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CAPÍTULO II RELAÇÕES DE PODER E REPRESENTAÇÃO: DUAS FACES DA

3.1. Gestão Pública Participativa a partir da Constituição de 1988

É de conhecimento comum que a constituição só se converte em força efetiva se estiver presente na consciência geral do povo e principalmente dos seus governantes, e no processo histórico da constituição moderna, o conceito ideal e dominante de Constituição de Estado é aquele que corresponde às demandas da liberdade burguesa, com garantias como o reconhecimento dos direitos fundamentais, da divisão de poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) considerado como necessário de uma “constituição liberal e autêntica”.

Como está registrado em “O Federalista”, o termo Constituição firmou-se com os americanos na Revolução de 1776-1787 e posteriormente volta a ser tratado na Revolução Francesa de 1789, o que constitui uma contribuição ao Ocidente Contemporâneo. Assim, pode-se inferir que o constitucionalismo não apenas se originou das revoluções comentadas, mas que estas se caracterizaram pela proposição de controlar as arbitrariedades dos governos, submetendo o poder político às leis, limitando e especificando funções dos governantes, visando garantir “o direito de liberdade aos cidadãos e estabelecer a separação dos poderes” (LASSALE, 1998, p.29).

Hoje, mais do que a separação dos poderes há uma percepção de que a descentralização do poder também deve estar sustentada na distribuição de poder entre os entes federativos, nos quais o município é entendido como lócus privilegiado de intervenção das diferentes instâncias governamentais que atuam em escala local, se constituindo como uma base sobre a qual se desenvolvem iniciativas para o desenvolvimento sustentável.

Desde o Brasil Colônia, os governos locais eram alvos da ingerência do governo central e a idéia de autonomia, tão discutida na passagem do século XX para o século XXI só começa a ser timidamente discutida dentro da história brasileira, a partir

da primeira constituição republicana de 188126. Será apenas na Constituição de 1934 que o significado de autonomia será discutido mais explicitamente.

Em seu artigo 13, a Constituição de 1934 indica que “os municípios serão organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”, identifica que as instâncias dessa autonomia seriam no âmbito político, tributário, financeiro e administrativo. Tornam-se responsabilidades do município, a eletividade dos prefeitos (pelo menos na maioria dos municípios), e dos vereadores, assim como a definição dos impostos e taxas27. Outra responsabilidade atribuída aos municípios foi a de organização dos serviços de sua estrutura e a arrecadação e aplicação de rendas28, modificando a herança do centralismo imperial/colonial.

Na constituição de 1937, é retirado dos municípios o direito de eleger seus prefeitos29 só voltando a ser restabelecido na Constituição de 1946 (no seu artigo 28), muito embora os prefeitos das capitais, das instâncias hidrominerais e das bases e portos militares tenham permanecido sob a tutela estadual e/ou federal.

É interessante notar que no mesmo ano de 1937, foi elaborado o Plano Nacional de Educação, pelo Conselho Nacional de Educação, e a principal discussão constituída durante o processo de elaboração, foi a da descentralização, que já apontava os rumos para a municipalização do ensino.

De acordo com Bordignon (2009b) e Azanha (Apud, Bordignon, 2009, pp. 6-7) foi Anísio Teixeira um dos precursores dessas discussões:

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Essa Constituição em seu artigo 68 define que “os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”. Entretanto não há outras indicações ou definições sobre como essa autonomia poderia ser garantida e exercida.

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Os impostos de responsabilidade dos municípios seriam apenas os relacionados às licenças, imposto predial e territorial urbanos, o imposto sobre diversões públicas, o imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais, as taxas sobre serviços municipais. Também teriam direito à parcela de outros impostos, como o de indústrias e profissões.

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A constituição previa que o governo estadual poderia criar um órgão para prestar assistência técnica ou fiscalizar as finanças municipais.

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No artigo 27 a constituição determina que “o Prefeito será de livre nomeação do Governador do Estado”.

a municipalização do ensino primário oferecia vantagens de ordem administrativa, social e pedagógica. Quanto à primeira as razões são óbvias. Quanto à segunda, as vantagens adviriam do fato de o professor ser um elemento local ou pelo menos aí integrado e não mais um ‘cônsul’ representante de um poder externo. Quanto à terceira, residiria principalmente na possibilidade de o currículo escolar refletir a cultura local.

Essas discussões são vistas pelos autores como promissoras, apesar de terem sido interrompidas no mesmo ano de 1937, pelo advento do Estado Novo, que deliberou pela fragmentação das leis orgânicas. Foi apenas com a Constituição de 1946 que houve uma retomada dessa discussão que se consolida na primeira LDB de 1961.

Com o regime militar, a situação agrava-se e na Constituição de 1967, é reforçado o centralismo no Brasil e assim, a autonomia dos municípios sofre a ingerência das instâncias federais e estaduais, principalmente no âmbito tributário30, o que só se modificará com a Constituição Federal de 1988.

A mudança da Constituição de 1988 se torna possível em função do “movimento pela reforma urbana” já na década de 70 e do processo de redemocratização no país nos anos 80. Nestes processos, a autonomia dos municípios foi pauta unânime e central nas discussões políticas, sendo uma das primeiras conquistas a universalização da eleição direta para prefeitos, algo inédito durante séculos de formação política do Brasil.

Os municípios neste processo de democratização acabaram assumindo funções que anteriormente eram de exclusiva responsabilidade federal31, especialmente aquelas relacionadas aos serviços sociais. As repercussões são tantas que em relação à questão, a autonomia municipal é estabelecida na Constituição de 5 de outubro de 1988.

Os municípios, a partir de 1988, se definem como centro dos processos decisórios passando a ter autonomia política, administrativa, financeira e de gestão do espaço urbano.

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Um exemplo refere-se à responsabilidade de tributar a propriedade predial e territorial urbana e certos serviços não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados.

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Com a crise do Estado na década de 80 e a diminuição dos investimentos federais, sobretudo nas áreas sociais, vários municípios passaram a comprometer suas finanças na oferta de serviços sociais à população.

O argumento aqui pretendido chama a atenção para o fato de que a Constituição Brasileira de 1988 institucionalizou princípios que ampliam o papel dos municípios e principalmente o fato de que estes estão fundados nas prerrogativas da participação e do controle social. Há uma dupla novidade com a Constituição de 1988: a descentralização do poder que confere autonomia aos municípios e a criação de instrumentos de gestão pública participativa.

A influência que o texto constitucional exerceu nas políticas públicas que se seguiram no debate sobre participação e espaços públicos no Brasil, é altamente perceptível como atesta o trabalho de Luciana Tatagiba (2002). É possível observar no texto constitucional de 1988, “um conjunto de aspirações da sociedade civil no tocante à participação e à transparência na gestão pública, sendo o resultado dos processos de mobilização e das pressões exercidas por vários segmentos da sociedade” (LASSALE, 1998, p.29).

As diversas inferências ao exercício da soberania popular pela adoção da democracia participativa, pode ser visualizada no artigo 14 da Constituição Federal, que prevê a utilização dos mecanismos diretos de participação popular, como a iniciativa popular, o referendo e o plebiscito. Esses instrumentos viabilizam a implementação inicial e gradual da democracia participativa, reestruturando o modelo de delegação de poderes, instaurado pelo Estado Liberal.

São diversas as passagens da Constituição Federal de 1988 que tratam das normas de institutos participativos na Administração Pública.

O artigo 10 da Constituição Federal, por exemplo, determina que seja assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que os interesses profissionais ou previdenciários sejam objetos de discussão e deliberação. Essa regra é completada pelo artigo 194, inciso VII, que assegura o caráter democrático e descentralizado de sua gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados. Há também a garantia de participação para os casos das atividades de seguridade social desenvolvidas pela Administração em seu artigo 14, e o tratamento de normas básicas de organização dos Municípios que prevê a cooperação de associações representativas, no planejamento municipal, conforme o artigo 19, inciso

X, da Constituição Federal. Estes direcionam de forma genérica a adoção de institutos de participação popular pela Administração Pública dos Municípios.

Ainda há o artigo 187, da Constituição Federal, que estabelece que a atividade administrativa de planejamento da política agrícola será executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes. Já no artigo 198, inciso III, o texto da lei determina que as políticas, ações e serviços públicos de saúde devem ser organizados tendo como diretriz a “participação da comunidade”.

Outro artigo, o de nº 204, em seu inciso II da Constituição Federal, estabelece que os serviços públicos de assistência social devam ser organizados e executados mediante participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. E o artigo 205, estabelece que a educação é atividade que será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, sendo complementado pelo artigo 206, inciso VI, para o qual o serviço público de ensino contará com “ gestão democrática”, na forma da lei.

Outro artigo é de nº 225 que impõe a conjugação de esforços do poder público e da coletividade na defesa do meio ambiente, assim como o inciso 1º do artigo 227 estabelece que o Estado deve admitir a participação de entidades não governamentais na execução de programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente.

Por fim, através da Emenda Constitucional nº.19, a Constituição Federal delibera em seu artigo 37, inciso 3º, a introdução de uma norma geral sobre a participação popular na Administração Pública, ao estabelecer que: a regulamentação das atividades da Administração Federal, quanto a legislação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios têm notabilizado os institutos de participação.

Entretanto, mesmo caracterizando a descentralização, a Constituição de 1988 não garantiu os instrumentos necessários para a efetiva autonomia local, o que só ocorreu em 2001, 13 anos depois, com a criação do Estatuto da Cidade aprovado como lei de nº 10.527 em 10/07/2001. Neste estatuto foram regulamentados os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988 que tratam dos “instrumentos de política urbana municipal” e das “diretrizes gerais da política urbana”.

Em seu artigo 30, o Estatuto da Cidade, define o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, ao qual ficaram subordinados o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual municipal32. Além disso, inovou quando garantiu e exigiu, explicitamente, a participação da sociedade nos processos de decisão sobre da gestão urbana e orçamentária municipal, através de audiências públicas e da publicização dos documentos e informações.

É em seu artigo 44 que estabelece “a gestão orçamentária participativa” efetivada através da realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, definindo que os mesmos só poderão ser aprovados pela Câmara Municipal após apreciação popular.

No capítulo IV, o Estatuto da Cidade identifica os instrumentos necessários para a “gestão democrática da cidade”, que devem ir além das audiências e consultas públicas, incluindo os debates, as conferências e as iniciativas populares – sendo essas relacionadas a projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano33. Ainda no capítulo IV, indica a efetiva participação dos órgãos colegiados de política urbana.

O que se observa é que foi a partir do Estatuto da Cidade que efetivamente a gestão local se caracterizou como pacto urbano, passando a exigir uma efetiva participação dos conselhos municipais, do ministério público, das organizações governamentais e não-governamentais e dos diversos segmentos da sociedade civil organizada.

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O plano diretor foi tornado obrigatório não somente para cidades com mais de vinte mil habitantes. O Estatuto da cidade incluiu aqueles municípios integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, de áreas de especial interesse turístico, aqueles inseridos na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional e aqueles onde o poder público municipal viesse a utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal (o parcelamento ou edificação compulsórios, o imposto progressivo no tempo e a desapropriação).

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Para dotar as gestões locais de instrumentos capazes de tornar as intervenções eficazes, foram estabelecidos os “instrumentos da política urbana” no artigo 4º, dentre os quais se destacam aqueles voltados ao planejamento, como o próprio plano diretor, o plano plurianual (PPA), a lei de diretrizes orçamentárias (LDO), a lei orçamentária anual (LOA), os planos de desenvolvimento econômico e social, os planos, programas e projetos setoriais, o zoneamento ambiental, a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo e a gestão orçamentária participativa.

São vários34 os estudos que analisam a diversidade de instrumentos de participação popular, como o Orçamento Participativo, os Conselhos Gestores, as ouvidorias, entre outros.

Cada instrumento de gestão pública compartilhada tem implicações positivas e negativas, entretanto é inegável o caráter de resgate de cidadania de cada um deles, já que na medida em que recolocam os atores sociais como cidadãos atuantes e participativos, não apenas nas discussões, fiscalização e elaboração de projetos, efetivam os interesses da sociedade, como de responsabilidade compartilhada.

Essa possibilidade de participação e com ela a co-responsabilidade, está presente na Constituição, o que por si só não garante a efetiva gestão pública participativa, mas regulamenta e legitima essa nova cidadania.

Assim, é inegável que os conselhos, comissões e comitês participativos, audiências públicas; a consulta pública, o orçamento participativo, o referendo e o plebiscito são instrumentos concretos para a implementação do diálogo entre Administração e sociedade, o que não significa que desempenhem efetivamente seus respectivos, legais e democráticos papéis.

Neste sentido, o capítulo 5.2 a seguir apresenta a situação atual da gestão pública participativa na cidade de Aracaju, capital de Sergipe, identificando a circunscrição em que o objeto de estudo dessa tese, os conselhos municipais de educação, se definiu como escolha de estudo.

Como foi identificada em outros momentos, a participação no Observatório de Gestão Pública Participativa da UFS, possibilitou o questionamento sobre os procedimentos e mecanismos de gestão pública participativa em Aracaju e permitiu definir o Conselho Municipal de Educação como foco específico na tentativa de

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ABERS (2009); AVRITZER (2003); AZEVEDO S., GUIA V (2001); BUARQUE (1999); CALDERÓN (2002); PERISSINOTTO e FUKS (2002; 2006); CÔRTES, S. M. V. (2002); DAGNINO, E. (2002; 2006); DIAS (2000); DUTRA, O.; BENEVIDES, M. V (2001); FUKS (2005); GENRO, T.; SOUZA (2001); GRAZIA; RIBEIRO (2003); GOHN (2001, 2004, 2005, 2006); GOULART (2006); HOUTZAGER; GURZA LAVALLE; ACHARYA (2004); LAVALLE; CASTELLO (2009); LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO (2006); LÜCHMANN (2007, 2008); LUBAMBO; COUTINHO (2004, 2006); LUBAMBO; COÊLHO (2005); MARQUES, HANSEN et allii (2006); MARQUES (2005); MARQUES, V. T.; MENESES, N. et allii (2008); MILANI (2007); OLIVEIRA (2008); PIRES (2001); RAICHELIS (2006); SANO (2003); SANTOS (2003); SOUZA (2005); TEIXEIRA, E. C (1996); TEIXEIRA (2004); VITALE (2004a; 2004b); VITULLO (2000).

compreender os fenômenos na especificidade de Aracaju e posteriormente de sua relação com os outros conselhos municipais do estado de Sergipe.