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1.1 Museus entre tempo, história e memória

1.1.2 Sobre o tempo

Os movimentos tanto em direção ao passado, como o da construção permanente da história e o da fluidez da memória, produzem reações diversas. Ora sinérgicas, ora não. Em sentido similar, os museus – inclusive o patrimônio cultural

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"Os cursos noturnos da BPP iniciaram suas atividades no dia 1º de fevereiro de 1877 e os últimos registros nos livros de matrículas datam de 1940. No entanto, em alguns documentos da BPP, há menção das aulas até 1956 (PERES, 2002, p.77)".

como um todo – ao exercerem sua função, permitem a apreensão ampla e difusa de sua organização institucional, possibilitando a coesão social, ou seu antagonista, a dispersão (MENESES, 2013, p.32; VARINE, 2013, p.40-41). Isso se dá, pois, ao se lançar em direção ao passado, por maior que seja seu esforço, sua técnica ou mesmo sua estrutura, o museu jamais consegue tocá-lo. Ele apenas traz ao presente um vislumbre do passado, que decorre da forma e da qualidade de seu trato sobre suas coleções. Fato esse que ajuda-nos a compreender, mesmo que não de forma conclusiva, a lógica na qual se insere o MH-BPP.

De forma análoga, o historiador Jacques Le Goff (2003, p.14), ao enunciar que "o passado é atingido a partir do presente", ajuda-nos a perceber o que temos dito: o museu não traz o passado para o presente, de lá traz apenas vislumbres e, como tal, apenas imagens criativas e fixas do que já se passou. Pois, de acordo com o antropólogo Paul Connerton (1999, p.71), “[...] o passado é visto como uma vasta coleção de imagens, estando todos os estilos do passado potencialmente abertos ao jogo da alusão casual [...]”. Assim, há um amontoado dessas imagens preenchendo não apenas museus, mas também bibliotecas, arquivos, galerias, mausoléus, escolas e outra série de lugares. Algumas dessas imagens quando agrupadas de forma lógica e intencional criam um cenário do passado, um esquema imagético que depende mais de quem lhe dá forma e sentido, do que qualquer tipo de fidedignidade que se possa pretender a partir delas. São os interesses de quem agrupa essas imagens que persistem, não a harmonia da composição.

Esse sentido de imagem vai ao encontro do que Candau (2012, p.107-119) abordou ao tratar sobre a vontade de exteriorização da memória como forma de transmitir informações memoriais estocadas. Em outras palavras, diz respeito ao fazer memória, que na contemporaneidade deu origem a uma compulsão memorial. Sua expansão descontrolada pode vir a deflagrar, entre outras coisas, uma crise de identidade generalizada. Talvez esse aspecto não tenha sido vivenciado pela sociedade pelotense do início do séc. XX, mas, de qualquer sorte, o fazer memória pode servir para outra finalidade, o de constituir dentro dessa sociedade uma memória educada. Sobre esse assunto, diz o autor, que

[...] de uma maneira geral, todos os traços que têm por vocação 'fixar' o passado (lugares, escritos, comemorações, monumentos, etc.) contribuem para a manutenção e transmissão da lembrança de dados factuais: estamos, assim, em presença de 'passados formalizados', que vão limitar as possibilidades de interpretação do passado e que, por essa razão, podem

ser constitutivos de uma memória 'educada', ou mesmo 'institucional', e, portanto, compartilhada (CANDAU, 2012, p.118).

De outra forma, o sentido de imagem pode ser percebido, também, como a capacidade de trânsito temporal presente-passado por meio de objetos, lugares, inclusive coisas abstratas ou imateriais, que, de forma alguma, representa um recurso exclusivo a privilegiados, mas, sim, algo passível a qualquer indivíduo ou grupo. E como os sujeitos privilegiam o estado coletivo, corporativista e fraternal, tendendo sempre a associar-se a outros de seus pares formando clãs, tribos ou mesmo grandes sociedades, lançam-se continuamente uns contra outros para defender suas imagens – reclamadas como originais e verdadeiras – e aniquilar aquelas que as esvaziam de legitimidade32. Nessas oposições de interesse, sentimentos e ideias, imagens fixas de um passado permanentemente dinâmico acabam se tornando poderosas instituições que içam bandeiras identitárias em mastros altos lançando sombra sobre o maior número de indivíduos. Um exemplo disso se deu, por exemplo, em Pelotas/RS, entre a maçonaria e a Igreja Católica33, duas instituições com forte apelo memorial, cujas posições sobre assuntos ligados às Ciências Naturais, como evolucionismo, vão estar presentes nos Anais da BPP, produzidos no mesmo período quando da organização do Museu. A respeito desse

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Evidenciamos, aqui, com interesse específico de compor recursos para analisar a questão de comunicação do MH-BPP, quais os aspectos que demonstram o monopólio do discurso como meio de imposição arbitral de interesses unilaterais. Para tanto, nos apoiamos em Bourdieu (2003, p. 113), quando diz que "o que está em questão a partir do momento em que dois locutores falam é a relação objectiva entre as suas competências, não só a sua competência linguística (o seu domínio mais ou menos consumado da linguagem legítima) mas também o conjunto da sua competência social, o seu direito a falar, que depende objectivamente do seu sexo, da sua idade, da sua religião, do seu estatuto econômico e do seu estatuto social, outras tantas informações que poderiam de antemão conhecidas ou ser antecipadas por meio de índices imperceptíveis (é bem educado, tem uma condecoração, etc.)". A comunicação, não obstante, em uma sociedade fracionada em diversos nichos como a pelotense do início do século XX, torna-se um forte indicador para compreendermos quem está falando, e suas variáveis, por que, como e para quem, especialmente por meio de uma instituição, um museu, fundamentalmente discursiva e ligada a aspectos de patrimônio cultural.

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Esse processo é facilmente visível no caso pelotense no que envolve, por exemplo, a maçonaria e o catolicismo. Nota-se que Pelotas, no início do século XX, possuía um forte movimento maçônico e Espírita, em oposição a uma precária participação local do catolicismo, como aponta Marcelo Gill (2011). Contudo, a tensão entre as duas instituições foi fortemente marcada na história local. Segundo pesquisa de Gill (ibidem), a primeira loja maçônica em Pelotas teria surgido em 1841 com o nome de Loja Maçônica Protetora da Orfandade. Mais tarde, diversas outras lojas foram sendo instaladas, especialmente devido ao enorme fluxo de imigrantes, o que favoreceu a dispersão de ideias anticlericais, liberais e cientificista. O campo da educação, portanto, foi peça chave para essa disputa que, em Pelotas, culminou com a criação, em 1903, do Ginásio Pelotense, que oferecia "um ensino laico, baseado no racionalismo, no cientificismo e no método experimental, voltado para a vida prática do aluno, em oposição aos métodos católicos de ensino, baseados no desenvolvimento da moral de natureza religiosa, presentes em Pelotas no Colégio Gonzaga [1894], então já tradicional instituição de ensino na cidade (GILL, ibidem, p72).

jogo de imagens, especificamente nos museus, a museóloga Marilúcia Bottallo nos dirá que

[...] o museu se estabelece em todas as culturas - ocidentais e orientais - como instituição que se reveste do poder de disseminar determinados valores culturais (no sentido amplo), próprios ou exógenos. No entanto, muitas vezes, esses pressupostos culturais deixam de ser percebidos dentro desse contexto de valor e transformam-se em sinônimos de "realidade" ou de "verdades". As instituições museológicas possuem poder afirmador e selecionador do que seja digno de ser considerado como cultura. Isso acontece, basicamente, através da escolha dos objetos que vão integrar as coleções e pela forma como serão expostos (BOTTALLO, 1995, p.283).

Percebe-se, a esse passo, que o passado é objeto de disputa de poder e, dessa forma, passível de ser articulado por áreas diversas, como, por exemplo, história e memória. A história e a memória, como veremos adiante, cumprem papéis diferentes na organização social. Em Walter Benjamin (1987, p.224), como em tantos outros teóricos, compreenderemos que “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi de fato’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Essa premissa ronda a obra de Pierre Nora (1993), que, pensando a problemática dos lugares de memória e dos lugares de história no tempo presente, expõe o paradoxo gerado pelo exagero da acumulação (de coleções) e a aceleração do esquecimento, isto é, o dito acúmulo de imagens que se amontoam e a formação de sociedades exauridas de compreensão do passado. Teoria essa que pode nos auxiliar a compreender os motivos da propaganda criada para a promoção do patrimônio cultural pelotense na contemporaneidade estar tão fixada ainda no discurso da opulência e cultura, o qual será abordado no terceiro capítulo.