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Gestar a população: biopolítica

Capítulo 2: Dispositivos de poder

3. Gestar a população: biopolítica

Eu sou Ninguém, a calma sem alma. Lobão, El Desdichado II

Como se pôde ler nas páginas anteriores, devemos ter em mente que o dispositivo disciplinar atravessou a sociedade burguesa e industrial nomeando o indivíduo, ou melhor, o corpo e o comportamento, como seu objeto de intervenção. Agora, desejamos adentrar em outro processo fundamental da trajetória genealógica, que promove um novo deslocamento das categorias de controle, originalmente focado nos corpos e visando a individualização, para então alcançar a dimensão da população, precisamente o momento da assunção de uma modalidade de poder que investe além do fator individualizante até os elementos totalizantes. O passo seguinte de Foucault é dissecar a biopolítica ou o biopoder como uma série de dispositivos

novos que aderem à mecânica disciplinar, estabelecendo-se uma nova descontinuidade.

As duas proposições genealógicas inseridas no tema da disciplina e do biopoder encontram seu denominador comum na questão da relação entre os saberes – a rede discursiva – e os poderes que incitam e produzem. No caso do poder disciplinar, o autor dirigiu sua atenção aos procedimentos de docilização dos corpos em espaços como a fábrica, a escola, o hospício, o exército, a prisão e o hospital. Mas quando se deparou com o funcionamento da sociedade, especialmente as condições de possibilidade da emergência de um discurso sobre a vida (e não mais exclusivamente um controle individualizado dos corpos), Foucault anunciou seu achado: o biopoder.

A tematização do biopoder surge no seminário Em Defesa da Sociedade, de 1976. Na aula inaugural, Foucault fez um relato sobre sua trajetória investigativa. Esse ano, para muitos interlocutores do autor, é especialmente importante por promover o deslocamento da questão do poder disciplinar, inaugurando a discussão acerca do biopoder:

[...] gostaria de pôr fim a uma série de pesquisas [...]. Eram pesquisas muito próximas umas das outras, sem chegar a formar um conjunto coerente nem uma continuidade; eram pesquisas fragmentárias [...]. Eram pequenas conversas sobre a história penal; alguns capítulos referentes à evolução, à institucionalização da psiquiatria no século XIX; considerações sobre a sofística ou sobre a moeda grega, ou sobre a Inquisição na Idade Média; o esboço de uma história da sexualidade ou, em todo caso, uma história do saber da sexualidade através das práticas de confissão no século XVII ou dos controles da sexualidade infantil nos séculos XVIII e XIX; a localização de uma gênese e de um saber da anomalia. (FOUCAULT, 2005, p.6)

As pesquisas empreendidas por Foucault tinham um traço determinante Como vimos, a genealogia subvertia o campo da história das ciências, imbricadas ao eixo conhecimento-verdade, em razão de sua percepção de estratégias discursivas e de enfrentamento de poder (FOUCAULT, 2005, p.213). Um passo decisivo será o deslocamento de um direito de espada – fazer morrer e deixar viver – para o direito de

fazer viver e deixar morrer, que emerge em meados do século XVIII e se consolida a

partir do século XIX (FOUCAULT, 2005, p.286-287 e 294):

A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E depois, a nova tecnologia [em meados do século XVIII] que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida. Ao que essa nova técnica de poder não

disciplinar se aplica é à vida dos homens, ou ainda, ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem-vivo. (FOUCAULT, 2005, p.289)

Era a primeira vez que Foucault se referia à política da população, tomando como premissa o controle de processos de vida e morte. Se o início do século XVIII foi marcado pela anátomo-política, a metade seguinte do mesmo século saudou uma nova organização que o autor nomeou de biopolítica. Os dois mecanismos revelam uma série de operadores: no caso da anátomo-política, consiste na série: Corpo – Organismo – Disciplina – Instituições; já a biopolítica supõe a série: População – Processos biológicos – Mecanismos regulamentadores – Estado (FOUCAULT, 2005,

p.298).

Em certo contexto, Foucault afirmou operar uma “ontologia crítica da atualidade”, o que Judith Revel nomeou de “uma ética da problematização” (REVEL, 2004, p.67). Portanto, o que se pode compreender por problematização, para Foucault?

O termo de problematização implica duas conseqüências. Por um lado, [problematizar] não é reformar, mas instaurar uma distância crítica. [...] Por outro lado, esse esforço de problematização não é, em absoluto, um anti-reformismo ou um pessimismo relativista. (REVEL, 2004, p.82-83)

Assumimos um posicionamento semelhante quando decidimos problematizar acerca da biopolítica, e mais diretamente uma biopolítica inserida nas medidas socioeducativas restritivas de liberdade, instituída em suas bases por dispositivos disciplinares, em um primeiro plano, e em segundo por uma proposta totalizante do modo de produção de subjetividades infratoras. Há que se ter em mente que os dois – poder disciplinar e biopoder – misturam-se na configuração de uma verdade sobre a delinquência. Essa é uma hipótese-chave a ser detalhadamente perseguida e sustentada nos próximos capítulos, dedicados ao objeto empírico.

Em seu estudo sobre o biopoder, Foucault sugeriu trabalhar com os dispositivos de segurança em vez dos disciplinares. Em sua definição, os dispositivos de segurança devem observar os espaços para este fim, assim como o problema do tratamento aleatório, uma forma particular de normalização e a correlação entre a técnica de segurança e a população (2008, p. 15). Para tentar elucidar isso, em 18 de janeiro de 1978, Foucault destacou as principais diferenças entre os dois dispositivos:

Dispositivos disciplinares (Vigiar e Punir)

Dispositivos de segurança (Segurança, Território, População) Centrípeto (circunscreve espaços de controle)

Princípio do controle pleno

Codificação entre permitido e proibido, especialmente em um sistema de legalidade do que é proibido.

Centrífugo (tendem perpetuamente a ampliar) Princípio do laissez-faire (deixar fazer)

A regulação entre proibido e permitido (obrigatório) passa a operar por meio de uma regulação da realidade e não só por um sistema de legalidade.

“A liberdade nada mais é que o correlativo da implantação dos dispositivos de segurança” (2008b, p.63)

Elementos extraídos da aula de 18 de janeiro de 1978

Os dispositivos disciplinares regem-se por ações de decomposição e análise dos indivíduos, lugares, tempos, gestos, atos e operações (FOUCAULT, 2008b, p.74). Em seguida, os dispositivos classificam suas identidades com o objetivo de acederem à ordem mais produtiva e ao controle permanente. A partir dessa operação da norma, nomeada por Foucault de normação (2008b, p.75), é que são estabelecidos os indivíduos com enquadre normal ou anormal (nomalização).

A análise dos processos de variolização (inoculação da varíola no indivíduo) e vacinação entre os séculos XVIII e XIX levou Foucault a pensar numa nova gama de dispositivos que estavam na origem dos Estados modernos. Os dispositivos de segurança presentes na implementação de medidas de largo alcance populacional, como as políticas de variolização e vacinação, assumiam o compromisso de tomar o controle da população por meio de uma “polícia médica” (2008b, p.78). Entram em cena as noções de caso (modo de coletivizar a doença para uma análise da população); de risco (e do estabelecimento de fatores preventivos); de perigo (com a definição dos riscos identificados em zonas mais ou menos propensas); e de crise (fenômenos de disparadas regulares e circulares que podem ser controlados artificialmente ou por mecanismos naturais e superiores) (Idem, p.81).

Surgidos nos mecanismos de administração dos processos endêmicos e epidêmicos de largo alcance e alta mortalidade populacional, os dispositivos de segurança foram replicados pelos Estados modernos em todos seus feixes de governo. O aparato de saberes médicos administrativos e as relações de poder engendrados nos dispositivos de segurança mostra que para normalizar uma ação é preciso ter seu fenômeno mapeado e estatisticamente definido.

Enquanto os mecanismos disciplinares referem-se a uma operação de

normação, já que o caráter semântico a que se interroga é a respeito da norma, os

dispositivos de segurança estão vinculados às operações de normalização, em que primeiro se inferem os efeitos entre o normal e o anormal para só então se decantar a norma no interior das normalidades. Os dispositivos de segurança são, portanto, efeitos de normalização (FOUCAULT, 2008b, p.83).

A razão de Estado foi a tecnologia política que mais incrementou os mecanismos de controle através da segurança, do estabelecimento militar e diplomático do território e, não menos importante, visou o conjunto de ações dos cidadãos. Foucault resgatou manuais de polícia, rompendo com a racionalidade de Maquiavel, que focava no governante, e sublinhou que o grande mote da razão de Estado seria tomá-lo como fim em si mesmo.

Os textos publicados postumamente por Boulainvilliers26 auxiliaram Foucault (2005, p.152-153) a perceber o espectro de discussões que buscavam, de certa forma, entender as causas internas do declínio do poder romano e o apogeu de uma razão de Estado moderna: a de que o Estado deveria se posicionar na possibilidade de uma guerra, mantendo latentes seus mecanismos belicosos, certa economia de guerra e a tensão de uma revolta iminente (FOUCAULT, 2005, p.187 e 191-192). Além de um governo perene em vigilância, Foucault encontrou, em outro polo, o avanço de uma sorte de saberes político-administrativos. Conforme interpretam Dreyfus e Rabinow:

O objeto a ser compreendido pelo saber administrativo não eram os direitos do povo nem a natureza da lei divina ou humana, mas o próprio Estado. [...] A história, a geografia, o clima, a demografia de um país específico tornaram-se mais que meras curiosidades. [...] O governo, particularmente o aparelho administrativo, necessitava de uma saber concreto, específico e mensurável a fim de operar eficientemente. [...] A nova racionalidade política do biopoder era conectada às ciências humanas empíricas nascentes. (DREYFUS e RABINOW, 2010b, p.181-182)

A questão da razão do Estado é parte fundamental da perspectiva biopolítica e também valiosa para nossa tese. Entendemos que, no governo de hoje, os mecanismos biopolíticos encontraram aliança nos procedimentos disciplinares já explicitados. As relações de saber-poder, que já se manifestavam nas diversas formas e particularidades de punir individualmente o corpo, seguem em franca ampliação de tecnologias de governo das massas. Até hoje as políticas de “bem estar”têm similitudes com o que se viu na época dos manuais de polícia, caracterizados pela

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estratificação dos grupos populacionais a serem guiados pela educação e pelo trabalho. Conforme Foucault esclarece em O Sujeito e o Poder (1982), mesmo que estejamos sempre nos referindo ao poder, suas estratégias e seus dispositivos, no final das contas, o eixo norteador de sua investigação é o sujeito, que é legitimado nas relações trabalhadas pelo autor durante anos. Nesse texto, Foucault reitera não só os elementos de constituição do Estado, em termos de políticas belicosas, defesa de território e mesmo sua expansão, mas também investe na análise do modelo pastoral cristão, no qual é preciso assegurar a salvação (ou em termos de governo, a conduta) de todos e de cada um. O bom pastor conhece seu rebanho, mantendo-o coeso:

Essa forma de poder é orientada para a salvação (por oposição ao poder político). É oblativa (por oposição ao princípio da soberania); é individualizante (por oposição ao poder jurídico); é coextensiva e em continuidade à vida; está ligada à produção da verdade – a verdade do próprio indivíduo. [...] De certa forma, podemos considerar o Estado como a matriz moderna da individualização ou uma nova forma do poder pastoral. (FOUCAULT In DREYFUS e RABINOW, 2010b, p.280-281)

As questões do poder pastoral e da razão do Estado fazem par na constituição dos estados modernos. Podemos supor que, no mote da articulação entre dispositivos de esquadrinhamento dos corpos e de controle e organização da população, insere-se agora mais uma precisão foucaultiana: trata-se dos dispositivos que se valem dos anteriores, ou seja, não se abandona o poder disciplinar, tampouco o biopoder, mas se reatualizam dispositivos já consolidados para fins de regulação das condutas ou, nas palavras de Foucault, para a sedimentação de uma política que “conduz as condutas”.