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CAPÍTULO 1: ESPAÇO MITOLÓGICO

3. CAPÍTULO 3: O TUPÉ É O NOVO TIQUIÉ

3.3. Universo em Movimento

O que estimulou este pesquisador a compreender a descida dos Tuyuka até o Tupé foi, em última instância, o consuetudinário equívoco, notado nos diversos discursos que eram – e que ainda são - produzidos sobre aqueles índios, segundo o qual ser índio seria, antes, um modo de aparecer, uma identidade visual e locacional, e não um modo de ser e de se sentir nesse mundo. Essa constatação não é minha, é de Eduardo Viveiros de Castro, no artigo “Todo mundo é índio, exceto quem não é” (2006). Nesse brilhante texto, Viveiros de Castro vai além: ser índio, para o antropólogo, é algo além do estado de ser; seria, portanto, um “modo de devir”, no sentido de que não se está diante de um ser essencial e estável, de uma identidade fixa no espaço-tempo, mas de um ser em permanente construção e diferenciação. Todavia, diferentemente do que muitos possam pensar, essa incessante transformação não tem direção fixa, não ruma, nesse sentido, a uma conclusão inevitável, ou seja, à irremediável “aculturação” ou ao mundo “civilizado”. Ao contrário, a produção perpétua da diferenciação, numa lógica que coloca em embate o “velho” e o “novo”, o tradicional e a mudança, leva a lugares incertos, a arranjos totalmente inovadores, mas, acima de tudo, pulsantes.

Nesse sentido, uma das perguntas que essa dissertação se propôs a responder está de todo equivocada. Se o Tupé é ou não é lugar “de” ou “do” índio não faz o menor sentido (e tampouco faz alguma diferença; talvez o questionamento mais pertinente seria se o Tupé é lugar de branco, mas não se propõe aqui inverter as polaridades). De

qualquer forma, corre-se o risco, sempre, quando se produz etnologia, de se cair no lugar comum da cristalização de determinada identidade. Vamos então partir do óbvio: uma vez que os Tuyuka estão no Tupé, este é, por conseguinte, uma localidade que responde aos desejos e anseios daqueles que para lá se deslocaram. E ponto. Em tal caso, o correto questionamento seria: qual são os desejos e os anseios dos Tuyuka que “desceram” ao Tupé? Contudo, devemos reconhecer que os desejos e os anseios não são declarações individuais ou coletivas manifestadas no vácuo. Há, nessa perspectiva, uma miríade de condicionamentos e estruturas que, de alguma forma, vão dando forma e conteúdo às escolhas e aos discursos. Na visão deste pesquisador, é na noção do “movimento”, enquanto processo de construção dos corpos-alma do índio do Uaupés, que subjaz a decisão de migrar ao Tupé (assim como para tantas outras decisões). Numa perspectiva ampliada, seria o mesmo que dizer que o movimento de criação e transformação do Universo é processo similar ao movimento de criação e transformação da pessoa Tuyuka. CAYÓN (2010) definiu bem a ideia:

“O nascimento é um acontecimento cósmico não só porque todos os seres do universo estão vendo o parto, mas também porque é uma viagem dos confins do cosmos até o centro do mundo” (p. 290)

Como foi visto no Capítulo 1, a viagem da Cobra-Canoa de Transformação é um longo processo tanto de criação de espaços habitáveis quanto das próprias pessoas que irão habitá-los. Lugares e pessoas, dessa forma, operam numa lógica de cocriação. Conforme descrição dos acontecimentos e significados de algumas Casas de Transformação na trajetória mitológica, AEITɄ (2005, p. 127) relata que, na Casa da Formiga Lavapé (Yepamoawi), onde se situa no município de Barcelos/AM, ainda no baixo rio Nergro, os demiurgos notaram que a localidade estava cheia de formigas, não estando consequentemente propícia ao povoamento. Foi através do benzimento que os demiurgos lograram acabar com a praga e, assim, amansaram aquela localidade. Já numa perspectiva do tempo histórico, do tempo da humanidade, Cabalzar relata que, embora o rio Tiquié não fosse local próprio aos Tuyuka, o deslocamento perpetrado pelos Opaya, seguido da reiterada execução de benzimentos, danças e rituais acabaram por amansar a localidade, no mesmo espírito do processo levado a cabo na Casa da Formiga. Acredito que o mesmo processo acima descrito vem ocorrendo no Tupé. Em outras palavras, o movimento ao Tupé pelo por Quintino e sua família se insere nessa

longa trama de permanente transformação de pessoas e lugares. Para todos os fins, a Casa de Transformação nomeada Casa de Quarto de Leite (Opekõsawi), a qual se refere ao município de Manaus e adjacências, já era uma Casa de Tõko, casa de coisas boas, já devidamente amansada no contexto da viagem ancestral. Por sinal, foi nessa casa que os ancestrais dos Tuyuka, no passado mítico, começaram a dançar (AEITɄ, 2005, p. 124).

Não é demais lembrar que o movimento da Cobra-Canoa ancestral, quando da sua subida desde o Lago de Leite, no sentido Leste-Oeste, não foi aleatória. O formato dendrítico da rede de rios que compõem a bacia amazônica, na visão dos índios, se deve a uma grande árvore que teria sido derrubada. Nesse sentido, a Cobra-Canoa se desloca ao longo do caule e dos galhos dessa gigante árvore, até atingir o centro do universo, o local onde desembarcam em definitivo (ROTAS, 2012, p. 31). O Universo, nesse sentido, vai sendo gerado (e amansado, como vimos) a partir do deslocamento da Cobra-Canoa pelos galhos dessa imensa árvore. Em outras palavras, essa gigantesca árvore representa todo o Universo dos índios do Uaupés. Ela representa, portanto, a fronteira total de possibilidades de existência e manifestação do corpo-alma. Esse Universo corresponde ao que denominei, no Capítulo 1, de espaço mitológico. Não estou sendo ingênuo, e tampouco raso, a ponto de concluir que, ao Tuyuka, a bacia Amazônica é o limite dentro do qual se reconhecem enquanto Tuyuka; ou que os Tuyuka, nesse sentido, deixam de ser Tuyuka a partir do momento em que se distanciam dos seus lugares sagrados. Não é isso que quero dizer. O que quero afirmar é justamente o contrário. Não importa aonde o Tuyuka se encontre, seja essa localidade dentro ou fora da bacia Amazônica, ele estará sempre no seu “lugar”, uma vez que carrega seu Universo consigo, em pensamento. Em outras palavras, o Universo, o espaço mitológico, não é algo externo ao indivíduo Tuyuka; ele é, antes de tudo, um conhecimento, um bem imaterial, que é idealmente transmitido na linha agnática enquanto conhecimento de maior valor, conforme foi elucidado no Capítulo 1. E, como era de se esperar, os Tuyuka trouxeram consigo seu Universo ao Tupé.

O Tuyuka é um ser em permanente transformação e aperfeiçoamento. O deslocamento no espaço-tempo é ao mesmo tempo condição e meio para a sua transformação. Nesse sentido, corroboro com a ideia expressa no artigo escrito por ANDRELLO, GUERREIRO e HUGH-JONES, S. (2015, p. 708) segundo a qual seria mais acertado pensar os índios do Uaupés não tanto em termos do ideal da

descendência, como algo que já está previsto e dado, mas como povos baseados no ideal da “ascendência”, no sentido de algo que está em incessante edificação.