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O gigante quis apenas dar um susto?

No documento Jornadas de junho: repercussões e leituras (páginas 50-53)

RUI LEITÃO14

No Brasil, a última vez que aconteceram manifestações nas ruas foi por ocasião do movimento “Fora Collor”. Desde então, o “gigante”, plácido, dormia em berço esplêndido, a despeito das mazelas que corroíam seu corpo. Foi então que uma dor menor, porém muito incômoda, despertou o “gigante”. O anuncio de vinte centavos de aumento nas tarifas do transporte público fez com que, em São Paulo, surgisse o primeiro movimento do seu “acordar”.

A dosimetria do remédio, aplicada para sanar a perturbação causada, teve efeito colateral inesperado. A inadequada, inconsequente e violenta repressão policial provocou reações alérgicas em todo o corpo do “gigante”. Claro, isso o fez se erguer, sair do estado de letargia e retomar sua capacidade de pensar e de agir, percebendo que não só os vinte centavos majorados nas passagens de ôni- bus era o que o perturbava, mas uma insatisfação generalizada com a política e com os políticos. Em sua estrutura orgânica outras moléstias, lhe incomodavam com sensações desagradáveis que foram diagnosticadas como:

a. Ineficiência de gestão pública, corrupção, nepotismo, malversação do dinheiro público;

b. Insegurança, crime organizado, desaparelhamento das polícias milita- res, falta de políticas públicas para combate às drogas;

c. Deficiência na oferta da saúde pública, falta de profissionais médicos nas periferias e municípios distantes dos grandes centros, hospitais sem as mínimas condições de atendimento;

d. Investimentos públicos insuficientes para atender as demandas educa- cionais do país, baixa remuneração dos professores, métodos de ensino

ultrapassados, carência de condições materiais nas escolas das regiões pobres;

e. Falta de investimento em transporte público de qualidade, indefinição de uma política de mobilidade urbana que permita uma melhor quali- dade de vida aos brasileiros, falta de vias expressas e corredores exclu- sivos de transportes públicos nas grandes cidades.

Aí, listado, apenas alguns sintomas das doenças que estavam e ainda estão abatendo a saúde do “gigante”. Sem falar no desemprego, na forte carga tribu- tária, na impunidade, etc. O “gigante” sente esses incômodos há décadas, sem que qualquer remédio lhes sejam aplicados.

O inusitado é que o “gigante” acordou, assim de repente, sem que ninguém esperasse. Em épocas passadas seu despertar sempre foi devido a uma progra- mação, um planejamento de lideranças e instituições que se organizavam para fazê-lo sair do torpor. Dessa vez, ele levantou-se sozinho, por força das doenças que lhe deixavam mal. Nas entranhas do seu organismo surgiu como novidade uma forma inédita de comunicação, a internet, aliada as redes sociais seu corpo foi convocado a um só tempo para acordar.

De pé, agitado, uma fera ferida na dignidade e na alma, decide bradar aos qua- tro cantos do mundo, todas as dores que o aflige e atacar todas a um só tempo. Qualquer pessoa em sã consciência sabe que é uma estratégia que não conduz a bons resultados. É preciso eleger prioridades. Definir focos de atenção. Por essas e outras ações o movimento, ficou meio confuso e enfraquecido e muitos dos que se agregavam às manifestações não sabiam ao certo porque estavam nas ruas. Faltava consciência política. Por outro lado células perversas que se juntam de forma desorganizada, um tipo de câncer, e se aproveitam para provocar cenas de vandalismo, inibindo os que portam bandeiras de luta e boa fé.

No entanto o “gigante” estava animado. Passou a confiar realmente que era chegada a hora de exigir atitudes e posturas de forma a ter de volta um corpo e uma cabeça sadios. A efervescência política, sem cor partidária ou matiz ideoló- gico, fazia por acreditar que estávamos vivendo um fato histórico, momento de união de todas as forças, raças e credos, mesmo que antagônicos. O objetivo era um só, fazer com que o “gigante” se movimentasse e produzisse condições que o fizessem conquistar melhorias em todos os sentidos. Sair da inércia, da

passividade, da alienação. era o mínimo que se esperava de uma sociedade que deseja reconquistar sua cidadania plena e seus valores democráticos. Entretan- to, meses depois, o que vemos de concreto em termos das mudanças reclama- das? Na minha visão, são pífios os resultados. A reforma política, que seria o ponto de partida para a ruptura de uma cultura viciada e prejudicial à essência do que se pode chamar de ética, responsabilidade e moral, praticamente não saiu do papel e das propostas. Pontualmente algumas intervenções nas políticas de saúde, educação e mobilidade urbana foram adotadas, mas sem ainda terem a repercussão que se faz necessária.

A mobilização social, o clamor das ruas, as manifestações coletivas, foram minguando. Será que voltamos ao estado de dormência crítica? A indignação e revolta que alimentaram esse movimento espontâneo do povo diminuíram? O “gigante” calou-se? A pluralidade das causas pelos quais brigavam determinou esse esvaziamento da luta? Houve uma acomodação popular? O brado retum- bante deixou de ecoar? Quais as consequências práticas para o futuro próximo do Brasil.

O certo é que não existe democracia sem participação. Uma sociedade mais justa e igualitária só se conquista com o barulho das massas reivindicando seus direitos. O povo como protagonista da história, retomando seu ativismo políti- co, é o principal responsável pelas mudanças que se fizerem indispensáveis para seu bem estar.

Fica a pergunta que não quer calar: o “gigante” quis apenas dar um susto? Valeu a pena? A classe política entendeu o recado do povo nas ruas? Só nos resta esperar com o tempo que a resposta nos seja oferecida.

No documento Jornadas de junho: repercussões e leituras (páginas 50-53)