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Gina Tocchetto e Andréa Rabelo em Laboratório de Performance (PPGAC/UFBA 2018 1)

2018 1)

A expressão Partitura Corporal é usada neste contexto conforme experienciada na pesquisa “A utilização das energias corporais no treinamento do ator”144e refere-

se a uma sequência de movimentos criada pelo sujeito pesquisador e que servirá para conectá-lo consigo próprio ao ser reconstruída a cada vez que é retomada pela memória, com respeito às condições vividas no momento atual. Ela é tecida pelos movimentos dimensionados no tempo, no espaço e com energia (Laban, 1978), observando alguns princípios abordados pela Antropologia Teatral (Barba, 1994), como as oposições corporais (ampliando as oposições vigentes na musculatura e nas relações das partes do corpo durante a movimentação), a precisão, a variação na direção dos movimentos, sua variação rítmica e energética. Além destes, são considerados a percepção do impulso na transição e ligação de um movimento a outro da partitura, o foco do olhar, como parte integrante do movimento e a ideia de que nosso corpo deve se adaptar a cada movimento, por menor que este seja (Grotowski, 1992).

A partitura assim trabalhada difere (de) mas pode se transformar na partitura de ações como a linha de ações físicas, que constitui a vida de um espírito humano no papel (STANISLAVSKI, 2012b) e pode também ser a base do trabalho artesanal de um/uma ator/atriz, que compõe, junto com os outros criadores do espetáculo, a estética deste e sua dramaturgia. A partitura corporal neste trabalho foi um procedimento criativo que se aproxima da segunda acepção.

No estágio em que estava, em março/abril de 2018, criar uma partitura corporal com movimentos e ações a partir das lembranças vivenciadas e registradas nos encontros de Laboratório de Performance tinha a função de dar início ao processo de criação do solo. Fazia parte da coleta e registro de material a fim de manter vivas as descobertas ocorridas durante as improvisações de pesquisa e ensaio e nos atravessamentos vivenciados na vida corrente.

Da elaboração de um farto material experienciado pelo/pela ator/atriz, virá a forma artística, depois de inúmeros processos de depuração e, mesmo quando a forma teatral atingir a aparência cristalizada, ela continuará mudando. Na verdade, será sempre outra, sempre reconstruída no momento de sua realização e por isso sempre improvisada (CHACRA, 1983).

144 Projeto de Pesquisa coordenado por Irion Nolasco e Maria Lúcia Raymundo, conforme referido na Introdução desta tese.

Naquele momento, eu não fixava a partitura em uma sequência fechada, mas retomava de forma variada as estruturas de ações e movimentos. Era um material aberto que eu alimentava para não esquecer, e para criar um elo com a gestação do processo criativo. Era também a promessa de sua transformação em ações físicas que fariam parte da forma artística teatral.

Paralelamente a este processo eu frequentava a disciplina Contadores de Histórias/Interpretação e Direção na Cena Contemporânea. Nesta abordagem, Meran Vargens (2013) desenvolvia a voz do atuador como resultado das várias dimensões que entrelaçam suas características pessoais, orgânicas e culturais em situação de interlocução, porque “a voz e a fala têm endereço” (VARGENS, 2013, p. 79). “Esse ponto é fundamental para que a fala deixe de ser papel escrito na mente de um ator e passe a ser vocabulário interativo, sofrendo as interferências da ação e da reação, buscando agir e interagir.” (VARGENS, 2013, p. 81).

A disciplina, optativa, acolhia estudantes de cursos diferentes na graduação, mestrado e doutorado, além de estudantes visitantes. Com uma turma assim diversificada, Meran estimulava a partilha de histórias pessoais e a criação conjunta de histórias, de modo a preservar a perspectiva individual dos participantes. A elaboração das lembranças com a conscientização do universo mitológico e imaginativo das histórias e desejos pessoais afirmava o convívio na diferença. As improvisações calcadas na integração mente/corpo, corpo/voz, eu/outro abriam o canal emocional para que a voz fosse articulada pelo coração e para que a poética de cada integrante ganhasse espaço no choque “das sobrevivências” (VARGENS, 2013, p. 81), pois não adianta trabalhar a voz apenas no sentido mecânico de suas possibilidades plásticas, “deixando isso dissociado dos estados de espírito, das necessidades de comunicação, do universo das intenções e das interações com o outro” (VARGENS, 2013, p. 80).

Empossados de voz, que histórias queremos contar no teatro, como, para quê e para quem? Na aproximação do ofício do ator com os arquétipos da criança e do sábio contador de histórias, fomos incentivados a descobrir o nosso próprio contador. Com este encaminhamento, descobri que, atualmente, minha contadora canta a esperança num contexto de paraíso devastado.

Nos esparsos ensaios em Salvador, eu praticava inúmeras variações de partituras corporais e experimentava as energias vocais da abordagem de Lessac.

Este encontro comigo mesma, ainda sem o estímulo de um tema e da intervenção criativa da parceria artística, deu-me liberdade para seguir o fluxo das explorações sem me ater à produtividade.

O trabalho com a energia tonal a partir das estratégias do Y-buzz e do Call (LESSAC, 1997) estimulavam dois caminhos cruzados: a liberação de emoções represadas e a conexão com o estado criativo através da musicalidade.

3.2.1.1 Liberação e conexão emocional

Recorro ao meu diário de bordo para ressaltar alguns momentos do processo em que apareceram dificuldades, soluções de problemas ou mesmo eventos que ajudaram a vislumbrar como o solo foi criado e quais foram as descobertas responsáveis por sinalizar o foco desta tese.

Como já descrito, o procedimento do Y-buzz (LESSAC, 1997, p. 122-136), que envolve o evento do “megafone invertido”, sugere a ação de alongamento da musculatura facial num leve direcionamento para frente. É importante frisar que este evento é uma ação e não uma forma ou postura fixada para a emissão vocal. O conceito de ação envolve a contínua mudança de estado, que neste caso se caracteriza pela emissão sonora contínua da semivogal “Y” desdobrada no som vocálico “ee”, na versão inglesa, e na vogal “i” da fonética portuguesa, e as vibrações tonais podem ser sentidas na região do palato duro, ressoando pelos ossos da face.

Este procedimento se relaciona ao Princípio Curvo-linear para o alinhamento da coluna vertebral, que distensiona a musculatura do pescoço e do trato vocal; à dinâmica das NRGs corporais que são ao mesmo tempo relaxantes e energizantes; e ao estado de Interenvolvimento que conecta a pessoa em todas as suas dimensões ao realizar suas ações na interação com o ambiente externo.

O fato é que, por vezes, quando eu me engajava neste evento, nos ensaios ainda sem direção em Salvador(BA), depois de um certo tempo tinha vontade de chorar. Este estado demonstrou uma tendência: formava-se a “máscara facial do choro” e, como eu continuasse a emitir o som, ele se transformava em tons de agudo que, de acordo com minha percepção, não se encaixavam na minha extensão

vocal conforme eu a reconhecia. Pelo fato de eu não interromper o fluxo da ação com o irromper da emoção e, ao mesmo tempo, não forçar nenhuma estratégia de exploração vocal, mas apenas seguir com o fluxo dos eventos emergentes, eu descobria que na transição que acoplava a máscara facial de choro com o seu oposto — o megafone invertido — a emissão sustentada de notas agudas, até então aparentemente impossíveis de atingir de forma voluntária, era facilitada.

Além disso, e simultaneamente, percebia a ação espiritual que se realizava e que descrevo como a permissão de si para si com o aparecimento de uma voz pessoal (ancestral?) represada. Na dimensão emocional, percebia que, ao não suster o aparecimento da “queixa” emocional na configuração horizontalizada da máscara do choro, gentilmente deslizando a musculatura para o alongamento do espaço interno bucal articulado com a direção frontal, aquele sentimento se dissipava e dava lugar ao relaxamento ativo e à vitalização do tônus na forma de curiosidade. Este modo de operação é uma das bases de minha proposta reflexiva: a consciência da transição de um estado psicofísico-energético a outro. A conquista do estado criativo neste caso descrito aconteceu pelo respeito ao fluxo e não à antecipação de resultado.

Na dimensão poética, eu criava melodias e as cantava vocalizando ou fazendo boca chiusa, preenchendo de música o território do ensaio teatral. Esta disposição me surpreendia e eu contava por telefone para Beto Mônaco: “Hoje eu não criei nenhuma cena, mas várias musiquinhas.” E as gravava e voltava da sala do prédio de dança da UFBA, na Ondina, para a casa onde me hospedava, caminhando em paralelo com a beira-mar, cantando e gravando melodias no celular. Isto é um procedimento de pesquisa? Descobri que sim, pois a conexão com a música catalisou os ingredientes da prática da sintonia para a atuação, aprofundando a exploração vocal do Treinamento Lessac, sustentando a ação cênica da atriz como cantadora de histórias e preenchendo minha existência com o prazer da poética musical.

Na mesma época, tive a oportunidade de conhecer uma das regiões da Chapada Diamantina (BA), no período breve de um fim de semana e lá ouvi histórias de moradores e conheci “Seo” Ariovaldo que conta “causos” de onças. Estive em sua casa, conheci sua esposa, seus animais domésticos, a horta e as árvores frutíferas que os dois cultivam. “Seo” Ariovaldo mencionou um potro que teria fugido,

o que despertou minha curiosidade. Apesar de chamar o potro, várias vezes, para mostrar a mim e a meus parentes, o animal nunca apareceu. Quando se está em processo criativo, a imaginação amplia ainda mais a fonte da experiência vivida, como geradora de materiais. O meu contato com a natureza e a troca com as pessoas foram tão intensos neste fim de semana que, ao voltar, minha contadora de histórias alimentou as partituras corporais com estados aproximativos do comportamento animal da onça e do cavalo. Não de forma mimética, mas como impulso corporizado, feito de tendências rítmicas, energéticas e espaciais. Havia uma corrida leve, ágil, veloz em percurso circular na partitura, que se tornou o potro; e formas de engatinhar que passaram a mobilizar o caminhar da onça com as articulações, afundando e subindo em oposição e suspense.