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Após tratar de uma possível “descoberta do espectador” (FISCHER-LICHTE, 1993), que viria a transformar radicalmente a comunicação teatral, a autora chega, em sua última obra publicada já em diversos países das Europa, a colocar o espectador, finalmente, em relação com a estética da performatividade (FISCHER-LICHTE, 2014), suas funções e os lugares que ocupa na cena contemporânea.

2.2.9 Giacchè: antropologia do espectador

Dentre os enunciados propostos pelo antropólogo italiano Giacchè sobre o espectador, aqueles relacionam-se com a presente pesquisa são os conceitos de “identidade de espectador” e de “história do espectador”.

Tomando as referências do autor à identidade de espectador, é possível depreender que pensar em uma seria levar em conta tudo aquilo que antecede e também tudo aquilo que possivelmente dará sequência ao acontecimento cênico em si, retirando do aqui e agora do acontecimento cênico não sua potência como “evento” (Sauter), como “relação” (De Marinis) ou como “acontecimento” em si (Giacchè), mas conferindo-lhe a amplitude presente nos conceitos de “processos de recepção” (Orozco-Gómez), de “espectador como ressonador” (Mervant-Roux), chegando até uma concepção de “identidade de espectador” (Giacchè), tecida nos entrelaçamentos espaço-temporais do antes, do aqui-agora e do depois.

Não pretendo traçar as filiações com as ciências sociais das quais, obviamente, as colocações de Giacchè são fruto, embora não possa esquecer de mencionar a centralidade do conceito de identidade em todos os estudos culturalistas, dos clássicos aos pós-estruturalistas.

Pensemos aqui alinhados à concepção de Hall (2002), nas identidades como processos sempre inacabados e voláteis, que ao mesmo tempo em que são determinados pelas superestruturas conjunturais, culturais e psíquicas, conferem autonomia (não absoluta, por suposto) aos sujeitos, ao afiliarem-se e desafiliarem-se a determinados discursos e práticas ao longo de suas vidas, (re)constituindo-se sempre outros, sempre na derrisão.

Esse protagonismo (atravessado por inúmeras linhas de força, é preciso lembrar) dos sujeitos na constituição de suas identidades também é exposto por Giacchè ao pensar no espectador autônomo, possibilidade essa ainda muito recente no campo das artes, que até pouco tempo sempre tomou o espectador como passivo. “Referir-se à identidade do espectador responde,

portanto, à necessidade de focalizar a autonomia do sujeito espectador no interior da relação teatral” (GIACCHÈ, 1991, p. 92).

Dentre suas pesquisas antropológicas, aquela voltada a entender as identidades de espectadores buscou, através de histórias de vida narradas pelos próprios sujeitos, definir como, em determinados contextos, as pessoas se constituem como espectadores. Nesse sentido, as propostas de Giacchè coadunam com aquelas colocadas por esta tese, ainda que não partamos necessariamente da metodologia de pesquisa baseada nas histórias de vida e sim de flashes de experiências espectatoriais vinculados ao contexto da pedagogia das artes da cena. 2.2.10 Sauter e Reason: metodologias empíricas de pesquisa com espectadores Sauter e Reason são dois pesquisadores praticamente desconhecidos no Brasil, mas que se dedicam às metodologias empíricas de pesquisa de recepção cênica há algumas décadas. No caso de Willmar Sauter, acadêmico experiente da Universidade de Estocolmo, tratamos de uma carreira de mais de quarenta anos. Já o escocês Reason trabalha há duas décadas no Reino Unido com abordagens metodológicas empíricas de pesquisas de recepção. Sauter (2000), ao longo dos anos 80 e 90, desenvolveu abordagens metodológicas significativas na pesquisa com espectadores de teatro na Suécia: uma espécie de grupo focal, que ao longo de um tempo horizontal (um ano ou uma temporada teatral, por exemplo), desenvolvia encontros para conversas relativamente informais após a assistência a espetáculos. Esses encontros promoviam uma construção de significados e sentidos a partir do confronto de diferentes grupos com uma mesma performance. De clara inspiração sociológica e com uma abordagem também da psicologia comportamental, os estudos de Sauter (2000) nos legam uma inegável ferramenta metodológica para os estudos de recepção. Contrariando uma das correntes hegemônicas dos estudos de recepção nas últimas décadas do século XX, a semiótica, Sauter assume, como outros acadêmicos já citados nesse trabalho, que as análises dos signos realizadas pelos acadêmicos vinculados à semiótica não dariam conta de mensurar ou avaliar as experiências dos espectadores reais com as performances cênicas. Ele, no entanto, dá uma resposta concreta à falta de viabilidade metodológica da semiótica nas pesquisas de recepção cênica, através da sistematização de novas metodologias e da divulgação dos resultados de suas pesquisas empíricas com espectadores teatrais.

O acadêmico, ao seguir seus estudos, vincula-se também aos conceitos da hermenêutica de Gadamer e à fenomenologia. Muito embora ele deixe claro que a hermenêutica foi utilizada por ele e por um grupo de colegas nas aulas com alunos de teatro na universidade, a fim de instrumentalizar o olhar desses e as avaliações desses alunos a partir das performances cênicas. Ou seja: a hermenêutica no processo apresenta-se como um recurso pedagógico na formação de profissionais da área, assim como comumente a semiótica vem sendo utilizada para instrumentalizar futuros professores de artes no Brasil (ver análises do Capítulo 5 da tese). Reason (2004, 2010) vem investigando em sua carreira metodologias de construção de dados para pesquisas de recepção: do desenho infantil às narrativas escritas, passando pela instigante pesquisa sobre empatia kinestésica realizada no Reino Unido em parceria com Dee Reynolds (essa última comentada anteriormente). Suas pesquisas com jovens e crianças estão em consonância, em diversos aspectos, com a pesquisa que realizei nos primeiros anos dos 2000 com crianças espectadoras. Traço um paralelo entre elas, juntando ainda a este grupo o trabalho de recepção com crianças da italiana Mafra Gagliardi (2007). Existem inúmeras linhas de aproximação com a metodologia que sigo nesta pesquisa doutoral e aquelas desenvolvidas e exploradas por estes dois autores, mesmo que a ferramenta de construção de dados desta tese tenha sido um questionário. Muitas das análises desenvolvidas nos capítulos vindouros relacionam-se às propostas empíricas dos dois pesquisadores. Portanto, julgo pertinente apontar, ainda que brevemente, sua importância no panorama das pesquisas de recepção com as quais contatei nos últimos anos. 2.2.11 Pupo, Desgranges, Cajaiba, Massa e Mostaço: pesquisas brasileiras em mediação cultural, pedagogia do espectador e recepção teatral

A este espaço trago uma menção a cinco professores e pesquisadores brasileiros que têm colaborado significativamente ao campo dos estudos de recepção cênica, cada um a partir de diferentes vieses teóricos e metodológicos, focando em objetos e conceitos diversos em suas produções.

Maria Lúcia Pupo (2011, 2015), professora da USP, tem desenvolvido na última década um pertinente e instigante trabalho investigativo sobre mediação cultural, relacionando principalmente experiências brasileiras àquelas realizadas na França. Ainda que esse não seja o tema dessa tese, há

linhas de convergência e pontos de encontro entre formação de professores como espectadores e mediação cultural, por isso ela integra o grupo de brasileiros aqui mencionados. Flávio Desgranges (2003, 2012), também professor da USP, é pioneiro na produção acadêmica brasileira focada nas pedagogias do espectador. Claudio Cajaiba (2014), professor da UFBa e um dos orientadores dessa tese, desenvolve há mais de uma década pesquisas relacionando estudos hermenêuticos e teoria da recepção ao estudo da recepção cênica propriamente. Na mesma linha de pesquisa, atrela aos estudos de recepção literários de origem alemã, encontramos o trabalho de Clóvis Massa (2008), professor da UFRGS. Já Edélcio Mostaço (2015), professor da UDESC, ainda que fortemente ligado às mesmas teorias da recepção dos supracitados, desenvolve análises de cunho notadamente marxista e é crítico de teatro há muitas décadas, o que o coloca também em outro espaço analítico e pragmático, diferenciado do outro grupo de acadêmicos mencionados.

Cabe aqui, a partir desses autores, uma breve diferenciação entre três termos, que ainda estão em construção no Brasil, mas que já são usados e difundidos em diversos trabalhos acadêmicos: mediação cultural (ou artística), recepção cênica (ou teatral) e pedagogia do espectador. Conforme Maria Lúcia Pupo (2011), mediação cultural (ou artística) “diz respeito a um profissional ou instância empenhados em promover a aproximação entre as obras e os interesses do público, levando em conta o contexto e as circunstâncias”, e em última análise “mediar a relação entre o público e a obra implica a realização de esforços visando à aprendizagem da apreciação artística por espectadores pouco experimentados” (PUPO, 2011, p. 114). Segundo a pesquisadora, há vínculos intrínsecos entre a mediação cultural, atividade do campo das artes a priori, e o campo educacional, sendo que essa figura dimensionada pela mediação cultural, do artista-pedagogo, que vem sendo apresentada como desejável em diversos países do mundo [sic] faz parte também do sistema de formação de professores de teatro e dança no Brasil. Essa é [...] uma vertente que caracteriza a formação docente na esfera artística em nosso país. Espera-se do profissional especializado na arte teatral que faça pontes entre a escola e as artes da cena; uma dupla competência, artística e pedagógica, reunida em um único profissional, deve ser dinamizada tendo em vista a formação de indivíduos familiarizados ou até mesmo envolvidos com a esfera artística. (PUPO, 2011, p. 114)

No Brasil, o conceito de pedagogia do espectador (que tem sido usado no plural na presente pesquisa por questões metodológico-conceituais) começa a ser discutido a partir da tese doutoral de Flávio Desgranges (2005), que em seguida transforma-se num livro chave para compreensão e criação da própria área. Não havia até então estudos que abordassem o tema do espectador em

sua intersecção com a educação de forma tão direta, central e objetiva. Mais do que esmiuçar o conceito apresentado pelo autor – que é amplo no sentido de pensar a função ativa e autoral do espectador, 1) a partir do filósofo alemão Walter Benjamin e de seu conceito de experiência, 2) das proposições do trabalho do espectador do também alemão Bertold Brecht, 3) cruzando com a descrição de experiências pedagógicas concretas realizadas no estado de São Paulo e 4) junto ao Teatro da Montanha Mágica de Bruxelas, na Bélgica, entre outros – gostaria de frisar a importância do trabalho de Desgranges para o campo das artes da cena e da educação no país.

Ainda que nesta tese o professor paulistano não seja um autor recorrente, cumpre notar sua importância seminal para que esses estudos se desenvolvam no Brasil, bem como para que a discussão ganhasse espaço em setores da academia e da formação de professores nas redes educacionais. Ou seja: tratamos aqui de (im)possíveis pedagogias do espectador, de modos de constituição de espectadores e de experiências espectatoriais constituídas, debatidas, problematizadas ou promovidas no âmbito do ensino de teatro e dança no Brasil, em suas diversas facetas e possibilidades ainda a serem exploradas.

Segundo Cajaiba (2014), os estudos de recepção, ou seja, aqueles concernentes às funções e experiências dos espectadores em relação com obras de arte, viveram uma espécie de crescimento exponencial a partir da década de 70 com a disseminação dos estudos vinculados à teoria da recepção literária (de origem alemã) no Brasil. No entanto, esse autor frisa que, muito antes, o espectador já era matéria de especulação de campos e estudo como a hermenêutica e a estética. Sua tese e o livro decorrente dela especulam esses longos processos epistemológicos na tradição teórico-acadêmica europeia e brasileira.

Outro pesquisador brasileiro que se dedicou a viés analítico similar, desenvolvendo pesquisas baseadas nos meandros da teoria da recepção literária e dando sequência a outras incursões na investigação e (principalmente) na docência na área de recepção cênica é Clóvis Massa (2008), contemporâneo de Desgranges e de Cajaiba no desenvolvimento de suas teses doutorais, em meados dos primeiros anos dos 2000. Mostaço (2015) acaba de publicar uma coletânea de sua produção teórica dos últimos dez anos sobre recepção teatral, um panorama de cunho teórico e crítico de seu trabalho como professor e crítico de teatro. No entanto, cabe salientar que Mostaço é um acadêmico de carreira consolidada, com significativa produção sobre a interface entre teatro e política no Brasil ditatorial, entre outros. O trabalho com recepção cênica é uma das facetas de sua produção teórica.

Todos os quatro (Cajaiba, Desgranges, Massa e Mostaço) foram citados em algum momento (ou em mais de uma ocasião) nas respostas dos professores depoentes. Assim sendo, podemos depreender que, além de significativa produção teórica e escrita, eles desenvolvem a dimensão do ensino fortemente impregnada pelos estudos de recepção em seus diversos vieses, sendo assim referências como pesquisadores e docentes no Brasil.

Massa dedica-se a cursos sobre recepção teatral em programas de pós-graduação e na graduação, além de orientar diversos trabalhos acadêmicos no estado do Rio Grande do Sul. Desgranges, segundo dados de diversos depoentes dessa pesquisa, ministra disciplina junto à graduação em teatro da USP voltada aos conteúdos das pedagogias do espectador e ação cultural. Ainda de acordo com os depoimentos, Mostaço atua junto a programas de pós-graduação ministrando disciplinas relativas à temática e orienta mestrandos e doutorandos na área em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. O trabalho de Cajaiba junto ao PIBID Teatro da UFBa nos últimos anos, voltado para a dimensão da recepção nas escolas públicas soteropolitanas, também está presente nos comentários dos depoentes.

Já Pupo não pode ser vinculada estritamente à temática da mediação cultural, que vem desenvolvendo recentemente, na última década de sua carreira docente, por ser uma acadêmica com estreitos elos com toda a constituição da própria área do teatro e da educação no Brasil, tendo desenvolvido pesquisas profícuas sobre jogo, improvisação, teatro infantil, práticas pedagógicas interculturais em teatro, entre outros, até finalmente interessar-se pela mediação cultural e teatral. Entretanto, suas contribuições são já valiosas à área.

2.3 CONCLUSÕES: TEORIAS E METODOLOGIAS DE LÁ PARA CÁ E VICE-VERSA

Ao concluir esse capítulo, de caráter de problematização metodológica e de revisão de teoria, gostaria de frisar sua importância na tessitura dessa tese de doutorado e também nos meandros de minha constituição subjetiva e identitária. Se o percurso de uma pesquisa é a pesquisa em si, se pesquisar desenvolve-se em ato munido de desejo e não somente em protocolo, se o pesquisador se faz pesquisador ao pesquisar, se o vir-a-ser da pesquisa é herança e traição daqueles que a antecederam, a presente investigação apresentou-se como um longo e profícuo período de descobertas, de encontros, de novas afiliações, de resgates, de abandonos e de compilação. A inspiração dos percursos metodológicos aqui empreendidos, tanto na construção e dados como nas análises, como na escolha de determinados focos investigativos que podem ser considerados quase paralelos ao objeto central do estudo, mas que, no entanto, o complementam, está nitidamente vinculada a meu percurso com pesquisadora na universidade há mais de uma década. A influência de estudos de cunho culturalista, tanto da área da sociologia como aqueles vinculados aos estudos culturais (os de origem inglesa e aqueles latino-americanos) é presente em toda a tese, dos capítulos contextualizadores que flertam com a aproximação sociológica àquele que foca determinantemente nas relações educacionais. A presença citada deve-se aos percursos pessoais de pesquisa que trilhei ao longo de minha carreira acadêmica. Portanto, essa é uma tese na intersecção entre os campos das artes da cena e da educação, proeminentemente: uma tese vinculada à área que se convencionou chamar no Brasil, de maneira ampla, de Pedagogia das Artes Cênicas.

Contudo, os anos de pesquisa construindo estudos de recepção em teatro, em que me amparei preferencialmente nas teorias dos estudos culturais em comunicação (estudos de recepção dos media, por exemplo), deixaram-me desejosa de aprofundar-me nos estudos de recepção desenvolvidos dentro do campo das artes cênicas, estudos que se nomeiam como de teatro, dança, artes da cena ou performance, ainda que herdeiros, eles também, de diversas correntes teóricas. E assim o fiz: munida de desejo de pesquisa empírica nas artes da cena e na construção de identidades de professores como espectadores, lancei-me a uma busca bastante vasta de bibliografia na área, e um autor apresentava-me a outro, em uma sequência de leituras e de estudos que me absorveu durante os primeiros anos de doutoramento e me alimentou na construção dos