CAPÍTULO 2 -‐ O PROBLEMA SOCIOLÓGICO: CONSTRUÇÃO TEÓRICA E CONCEPTUAL 13
2.4. Goffman e frame analysis 26
meio onde surgem.
As representações são entendidas como meio de socialização onde “cada membro de um grupo tem as representações desse grupo impressas nele próprio, de modo a que as representações chegam ao core da sua personalidade individual, restringindo as suas atitudes e percepções” (Moscovici & Hewstone, 1983, p. 118). Focando-‐nos em políticas públicas que pretendem, acima de tudo, produzir mudança nas formas de pensar e agir de uma determinada sociedade, tivemos que incidir a análise sobre este processo e procurar demarcar que representações têm funcionado como meio de socialização, tanto da classe política, como da sociedade que regulam.
2.4. GOFFMAN E FRAME ANALYSIS
Em Frame Analysis (1974), Goffman adopta o conceito de frame e define-‐o como sendo um “esquema de interpretação”, um “quadro” de referência geral construído socialmente, que permite aos indivíduos “localizar, perceber, identificar e rotular” ocorrências passadas no seio da sua vida social e do mundo em geral (Goffman, 1986 [1974], p. 21). Com ele tenta compreender as variadas situações que se nos apresentam no decorrer no dia-‐a-‐dia, onde as próprias situações também organizam as formas de interpretação daquilo que nos acontece. Estas situações são encaixadas em frames e reconhecidas numa qualquer situação da nossa vida, configurando-‐se de forma diferente conforme o espaço e o tempo em que se desenrolam e consoante os indivíduos que interagem nessas situações. Como se depreende de tudo isto, estes “quadros” acarretam uma enorme subjectividade.
Os frames ajudam os indivíduos a ordenar a realidade por eles percebida, na medida em que lhes permitem que “reconheçam” uma variedade de situações que dificilmente seriam compreendidas se os indivíduos não recorressem ao “enquadramento” (Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986, p. 469). Podem ser entendidos como um background cognitivo que fornece instrumentos para os actores sociais criarem formas organizadas de ver o mundo a cada momento que agem e interagem (Vimieiro & Dantas, 2009). Segundo esta perspectiva, não existe uma
indivíduos olhem o mundo em seu redor. Existe, sim, uma dinâmica social e uma compreensão do que se passa à nossa volta com base em repetições de acontecimentos e interpretações daquilo que é transmitido aos indivíduos, que nos permite definir o que se está a passar.
Goffman assume que as definições de uma situação são construídas em concordância com os princípios de organização que estruturam os eventos, pelo menos os eventos sociais. O seu objectivo em Frame Analysis é tentar isolar algumas das estruturas e elementos básicos de compreensão acerca dos acontecimentos, interacções ou disposições, disponíveis na nossa sociedade, que façam sentido fora desses mesmos acontecimentos. Na sua análise, Goffman não se dirige à estrutura da vida social mas à estrutura das experiências que os indivíduos têm num determinado momento da sua vida social (Goffman, 1986 [1974]). É constituído por normas, hábitos, tradições e modos de ver, interpretar e agir segundo formas codificadas nas interacções sociais, baseando-‐se em diferentes atribuições de causalidade a fenómenos ou acções. Essas atribuições de causalidade podem variar de uma sociedade para outra, numa mesma sociedade, duma época para outra, e de pessoa para pessoa (Nunes, 1993).
O que acontece com alguma frequência é que os significados que os actores dão aos acontecimentos por que passam e a conexão com a própria situação de vida imediata são envoltos pela indiferença, engano, ambiguidade ou incerteza. Para se ultrapassar este problema, alguns autores compreendem que é necessária uma “amplificação” dos frames partilhados, através de um processo que denominamos de “enquadramento” (Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986, p. 469). Este permite clarificar e fortalecer o remate interpretativo dado pelo frame através da partilha de conjuntos de signos e significados, construídos sobre os modos de conduta e estados de existência que são identificados como sendo dignos de protecção e promoção, através da partilha das convicções ou crenças amplamente concebidas como as “correctas”. Estes enquadramentos são constituídos por elementos mais abrangentes que cognitivamente dão suporte ou impedem uma acção de perseguir determinados valores (Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986), e que podem ser entendidos como os conjuntos de frames a partilhar por uma determinada sociedade ou numa determinada situação.
Contudo, esta relação entre as crenças e os objectos nem sempre é transparente ou uniformemente inequívoca ou estereotipada e, muitas vezes, a relação entre as crenças e as linhas de acção difundidas pelas organizações são também contraditórias (Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986). Frequentemente, os valores, causas ou programas que as organizações políticas promovem não são razoáveis ou acertados com os enquadramentos interpretativos existentes para cada situação. Nestes casos, novos valores devem ser criados e desenvolvidos, abandonando os antigos significados e a compreensão da realidade existente, as crenças erradas, ou, como Goffman (1986 [1974], p. 308) denomina, os “maus enquadramentos” (misframing), de modo a garantir o suporte e a manutenção dos participantes (Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986).
Com o seu carácter regulador e orientador, o Estado assume-‐se como instrumento fundamental para produzir estas alterações na sociedade. Entendemos que esse é um dos seus principais objectivos e papéis. A tarefa de alguns actores políticos é afectar a conversão dos significados, utilizando determinadas “chaves” (keying)2, de modo a que as experiências de potenciais participantes (incluindo os eventos que observam) e a sua interpretação sobre o que está se está a passar é radicalmente reconstituído e reconfigurado (Goffman, 1986 [1974], p. 45). Essas organizações carregam em si dispositivos simbólicos que ajudam a trazer princípios de significação aos seus participantes. O processo de enquadramento pode ser captado através de alguns elementos que, em grupo, nos podem indicar padrões de sentidos sobre uma determinada temática (Vimieiro & Dantas, 2009).
A transformação que ocorre respeitante a um domínio na sociedade pode afectar o comportamento em outros domínios, que aparentemente poderiam não estar relacionados, mas a mudança de um enquadramento não é automaticamente generalizada em todos eles (Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986). É o que se passa na sociedade portuguesa em que o problema da violência doméstica ainda é visto, por alguns grupos de pessoas, como um problema que deve ser mantido no seio da família e do privado, visto como algo normal, e não como um acto a evitar e criminalizar.
Segundo a nossa perspectiva, é objectivo dos actores políticos, que num determinado “processo de alinhamento de quadros” (frame alignment process)3
, o objectivo da mudança seja alcançado quando um novo enquadramento ganha ascensão perante os outros e os indivíduos passam a entender algo como o correcto. Surge desta forma um novo “quadro” que interpreta eventos e experiências segundo um novo tipo de convenções (Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986). Uma das maiores consequências destas transformações de frames é a redução da ambiguidade e da incerteza e a diminuição da possibilidade de um “mau enquadramento” (misframing)4 e “disputas de quadros” (frames disputes)5. Em suma, tudo é visto com uma maior clarividência e certeza.
2.5. CONTRIBUIÇÕES EM TORNO DA FRAME ANALYSIS
O entendimento e a pertinência deste estudo apenas fazem sentido se, para a questão da construção e partilha de representações e significados por parte dos actores políticos, através da teoria de frames, os compreendermos como agentes que significativamente procuram mobilizar pessoas em torno das suas ideias, das suas lutas, dos seus propósitos, em suma, da sua forma de pensar e agir. Trata-‐se de construir políticas que pretendem operar uma mudança na sociedade, algo subjectivo, como a mudança de mentalidades e comportamentos. Assim, estes actores, além de regularem através de leis que, na maioria dos casos, impõem limitações, obrigações ou deveres, procuram orientar, aconselhar, mobilizar, dissuadir e incentivar através das políticas públicas e da partilha de frames e enquadramentos.
De modo a cumprir esta orientação, procurámos associar às nossas bases teóricas as contribuições existentes acerca dos frames e dos movimentos sociais, onde os seus agentes são entendidos como elementos que produzem políticas que têm como objectivo principal mobilizar os elementos de um determinado grupo ou sociedade com vista a uma mudança, como a que temos vindo a tratar. Esta perspectiva, em tudo semelhante à que temos para a classe política, permitirá analisar os discursos políticos como meio para a transformação da sociedade.
3 Snow, Benford, Rochford, & Worden, 1986. 4
Goffman, 1986 [1974], pp. 301-‐338.