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1.2. Uma visão de poder no patrimônio cultural

1.2.1 Governar com o patrimônio

Do ponto de vista político, o patrimônio cultural pode ser ativado, via dispositivos de memória, para legitimar as práticas de perpetuação do status quo e coagir os indivíduos da sociedade civil. Ao ser gestado verticalmente a partir do topo, tem garantida sua eficácia, isto é, tem reforçado o sentimento de superioridade das elites, dando consistência ao topo e à estrutura rígida e segregada da pirâmide social. Patrimônio é poder e serve para pensar o poder na contemporaneidade, da macro à micro escala (POULOT, 2009, p.14; VARINE, 2013, p.116), e, como tal, "é semeador e promotor de memórias e esquecimentos" (CHAGAS, 2002, p.44). É um

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Economistas e historiadores nunca deixaram de discutir sobre os efeitos desse renascimento do protecionismo internacional ou, em outras palavras, sobre a estranha esquizofrenia da economia mundial capitalista. Os elementos constitutivos básicos de seu núcleo, no século XIX, eram, cada vez mais, as "economias nacionais" — a britânica, a alemã, a norteamericana, etc. Entretanto, apesar do título programático do grande trabalho de Adam Smith, A Riqueza das Nações (1776), o lugar da "nação" como unidade não era claro na teoria pura do capitalismo liberal, cujas peças básicas eram os átomos irredutíveis da empresa, do indivíduo e da "firma" (sobre a qual não se dizia muito), movidos pelo imperativo de maximizar os ganhos ou minimizar as perdas. Eles operavam "no mercado", que tinha a escala mundial por limite. O liberalismo foi a anarquia da burguesia e, como o anarquismo revolucionário, não deixava espaço para o Estado. Ou antes, o Estado como fator econômico só existia como algo que interferia nas operações autônomas e automáticas "do mercado". (HOBSBAWM, 1988, p.42)

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O filósofo Theodor Adorno (2009, p.5 e 16) ao analisar a cultura no século XX traça a seguinte descrição "A cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança. Filmes, rádio e semanários constituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. As manifestações estéticas, mesmo a dos antagonistas políticos, celebram da mesma forma o elogio do ritmo do aço. [...] Quem não se adapta é massacrado pela impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do isolado. Excluído da indústria, é fácil convencê-lo de sua insuficiência".

dispositivo de afeto popular utilizado como recurso retórico de proteção as superestruturas50.

A partir dos estudos desenvolvidos por Michel Foucault sobre governabilidade, governo dos outros e governo de si, visualizamos com mais facilidade os vínculos estabelecidos entre si pelos sujeitos de uma sociedade, a formação e o desenvolvimento das estruturas de governo (poder soberano), e as relações econômicas estabelecidas nesse meio. Como ponto fundador de suas teses, Foucault (2008) aponta a sociedade como o lugar do qual emana o poder. São os sujeitos, organizados em sua coletividade de forma mais ou menos complexa, os quais outorgam o direito de serem governados. Contudo, circunda e permeia a sociedade civil o sistema econômico, sustentado pela lógica de mercado,o qual integra e desintegra a sociedade de acordo com a sua vontade dirigindo-a para sua sobrevivência. Esse fator de associação e de dissociação, de adesão e de repugnância, que surge entre os sujeitos é o que vai formatar o estilo das instituições, inclusive o dos museus. A dinâmica estabelecida pelo fator econômico e a disputa pelo poder de governo tende a qualificar os mecanismos de arregimentação social e de perpetuação nas estruturas políticas. Assim, o interesse em controlar os sujeitos, criando entre eles processos desarmônicos, tem sido a chave do sucesso do mercado, como percebe Foucault (2008, p. 410) ao concluir que “a análise do mercado prova que em toda a superfície do globo, afinal de contas, a multiplicação dos ganhos se fará pela síntese espontânea dos egoísmos”.

Nessa interação tripartite – sociedade civil, mercado e governança – a harmonia dar-se-á na formulação de uma tecnologia de governo em que os vínculos econômicos não sejam prejudicados. Tal é a necessidade de promover essa lógica que, no imperativo de nutrir a economia em sua superestrutura global51, o controle sobre a sociedade civil é feito de forma arrojada e naturalizada culturalmente. Assim,

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Dirá Prats (1998, p.66) que "La principal virtualidad de un símbolo es su capacidad para expresar de una forma sintétic y emocionalmente efectiva uuna relación entre ideas y valores. Dicho de otra forma, el símbolo tiene la capacidad de transformar las concepciones y creencias en emociones, de encarnarse, y de condensarlas y hacerlas, por lo tanto, mucho más intensas. Esa capacidad de evocación y condensación de significados se ve reforzada, tambipen en el caso de los referentes simbólicos patrimoniales, cuando se da, además, una especial intensificación o una condensación de los atributos que los legitiman (en este caso, como sabemos, la naturaleza, la historia y la genialidad)."

51 “Não há localização, não há territorialidade, não há agrupamento singular no espaço total de

sem o aprofundamento necessário, visualizar essas estruturas com o olhar comum é impossível.

Ao pensar o patrimônio cultural e consequentemente os museus como aparelho tecnológico de governo, fundamentado numa perspectiva de uso político da memória, encontram-se neles uma perspectiva surgida de uma demanda estabelecida. Cabe lembrar que o substrato do patrimônio cultural, a saber, legislação, função social, conservação, restauração, manutenção, sustentabilidade econômica, mercado de trabalho, propaganda, entorno paisagístico, educação, cultura, entre outros, são elementos de disputa por serem geradores de controle, ou por simplesmente deterem poder. Mais: não se pode perder de vista que patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial, é um evocador de memória e a ela está intimamente ligado. Nesse ponto, a memória, como vimos, atributo próprio do sujeito e cujo compartilhamento social desencadeia a formação de uma malha memorial, mesmo que invisível, de sujeitos entrelaçados entre si, possibilita também seu uso na qualidade política quando dentro da perspectiva do patrimônio cultural, como sugere Johann Michel:

[...] entre as políticas simbólicas, aquelas que trazem à cena o passado coletivo gozam de um status privilegiado em razão de um fenômeno antropológico massivo: não existe identidade (individual ou coletiva) sem o suporte da história e da memória (individual ou coletiva). Pode-se chamar de política da memória o conjunto de intervenções de atores públicos que objetivam produzir e impor lembranças comuns a uma dada sociedade, em favor do monopólio de instrumentos de ações públicas (comemorações oficiais, programas escolares de história, leis memoriais, panteões, etc..). A construção de uma narrativa coletiva feita pelos poderes públicos é parte integrante desse modo de ação pública. Essas narrativas se orientam a supostamente unir membros de uma sociedade ao redor de uma história comum, mesmo se essas configurações narrativas dizem mais sobre a maneira pela qual o poder se coloca em cena e seus valores do que propriamente sobre a memória coletiva sobre a qual supostamente se apoiaria (MICHEL, 2010, p.14-15).

Vale frisar que governar com o passado é mais eficiente por meio do uso da memória, por ela ligar afetiva e sensivelmente o sujeito com o passado, do que com a história, cujo empirismo gera uma felicidade fraca entre sujeito e passado (LOWENTHAL, 1998, p.71; NORA, 1984, p.27).

Do campo do estudo sobre a memória social e o patrimônio cultural advém a contribuição da compreensão de que o museu é originalmente um evocador e gestor de um passado no presente, isto é, de fragmentos elegidos do passado permanentemente atualizados na vida e na organização da sociedade civil do

presente, constituindo um regime de valor e sentido contínuo de fácil legitimação e adesão popular. Assim, ao confrontar a evolução da globalização com a promoção da diversidade das culturas locais e se deparar com o fenômeno contemporâneo de um provincialismo universalista, Stuart Hall (2003) evidencia a existência de um elemento que limita e expande o indivíduo de forma regulada, não espontânea: o governo pela alegoria. Nessa perspectiva a instituição museu não precisa (e algumas vezes não deve) mencionar discursos ortodoxos ou institucionalizar bandeiras ideológicas. Eles estão lá presentes e são ativados por dispositivos ocultos que produzem uma ação velada desde seu surgimento. Afinal, nas palavras de Abreu,

[...] como bem lembrou LE GOFF (1990), as classes mais poderosas não apenas construíram objetos mais duráveis, como foram também as criadoras das próprias instituições de memória, não raro estabelecidas exatamente para guardar as lembranças que aqueles que as instituíram consideravam importantes. Por essa razão, os documentos que se encontram nessas instituições, e que são também invariavelmente utilizados como fontes ou atestados de "memória urbana", são, eles também, expressões de poder. Como afirmou FOUCAULT (1969), os documentos não são uma matéria-prima objetiva. Eles expressam também o poder da sociedade sobre a memória e sobre o futuro (ABREU, 1998, p.15).

Observação essa análoga ao contexto fundacional do MH-BPP, cujo processo de origanização procedeu de uma articulação entre a elite pelotense, estudiosa, culta e progressista, para promover o progresso local para além da materialidade, pela cultura. Aspecto esse que será reincidente durante a promoção das conferências públicas realizadas na própria Bibliotheca. O que percebemos aqui, podemos assim dizer, é parte da elite local descobrindo e fazendo uso prematuramente, e talvez de forma pouco eficaz, dos usos estratégicos e políticos da memória via patrimônio cultural, na forma de um museu.