓN (2012, p. 170) fala em uma geografia xamânica, a qual teria sido gestada na viagem da Cobra-Canoa ancestral. A realidade ecológica, nesse sentido, na cosmovisão Tukano Oriental, segundo REICHEL-DOLMATOFF (1981), seria, assim, eminentemente xamânica, no sentido de

que é apenas inteligível se se tem em conta os “lugares” mitológicos. Ou, como afirmou CAYÓN (2012, p. 171), a geografia xamânica deve ser vista como elemento estruturante da realidade, vinculando intrinsecamente todos os seres com o ambiente em que habitam, dando-lhes, por conseguinte, um lugar específico no cosmos e em relação uns aos outros. Por exemplo, trata-se de conceber as Casas de Transformação não somente como lugares sagrados, já que compõem as falas e a história mitológica de um povo, mas como parte do cosmos e do própria construção dos corpos das pessoas. Nesse sentido, estudar os espaços e os lugares no alto rio Negro seria um convite à compreenção da construção das pessoas. O xamanismo, isto é, a capacidade de intermediar a transformação ancestral e a transformação histórica seria, nessa seara, o mecanismo fundamental de conexão (CAYÓN, 2008).

O domínio e a capacidade de manejo e controle do espaço mitológico seria, em última instância, a fonte suprema de prestígio e poder. A inexistência, no contexto do alto rio Negro, de fronteiras inquebráveis e rígidas; a inobservância do uso exclusivo dos recursos naturais; e o caráter segmentar das unidades sociais (CAYÓN, 2012, p. 169); tudo isso evidência que não é sobre o espaço físico, sobre o território físico, que o especialista Tuyuka exerce seu poder e estabelece seus mecanismos de controle. Em outras palavras, diferente do que se concebe entre os não-índios, em que é dado peso decisivo ao controle sobre o espaço físico, sobre o território, na maximização do exercício do poder, entre os Tuyuka o peso decisivo está no espaço mitológico. Ora, diferentemente do espaço físico, o qual pode ser usurpado mediante apropriação direta do território, no caso do espaço mitológico a desapropriação se dá por meios mais intrincados. Conforme o antropólogo e Tuyuka Israel Fontes Dutra (2010, p. 97) afirma, os missionários salesianos impactaram severamente o modo de vida quando impuseram a destruição das Casas Comuns (Malocas) e obrigaram os especialistas rituais (mestres de música e dança, benzedores e pajés) a abandonarem a vivência da ritualística ancestral. Não foi, nesse sentido, a mera chegada da missão salesiana ao Uaupés, isto é, da invasão do espaço físico, que se deu a inquietude na região. É na invasão do espaço mitológico, isto é, na quebra do mecanismo de transferência do mito à práxis, que reside o perturbante impacto.

Como mostrado, outra evidência da premência do espaço mitológico é a sua concepção enquanto saber de maior valor, niromakañe, conferindo àquele que melhor o domina prestígio e liderança (DIAS CABALZAR, 2010). O problema é que, uma vez

que a circulação desses saberes maiores se dá idealmente entre avós e netos, o recorrente deslocamento dos jovens aos colégios de modelo ocidental fora das suas comunidades tradicionais resultou em inevitável distanciamento destes dos conhecimentos dos “velhos” (REZENDE, 2007 p. 146). Nesse sentido, a preocupação com a perda do interesse dos jovens com relação aos saberes dos “velhos”, manifestada continuamente nas falas desses “velhos”, e a consequente iniciativa de construção de uma escola que fosse dirigida pelos próprios Tuyuka, por meio da qual seria ensinada a “cultura tuyuka”, como evidenciado pela fala do Tuyuka Higino Tenório (REZENDE, 2007 p.174), retrata bem a relevância da perpetuação do conhecimento tradicional:

“Quando começamos a pensar sobre a Escola Tuyuka estava comigo o meu irmão menor Chico Meira, de Cachoeira Comprida. Nós observávamos que os estudos (escola ocidental) estavam provocando o abandono de nossos lugares de origem, iam para o colégio dos missionários, em Pari-Cachoeira. Com isto, parecia que todas nossas comunidades estavam diminuindo muito em número de habitantes. Nós pensávamos fazer uma escola, um dia, porque nós acreditávamos que ajuda nós poderíamos encontrar, levando o nosso pensamento pra frente, sem parar, sem esquecer, falando com toda força sobre esse assunto(...)”

Vê-se, na fala de Tenório, que há notória preocupação com o abandono dos locais de origem. Tal abandono é visto, dentre outros fatores, como resultado da perda do interesse dos jovens pelos conhecimentos do seu povo e pela sua língua. Em outras palavras, a escola Tuyuka promoveria o fortalecimento da identidade Tuyuka de maneira sistemática e valendo-se da própria língua (REZENDE, 2007 p. 182), de maneira a garantir a permanência dos jovens nas suas comunidades tradicionais. Ao promover, portanto, a revalorização dos conhecimentos de maior valor, a Escola Tuyuka estaria consequentemente buscando fornecer acesso, aos jovens, ao espaço mitológico, ao espaço por meio do qual efetivamente se promove a tranformação do mundo material e histórico na cosmovisão Tuyuka. Ou, como o padre Justino Sarmento Rezende (2007, p. 91) bem pontuou, em referência à Escola Tuyuka:

(...) é uma Casa de Transformação, Novo Lago de Leite, pois dela nascem os Tuyuka, com outros ideais e práticas diferentes: construção das malocas, revitalização e fortalecimento dos cantos e danças, novos sentimentos de unidade etc... A Escola Tuyuka está levando os Tuyuka a se aproximarem dos valores da própria cultura, suas raízes, suas casas de transformação.

A Escola Indígena Ʉtapinopona-Tuyuka acabou sendo criada no início dos anos 2000, graças a uma parceria entre lideranças Tuyuka, arregimentadas no âmbito da Associação Escola Indígena Ʉtapinopona-Tuyuka, a Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro - FOIRN e o Instituto Socioambiental – ISA. Baseada em um modelo de escola diferenciada que buscava valorizar a identidade Tuyuka, principalmente por meio da difusão do conhecimento aos jovens a partir da língua Tuyuka, a Escola Tuyuka passou a colocar os nirõmakañe, isto é, aos saberes mais importantes, como o cerne do ensino (REZENDE, 2005, p. 182). A Escola Tuyuka passou, inclusive, em 2005, a oferecer até o ensino médio. Além da contribuição no âmbito do ensino, destaca-se o relevante trabalho dos colaboradores da Escola Tuyuka na produção de publicações as mais diversas que servem como um acervo cultural da etnia Tuyuka (VLCEK, 2017).

No contexto dos Tuyuka do Tupé, é relevante o fato de que alguns jovens, com destaque para Ivan, filho de Quintino, a liderança do grupo local, tenham cursado todo o ensino médio na Escola Tuyuka. O próprio Ivan diz que ter estudado na Escola Tuyuka permitiu que ele conhecesse em maior profundidade a sua língua e a sua cultura e se mantivesse próximo aos seus familiares. Lamenta, por outro lado, que seu diploma de ensino médio não tenha sido reconhecido pelo Ministério da Educação – MEC. Entre esses jovens do Tupé, não foi constatado que há consenso com relação aos benefícios da metodologia de ensino da Escola Tuyuka. Sempre que perguntados, havia frequente ambivalência nas opiniões.