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CAPÍTULO III – A ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA EM GRACILIANO RAMOS

3.1. Em busca de um mapa da desleitura

3.1.4. Graciliano Ramos e a influência de seus precursores

Conforme sugerimos, no início deste capítulo, ao tratar da angústia da influência, a relação mais pertinente que se pode fazer a partir da obra de Graciliano Ramos, em sua busca de libertar-se de suas origens, seria com o escritor Machado de Assis, acatando-o como o grande precursor de Graciliano, uma vez que é a própria tardividade quem determina o precursor do poeta forte.

Propusemos o esquema apresentado por Bloom para uma discussão da obra de Graciliano Ramos, destacando o romance S. Bernardo (1934).

No que diz respeito à primeira razão revisionária proposta por Bloom, o clinamen,

acreditamos que já ficou bastante claro, no início deste terceiro capítulo desta pesquisa, como Graciliano se apropria, sem contudo plagiar, de toda a herança literária recebida, principalmente dos escritores românticos e realistas da literatura em língua portuguesa.

Essa formação reativa, marcada pelo jogo de esconde-esconde, no qual se percebe a presença do precursor e, ao mesmo tempo, porém, seu velamento, caracteriza a ironia do escritor alagoano que se assemelha à do escritor carioca Machado de Assis. A dialética da limitação, substituição e representação – denominada dialética do revisionismo – bloomiana nos leva a considerar como segunda imagem na obra do Mestre Graça a realidade social e a psicologia das personagens como um desvio em relação à obra machadiana que tenta nos provar que a palavra do precursor é um duplo desafio.

Se levarmos em consideração os três romance s de Graciliano Ramos, citados no início deste capítulo, percebemos que sua distinção em relação aos textos machadianos se dá do ponto de vista espacial. Enquanto em Graciliano predomina o ambiente rural, com exceção de

Angústia, em Machado de Assis há a predominância da vida na Corte. É certo que ambos dramatizam suas realidades sociais, de forma tal que podemos considerá- las um motivo forte. A semelhança, porém, restringe-se a isso, e, em um movimento inverso, pode-se perceber que o precursor revela, principalmente utilizando-se da ironia, as mazelas sociais de seu tempo, os vícios da burguesia, sem, no entanto, propor intervenção alguma que possa transformar tal realidade. Graciliano, numa perspectiva do Contra eu, busca a mobilidade social, seja do ponto de vista egoísta de um Paulo Honório, seja através da modernização agrícola através da qual o protagonista de S. Bernardo procura deixar sua marca na fazenda. A título de exemplificação dessa tessera, podemos contrapor a história de Rubião à de Paulo Honório. O primeiro, no romance Quincas Borba, de Machado de Assis, recebe uma herança para administrar, a qual o tira de sua vida simples de professor, para, em seguida, em razão de maus negócios, levá-lo a uma situação de miséria que jamais vivera, o que o deixará literalmente louco; o segundo, por sua vez, sai de uma situação de reles empregado da fazenda

S. Bernardo, para tornar-se, depois de muito esforço e oportunismo, o senhor dessa mesma fazenda.

Enquanto para Rubião a riqueza torna-se o seu infortúnio; Paulo Honório faz do infortúnio – preferencialmente dos outros – sua riqueza. Tendo atuado como trabalhador alugado, guia de cego, vendedor de cocadas, conhece muito bem a alma dos mais humildes e não possui escrúpulo algum para dissecá- la e usá- la em proveito próprio. A semelhança que se percebe entre as duas personagens é que ambas findam solitárias, entretanto a personagem machadiana ainda guarda, pelo menos, a amizade e a companhia de um cão; enquanto a personagem do escritor alagoano traduz sua solidão em livro, como fizera Bentinho, em Dom Casmurro.

A solidão de Paulo Honório o leva a uma decomposição metonímica de si mesmo. Em um movimento antitético de plenitude e vazio, sente-se o protagonista de S. Bernardo realizado profissionalmente, por ter conseguido uma ascensão social; por outro lado, o seu distanciamento das pessoas que o cercam o conduz a uma sensação de vazio. Percebe-se bem essa ausência no capítulo 36 do romance, quando Paulo Honório, metonimicamente, afirma

que “(...) Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam.” 93

A boca e os olhos representam, na verdade, o espírito atormentado do protagonista de

S. Bernardo. Sua frieza o faz mergulhar em pensamentos que o conduzem a uma infância pobre, porém alegre, mas que a personagem, em seu trajeto de vida, rejeitou. Evoluindo dessa mera substituição, a personagem parte dessa kenosis em direção à formulação de uma hipérbole, ao afirmar que

Penso no povoado onde seu Ribeiro Morou, há me io século. Seu Ribeiro acu mulava, sem dúvida, mas não acumulava para ele. Tinha uma casa grande, sempre cheia, o jerimu m caboclo apodrecia na roça – e por aquelas beiradas ninguém tinha fome. Imagino-me v ivendo no tempo da monarquia, à sombra de seu Ribe iro. Não sei ler, não conheço iluminação elétrica ne m telefone. Para me e xprimir recorro a muita perífrase e muita gesticulação. Tenho, co mo todo o mundo, u ma candeia de a ze ite, que não serve para nada, porque à noite a gente dorme. Pode m rebentar centenas de revoluções. Não receberei notíc ia delas. Provavelmente sou um sujeito feliz. 94

Podemos considerar que a incapacidade de Paulo Honório para se manifestar através da leitura e da escrita, representada retoricamente por uma hipérbole, é, na verdade, uma

demonização não somente do precursor em si, mas principalmente da própria tradição, representada aqui por seu Ribeiro. A casa grande, sempre cheia, seria a própria herança cultural, da qual, através de uma defesa psíquica de repressão, o poeta tardio, na figura de Paulo Honório tenta se desvencilhar. A candeia de azeite seria, pois, uma metáfora do esvaziamento do eu do poeta tardio, o qual, numa tentativa de isolamento criativo, rende-se, ou melhor, aceita sua felicidade ilusória na tentativa de sublimar o fato de encontrar-se fora da tradição, ao mesmo tempo em que, aceitando-a, torna-se parte dela. Denominada por Bloom de askesis, essa razão revisionária nos conduz ao entendimento de que essa é a verdadeira sublimação da metáfora do escritor: enquanto vive uma presentidade que o deixa fora da tradição, busca uma anterioridade que o faz protegido dessa mesma tradição.

Chegamos, pois, à sexta razão revisionária bloomiana, denominada de apophrades, em que o poeta, em um movimento de introjeção e projeção, busca, através do Retorno dos Mortos, a imortalidade, ou melhor, a Eternidade, pois, como afirma Bloom

93

RAM OS, Graciliano. S. Bernar do: posfáci o de João Luiz Lafe tá. Il ustrações de Darel. 60. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994. p. 187.

94

(...) Nenhu m poema se regozija e m sua própria paisagem interna solitária, co mo tampouco podemos fazê-lo. Te mos que ser comentados em termos de outras

pessoas; pois não podemos ser “sobre” nós mesmos, assim como os poemas não

podem. Dize r que u m poema é sobre si mes mo é mo rtal, mas dize r que é sobre outro poema é sair para o mundo onde vivemos (.. .). 95

A negação que Graciliano faz de Machado serve, na verdade, para que o escritor alagoano traga de volta o fundador da Academia Brasileira de Letras para que, dessa forma, ao livrar-se de sua influência, possa se tornar também um poeta forte.

Concluímos esta etapa da pesquisa tentando ilustrar o que disse no parágrafo anterior, utilizando duas personagens dos escritores citados, em um mesmo gênero: memórias. Se recorrermos a Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere,fica explícita a sua preocupação, enquanto autor e personagem que é da obra, em ser iludido pelo tempo e pelo esquecimento, comprometendo, desse modo, a reputação das pessoas que se tornaram personagens de seu romance. Trata-se de uma ficção de certa contemporaneidade, ou melhor, de uma “presentidade”.

Machado de Assis, por sua vez, utiliza a personagem Brás Cubas para, depois de morta, escrever suas memórias, sem receio algum de macular a honra das “pessoas” citadas pela personagem, uma vez que, tendo morrido, goza agora da imortalidade – temporal, ao nos referirmos à personagem; literária e canônica, ao nos estendermos ao escritor – e de toda a liberdade que ela pode lhe oferecer.

É a figura emblemática de Brás Cubas que, a nosso ver, melhor representa a

apophrades proposta por Bloom. Somente em movimento de introjeção – a morte – é que o poeta pode se projetar como poeta forte ao atingir a imortalidade. E é esse mesmo Brás Cubas o representante da figura do precursor – Machado de Assis – que Graciliano Ramos traz de volta em suas Memórias do Cárcere, para que assim possa se firmar como um poeta também forte.

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