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Governamentalidade, segurança internacional e os Estados Unidos como principal ator do regime liberal

CAPÍTULO 3 – A CONCEPÇÃO FOUCAULTIANA DE GOVERNAMENTALIDADE E SUA TRANSCENDÊNCIA PARA A ORDEM INTERNACIONAL: PODER

3.4 A CONCEPÇÃO DE GOVERNAMENTALIDADE E SUA RELAÇÃO COM SEGURANÇA INTERNACIONAL

3.4.3 Governamentalidade, segurança internacional e os Estados Unidos como principal ator do regime liberal

Os dispositivos de segurança antes utilizados para garantir o bem-estar da população da mesma forma que de cada um de seus indivíduos precisa então assumir novos contornos a fim de dar conta das relações que essa própria população, livre para produzir e para circular, desenvolve em âmbito internacional. Internacionalização e globalização levam os indivíduos (alguns deles, não todos, e de modo diferenciado e desigual) a movimentar-se para além das fronteiras nacionais. Daí resulta necessário, seguindo a noção de governamentalidade, que se estabelecem dispositivos de segurança de outra natureza.

Pode-se citar como exemplo de um dispositivo de segurança a aplicação de tarifas alfandegárias ou a criação de subsídios de forma a incentivar a produção e banir importações. Tais dispositivos consistem claramente em práticas de governo que buscam, ao mesmo tempo, proteger a economia nacional restringindo a liberdade de comércio entre atores de diferentes nacionalidades e assegurar a liberdade dos indivíduos nacionais por meio da capacidade de produção e competitividade, uma vez que a noção de liberdade está atrelada à circulação, ao

movimento. É o próprio paradoxo da liberdade de mercado em relação à arte de governar, mas que encontra no ambiente um novo desafio que se apresenta sob a forma de relação entre Estados. O foco do biopoder, do ponto de vista do Estado-nação, segue sobre a população nacional sob a forma do “interesse nacional”.

Por outro lado, o Direito Internacional abre o diálogo para uma mudança na perspectiva do biopoder, constituindo-se em um importante mecanismo de segurança para a esfera mundial, pois, ao mesmo tempo em que corresponde aos anseios das nações que o respaldam, permite o direito de voz às nações que, pela via pura da política, não teriam vez, além de colocar em diálogo nações e indivíduos, atores estatais e não estatais. O Direito Internacional permite a interpretação de uma “população global” da mesma maneira que reforça mecanismos de controle. É uma faca de dois gumes que responde às práticas referentes aos atores que contribuem para seu fortalecimento ou até enfraquecimento, quando não respeitam as regras estabelecidas pelo aparato jurídico internacional.

A leitura da ordem mundial em termos de governamentalidade também implica a transformação do que se entende por segurança internacional. O primeiro capítulo contribuiu para trazer esta questão a debate, mostrando que a concepção de segurança se transforma de modo a abranger novas temáticas que dizem respeito não somente a um, mas a todos os Estados, e passa pelas vertentes políticas, econômicas, ambientais, culturais e até mesmo éticas, fazendo com que a concepção de interesse nacional tensione diretamente com a percepção de uma “sociedade internacional”. A biopolítica nesse novo contexto segue tendo a vida como a base de cálculo para o poder, mas começa a responder a essa vida por meio de outras técnicas, uma vez que precisa dar conta de uma complexidade que perpassa diferenças culturais, políticas, conflitando com a tumultuada relação entre Estados soberanos.

Ao final do primeiro capítulo foi trazida a discussão acerca de uma mudança ou continuidade da ordem internacional no pós-89 e os eventos que marcaram o 11 de Setembro, assim como qual seria a concepção de segurança internacional diante das muitas dimensões que a presenteiam com a necessidade de focar na importância dos Estados e sair deles ao mesmo tempo, transcendendo-os sem, contudo, perder sua essência (sendo esta uma transcrição literal do questionamento anteriormente feito). A governamentalidade se apresenta, dessa forma, como uma possibilidade de resposta, não completa, pois não será aceito que a governamentalidade encerre em si a complexidade da ordem internacional e não é este o intuito do trabalho. A concepção de governamentalidade da ordem internacional tem a possibilidade de, no lugar de fechar um conceito para a segurança internacional, estabelecer

um lugar para ela no construto que passa pelos exercícios de poder e formulação de discursos para a legitimação de uma ordem que não é estabelecida em torno de polaridades, mas de regimes de verdade. A segurança internacional pode ser interpretada, nesta ótica, como o objetivo da governamentalidade da ordem mundial. Se a governamentalidade tem, como intuito maior, a segurança da população de modo que ela garanta a reprodução de um discurso com base em um regime de verdade, isso implica afirmar que a segurança internacional possui, inerente a ela, um discurso de liberdade que diz respeito ao próprio bem estar, à própria paz em última instância. Dessa forma, a governamentalidade da ordem internacional fará uso de diferentes dispositivos a fim de que se possa alcançar este ideal de liberdade, o qual contém o paradoxo do controle, como já foi exposto. Em uma perspectiva geopolítica internacional, o limiar entre o controle e a guerra passa a ser uma linha tênue, mas é possível relacionar outras formas de controle, tal como a influência econômica e cultural, o estabelecimento de normas, a imposição de padrões de consumo e estilos de vida, entre outros exemplos.

A já apontada importância dos Estados Unidos para a ordem internacional é aqui retomada, mas com um novo e múltiplo enfoque. A importância da nação norteamericana para a leitura com base nos conceitos foucaultianos possui respaldo em suas políticas nacionais de segurança pelo fato de que estas são o próprio estratagema para a manutenção da ordem, funcionam como dispositivos de segurança a serem utilizados na defesa de um regime de verdade liberal, o qual constitui a razão de Estado norteamericana. E esta interação entre segurança, economia e liberdade é não apenas fundamental como constituinte da nação americana. Se, de acordo com o caminho histórico traçado por Foucault para definir uma governamentalidade, o regime liberal foi sendo incorporado ao Estado, no caso dos Estados Unidos, este regime já nasce com sua própria Constituição; os Estados Unidos enquanto nação são reflexo do ideal liberal, o que significa que a defesa de um regime de verdade baseado em tal preceito não diz respeito somente a expandir um modelo de razão de Estado, mas de expandir-se enquanto nação.

Em um diálogo também relacionado à percepção biopolítica de Foucault juntamente à constituição do Estado norteamericano, Hardt e Negri (2006, p.200) consideram que a ideia contemporânea de Império por eles defendida, cujo diagrama é reflexo da arquitetura do mercado mundial , nasce com base na expansão global do projeto constitucional interno dos EUA. Para os autores:

A Constituição americana, como disse Jefferson, é a mais bem calibrada para o Império extensivo. Devemos frisar mais uma vez que ela é imperial e não imperialista. É imperial porque (em contraste com o projeto do imperialismo de sempre estender o seu poder linearmente em espaços fechados e invadir, destruir e subjugar países legítimos em sua soberania) o projeto constitucional americano é construído segundo o modelo de rearticulação de um espaço aberto e da reinvenção incessante de relações singulares e diversas em redes num terreno ilimitado. (HARDT; NEGRI, 2006, 200)

Buscando articular a discussão aqui desenvolvida com o que destacam Hardt e Negri, é do nosso entender que a expansão norte-americana é estabelecida nos moldes do regime democrático liberal, articulando dispositivos de segurança no âmbito nacional e internacional em prol de sua própria defesa. Este construto que articula as noções de democracia, liberdade, soberania e poder se exerce ou tem-se exercido no pós-89 por meio das estratégias de segurança nacional, articulando a defesa nacional e a promoção da democracia e liberdade pelo mundo porque uma é inerente à outra na perspectiva do governo dos Estados Unidos. Os meios pelos quais esse objetivo último será alcançado é que diferenciará os tipos de dispositivo de segurança, assim como os governos e suas relações com a ordem internacional, acarretando em diferentes discursos e diferentes tipos de influência junto aos atores políticos e sociais que precisam, em última instância, legitimar os dispositivos de segurança de alguma forma: seja de forma positiva (como por exemplo, a posição favorável da opinião pública norteamericana diante da guerra ao terrorismo após os ataques de 11 de Setembro, em claro apoio às políticas adotadas por George W. Bush em um primeiro momento), seja de forma negativa (como por exemplo, via submissão ao USA PATRIOT ACT39 e outras medidas impopulares tomadas pela mesma administração).

Os discursos de legitimação passam pela relação entre o poder e as formas de expertise, pois é através do campo intelectual que as articulações necessárias para a defesa do regime liberal podem ser construídas a fim de serem incorporadas às estratégias políticas. No próximo capítulo, veremos como as think tanks norteamericanas correspondem a este desafio na perspectiva de uma governamentalidade de inspiração norteamericana da ordem internacional.

39 USA PATRIOT ACT significa “Uniting and Strengthning America by Providing Appropriate Tools Required

to Intercept and Obstruct Terrorism Act” e consistiu em uma lei aprovada pelo Congresso em outubro de 2001 por meio da qual se buscou, como o próprio nome diz, conter o terrorismo em território americano e no mundo via a consideração de ferramentas e procedimentos que foram amplamente criticados pela sociedade americana por ir de encontro às liberdades civis.

CAPÍTULO 4 – AS THINK TANKS NORTE-AMERICANAS E SEU PAPEL NA GOVERNAMENTALIDADE DA ORDEM INTERNACIONAL PÓS-1989 NO CAMPO DA SEGURANÇA: OS CASOS DA BROOKINGS INSTITUTION, COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS (CFR) E AMERICAN ENTERPRISE INSTITUTE (AEI)

“What are we for if we are to be scientifically taken caren of by a small number of gentlemen Who are the only men Who understand the job? Because if we don’t understand the job, then we are not a free people. We ought to resign our free institutions and go to school to somebody and find out what it is we are about.” - Woodrow Wilson, ex-presidente dos Estados Unidos, 1912.

"We've got think tanks the way other towns have firehouses" - Joel Achenbach, colunista do The Washington Post.