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A governação das escolas públicas Portuguesa: agendas globais ou identidades locais?

No documento Que autonomia para as escolas? (páginas 43-46)

Mariana Dias

4. A governação das escolas públicas Portuguesa: agendas globais ou identidades locais?

Estudos comparativos realizados no domínio da governação da educação têm evidenciado a e- xistência, no espaço europeu, de tendências comuns que ultrapassam o quadro macro-político e se estendem ao plano da acção social e organizacional (Maroy 2004; van Zanten 2004; Ball & van Zanten 1998). Essas tendências abrangem, como veremos seguidamente, o contexto de trabalho dos profes- sores e as funções dos “gestores” escolares.

Contexto de Trabalho dos Professores

A análise do processo de reestruturação das escolas públicas, ocorrido noutros contextos, tem evidenciado mudanças de natureza organizacional e profissional, que obrigam à redefinição dos papéis e funções tradicionalmente desempenhados pelos professores. Essa redefinição relaciona-se com a expansão das estruturas e instrumentos gestionários (planeamento e avaliação da acção pedagógica e organizacional, coordenação intra e inter-departamental, trabalho colaborativo entre professores) e com diluição das especificidades organizacionais dos diferentes níveis educativos (Osborn et al 2000; Wallace &Huckman 1999; Menter et al 1997; Woods et al 1997)1.

As consequências desse processo são descritas por Osborn et al (2000), do seguinte modo: Until recently it was possible to represent teachers’ work as relatively isolated and au- tonomous (…) recent policy brought about dramatic changes to this picture not only in North America, but also in some European countries. In England and Wales teachers are required to attend frequent meetings to discuss school policies relating to assessment, special needs , recording and reporting , and school inspection , to name but a few. Increased teacher col- laboration or collegiality has also taken many other forms, ranging from planning curriculum

topics to sharing teaching and exchanging expertise. (p.85)

Essa mudança foi, igualmente, visível nas escolas Portuguesas. Com efeito, nos estudos de caso realizados no período anterior à implementação do Dec. Lei n.º115 A/98, foi possível identificar o predomínio de uma forte matriz celular nas escolas. A “indiferença” face às filosofias educativas de matriz organizacional não se manifestava apenas no plano discursivo e ideológico: estava bem patente na pobreza e na “nudez simbólica” dos espaços colectivos existentes nas escolas (sala de professores, bar, ginásios, bibliotecas, corredores). Estes espaços eram lugares de passagem que não representavam qualquer desafio à estrutura celular das escolas. “Regras de privacidade” protegiam a autonomia do professor no contexto da sua sala de aula e as formas de cooperação predominantes correspondiam ao que Little (1990) designava por formas de “colaboração confortável”: discussão de casos, partilha de planificações e fichas, aferição do ritmo de progressão no currículo (Dias 2003).

A publicação do “novo” regime de autonomia, administração e gestão (Dec. Lei n.º115-A/98) veio alterar, de forma significativa, esta situação:

“Em todas as escolas observadas se verificaram modificações profissionais e organizacio- nais relacionadas com o novo modelo de gestão: intensificação do trabalho (nº de reuniões, diversificação das funções gestionárias); menor autonomia dos professores na utilização do tempo não lectivo, na planificação do trabalho e na gestão do currículo (dossiers, actas de reuniões, projectos de ano e turma); emergência de uma nova estrutura social, associada com o desempenho das novas funções gestionárias e com o grau de iniciativa demonstrada; di- ficuldade em ignorar as “exigências” do mercado (na constituição de agrupamentos, na gestão da imagem pública e da carreira pessoal); aumento das pressões internas e externas para a redefinição da identidade profissional dos professores; emergência de formas de trabalho pedagógico e de colaboração profissional de inspiração neo-fordista; valorização das funções administrativas em detrimento do trabalho directo com as crianças. (Dias 2008: 211)

Veio, também, exigir o desenvolvimento de um “novo profissionalismo” que constitui um profundo desafio às culturas profissionais dos professores Portugueses:

A tentativa de reconstrução de uma nova identidade profissional através do processo de autonomização das escolas parece, por outro lado, não constituir uma forma alternativa de se dizer na profissão, mas contribuir antes para agravar o desfasamento entre um dizer profissio- nal que se constrói na oralidade e uma expressão pública onde predominam os registos escri- tos e os modos de referencialização onde o ”saber lidar” carece de sentido. Esta predominância do escrito resultante em parte do reforço dos dispositivos de controlo a posteriori por parte do Estado, não consente dispositivos que facilitem uma inscrição das vivências profissionais na construção da própria profissão (…) Perante esta definição administrativa e organizacional da profissão, os professores sentem-se permanentemente em défice”. (Correia &Matos 2001:109) Apesar da especificidade da situação nacional, fruto de uma longa tradição de centralização política que remetia os professores para padrões de “profissionalidade restrita” (Dias 2008 ), muitas das di- ficuldades associadas com a implementação de novas formas de regulação da educação em Portugal foram similares às identificadas noutros países: intensificação do trabalho, dificuldade em conciliar as tarefas organizacionais e pedagógicas, sentimentos de perda associados às crescentes interferências na “missão” principal dos professores; obrigatoriedade de prestação de contas a novas entidades (órgãos de direcção, pais); dispersão associada à multiplicidade de solicitações e exigências (cf. Andrade 2006, 2004; Lessard 2006; Ferreira 2005; Gewirtz 2002 Osborn et al 2000; Menter et al 1997; Woods et al 1997).

A investigação internacional sugere que estas dificuldades são mais fortes nos primeiros anos de introdução das reformas (Osborn 2000), embora a interpretação deste fenómeno não seja consensual na comunidade científica. Com efeito, alguns autores consideram que os professores vivem um pro- cesso de crise, que nem sempre explicitam, para preservar a sua imagem profissional (Menter 1997). Esse sentimento de crise tem sido também identificado em Portugal:

Essa crise de identidade que se manifesta pela fragilização dos dispositivos simbólicos da pertença a um grupo profissional que, como sugerimos, se confronta com a impossibilidade de se relacionar estavelmente com a pluralidade de missões que lhe são atribuídas é também uma

crise dos dispositivos de compatibilização das relações entre os tempos e os espaços da vida profissional. (Correia &Matos 2001:104).

Considerados conjuntamente estes elementos sugerem que, apesar do carácter minimalista da autonomia devolvida à escola , o contexto organizacional e profissional em que os professores Portu- gueses trabalham foi profundamente modificado na última década. Assiste-se a um grande crescimento das funções que desempenham e, como veremos seguidamente, à perda de estatuto face a outros actores locais.

Os Novos “Executivos Escolares”

A nova governação da educação tem sido associada a novas formas de regulação interna e ex- terna das instituições educativas. As “disciplinas de poder”(Ball 2008) emergentes seriam tanto mais eficazes quanto menos visíveis. A preocupação com a “gestão cultural” das organizações enquadra-se precisamente na tentativa de criar um ethos que legitime os novos mecanismos de regulação, de tal forma que estes pareçam auto-adoptados (em termos individuais e organizacionais). Estudos realiza- dos em diversos países evidenciam que os executivos escolares desempenham um papel central na introdução, gestão e implementação das novas orientações gestionárias (Raab & Arnott 2000; Ball 2004; van Zanten 2007). Simultaneamente, tendem a afastar-se dos modelos tradicionais de “liderança profissional “ ou “liderança pelo exemplo”, verificando-se uma “reconstruction of the head´s role as budget manager, entrepreneur and promoter of the school, [that] diverts the values, purposes and concerns of the head from matters educational to matters financial and managerial” (Ball 1994:93).

Em Portugal, as alterações no papel do gestor escolar são visíveis desde meados da década de 80 (Dias 2003). Com efeito, a mudança no discurso político registada na altura e que materializava na defesa da “autonomia da escola”, pressupunha um crescente protagonismo dos directores escolares: relação com as famílias, abertura da escola à comunidade, responsabilidade pelas actividades de natu- reza organizacional. No entanto, o quadro legal existente limitava, bastante, a autoridade e influência da direcção das escolas.

O regime de autonomia, administração e gestão das escolas, publicado em 1998, veio, contudo, remover muitas das barreiras que limitavam a diferenciação funcional e de estatuto dos “gestores escolares”: possibilitou-lhes melhores salários, expandiu as funções gestionárias e separou as funções de gestão das funções lectivas. Veio também dificultar o papel de regulação política interna desempe- nhado pelos professores durante o período de “gestão democrática das escolas” (dispersão por vários órgãos, presença de outros actores sociais). Não surpreende, por isso, que, embora seguindo direc- trizes e calendários que lhes eram impostos do exterior, os directores tivessem um papel fundamental na implementação local do novo regime gestionário (Dias 2003; Pires 2003; Barroso 2001).

O desinteresse de muitos professores pelas questões organizacionais, associado ao desconheci- mento das suas funções e regras de funcionamento dos novos órgãos, veio reforçar a esfera de in- fluência dos executivos escolares. Esta situação não implica, no entanto, que a alteração das relações de poder se tivesse processado sem resistência:

As vantagens competitivas de que uma parte significativa dos executivos escolares dispunha face aos outros membros organizacionais não devem, no entanto, levar a concluir que foi fácil a passagem de “professor entre professores” a “executivo escolar”. O alheamento demonstrado por muitos professores na fase da passagem formal para o novo modelo de gestão (“tenho uma ideia disso da autonomia, porque fui eu que fiz a acta dessa reunião”) não impediu que estes reagissem, por vezes de forma bastante violenta, contra as transformações que afectavam o seu quotidiano profissional. Entre os aspectos que geraram maior controvérsia encontram- se as novas estruturas gestionárias, a formalização do processo de funcionamento interno e a consequente regulação das actividades não lectivas dos professores. (Dias 2008 : 237).

Apesar do impacto diferencial nos estabelecimentos de ensino e de alguma resistência de que foi objecto, é inegável que a implementação do Dec. Lei n.º115-A/98 representou uma mudança significa- tiva face à tradição de “professor entre professores” (Karstange 1999) que a ”revolução portuguesa” e a ”democratização espanhola” introduziram no espaço ibérico. Essa transformação não se caracteri- zou, no entanto, pelo desenvolvimento de processos de “liderança transformacional”: a actividade dos executivos escolares concentrou-se, em larga medida, na implementação de directivas e calendários provenientes do exterior. Os próprios “documentos da autonomia”, elaborados frequentemente de

acordo com processos característicos dos “rituais de legitimação” (Costa 1997), reproduziam, de for- ma bastante evidente, a legislação e o discurso político dominante (Dias 2003, 2008).

Pode-se, contudo, pensar que o Dec. Lei nº75/2008 constitui uma inflexão na tendência para trans- formar os gestores escolares em elos intermédios na cadeia de poder que conduz à administração central. No entanto, a “epidemia de políticas públicas” que continua a rodear as escolas públicas não parece congruente com uma mudança de orientação. Será, no entanto, necessário mais tempo de estudo e de investigação, para que possamos definir com precisão, o impacto das mais recentes direc- trizes legislativas nas escolas Portuguesas.

No documento Que autonomia para as escolas? (páginas 43-46)