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CAPÍTULO III OUTROS RAMOS DO EXÍLIO

3.1. GRACILIANO RAMOS

Encontrei muitas vezes Graciliano Ramos. Admirava naturalmente o escritor pela severidade e precisão de estilo, seu Dom criador de personagens concretos, sua denúncia de falsas estruturas sociais, estimando também o homem pela independência e franqueza das suas polêmicas atitudes, embora as vezes temperamentais ou desagradáveis. Segundo tentei defini-lo numa página do meu livro Convergência era

Brabo. Olho-faca. Difícil. (..)

-- Ele respondeu que no fundo era espiritualista, tendo aderido ao marxismo por julgá-lo a única doutrina capaz de colocar na justa dimensão o trabalhador brasileiro. “Detesto a burguesia e seus partidos, detesto esses políticos safados, patifes, canalhas que só querem saber de dinheiro e nada mais,” brontolava, mascando o infalível cigarro e levantando o braço polêmico.

Murilo Mendes

Este retrato anuncia Graciliano Ramos, na obra de quem vamos nos ater mais pontualmente neste capítulo, visando a verificação da existência de uma relação de suplementaridade entre Angústia e as obras já abordadas nos capítulos precedentes, quais sejam, La Nausée, de Sartre e La Peste , de Camus.

Ainda com relação ao retrato esboçado por Murilo Mendes, vale ressaltar a sensibilidade e a acuidade do poeta que tão bem soube capturar e cristalizar um dos perfis desse autor. Esta afirmação não é de forma alguma incongruente visto que o retrato ‘pintado’ por Murilo Mendes não entra em contradição com o que o próprio Graciliano Ramos pinta em “Auto-Retrato aos 56 anos”, como se pode observar:

(...)

Prefere não andar Não gosta de vizinhos

Detesta rádio, telefone e campainhas Tem horror às pessoas que falam alto Usa óculos

Meio calvo

Não tem preferência por nenhuma comida Indiferente à música

Não gosta de frutas nem de doces Sua leitura predileta: A Bíblia (...)

Gosta de beber aguardente É ateu

(...)

Odeia a burguesia

Adora crianças, gosta de palavrões escritos e falados Deseja a morte do capitalismo

Fuma cigarros “Selma” (três maços por dia) (...)

Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo. 176

Este é apenas mais um dos retratos paradoxais de Graciliano Ramos. Em

Cartas, ele “re-pinta” obstinadamente o seu auto-retrato e as cores são, ademais,

sistematicamente penumbrosas, ou melhor, sombrias. “Agora estou numa quadra de estupidez medonha (...) nunca estive tão burro.(...) Sinto-me mais bruto que de ordinário”.177 “Eu me conheço – não presto mesmo pra nada (...) coisas úteis, creio que nunca fiz (...) mas eu sou burro como o diabo”.178

Pinceladas assim abundam em Cartas e é dessa forma que Graciliano Ramos se expõem a amigos e familiares. Mas quando fala sobre outras coisas e assuntos, Graciliano se revela terno, flexível, alegre, solidário, um apaixonado pelas causas sociais, pugnando a igualdade de todos e, nesse sentido, ele sente-se uma voz solitária

176

Ramos,Graciliano. Cartas. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1980, Orelha do livro.

177

Idem p. 23-27.

178

gritando num deserto formado de homens, um exilado no seu meio, um estrangeiro entre os seus,

O que eu sinto é morar numa terra onde só se pode conseguir alguma coisa com muito reclamo. Aqui tudo se resume nisto: cada sujeito faz propaganda de si mesmo. (...) Um animal que tem algum talento afeta uma atitude ultra- humana, quase divina – não conversa: prega; não dá sua opinião sobre coisa nenhuma: afirma, assevera, pontifica. É dogmático e é intolerante. Não admite que se diga nada que vá contrariar suas doutrinas. (...) Enfim tudo reclamo. (...) E o diabo que for tímido, que não declarar que é um gênio, é uma criatura morta. 179

Em vários outros pontos de Cartas, ele reforça a idéia deste sentimento de angústia:

Não poderás saber a quantidade de pedantismo necessária a um tipo desta terra, onde tudo é fita, para embair a humanidade. Eu sou de uma timidez obstinada. Não posso corrigir-me. E, contudo, preciso modificar-me, fazer réclame, estudar pose. Santo Deus! É terrível!180

Em contrapartida, o Graciliano de Em Liberdade , elaborado ficcionalmente por Silviano Santiago, embora ainda com um temperamento mais introvertido do que comunicativo, e apesar da saúde frágil, é forte e rijo a ponto de considerar a adversidade como algo extremamente desprezível, “um piolho nojento que a gente esmaga uma unha contra a outra dando um estalinho”.181 Ou, uma “borboleta azul” capaz de conduzi-lo até o lugar onde ele podia expressar o melhor de si.

De todos os retratos de Graciliano Ramos, o perfil mais explorado é o que se relaciona com o seu estilo, e este, como explica Otto Maria Carpeaux, define-se na “escolha de palavras, escolha de construções sintáticas, escolha de ritmo dos fatos,

179 Idem p. 45. 180 Idem p. 58. 181

escolha dos próprios fatos, para conseguir uma composição perfeitamente pessoal: pessoal, no caso, a maneira de Graciliano Ramos”.182

Carpeaux acrescenta ainda que o lirismo de Graciliano Ramos

é amusical, adinâmico; é estático, sóbrio, clássico, classicista, traindo, às vezes, um oculto passado parnasiano do escritor. Não quer dissolver o mundo agitado, quer fixá-lo, estabilizá-lo. Elimina implacavelmente tudo o que não presta a tal obra de escultor, dissolve-o em ridicularias, para dar lugar aos seus monumentos de baixeza. (...) Com efeito, o material dêsse classicista é bem estranho: é o mundo inferior; às mais das vêzes, o mundo infernal. Lá as almas são caçadas por um turbilhão demoníaco de angústias, como as almas no átrio do inferno de Dante.183

Temos, portanto, diferentes versões desta persona literária “Graciliano Ramos”. Em todas elas, entretanto, avulta a imagem do homem. Do homem que encarna ao mesmo tempo uma “personalidade humana e mortal” e uma “personalidade coletiva, superpessoal e candidata à imortalidade, que sob todos os pontos de vista enriquece a primeira”184. Nesse universo de Graciliano Ramos, estabelecemos uma escala em

Angústia, que no título já indicia a forte presença e o desenvolvimento da categoria da

angústia, na qual se pode conceber uma possibilidade de existir, mas, concomitante, uma impossibilidade de equilíbrio, porque, lá, o coração do homem é pleno e o mundo é vazio.

Visto que a focalização das várias faces da angústia é a nota predominante neste romance, prefigurando um sinal de uma crise das relações do homem com o mundo, uma reação fóbica que conduz tudo ao nada e que apresenta o mundo não suscitando mais do que indiferença, propomos um olhar mais demorado e atencioso sobre esse conceito, a fim de se tentar perceber a sua posição ao longo da história do homem.

182

RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo: Ed. Martins Fontes S. A., 1971 p.7.

183

idem p. 7.

184