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O EXÍLIO E O SENTIMENTO DE ‘ESTRANGEIRIDADE’ EM LA NAUSÉE

CAPÍTULO I LA NAUSÉE OS MODOS DO SER: A ANGÚSTIA, A NÁUSEA E O EXÍLIO NA

1.4 O EXÍLIO E O SENTIMENTO DE ‘ESTRANGEIRIDADE’ EM LA NAUSÉE

Tanto para Camus como para Sartre (como, a seu modo, para Júlia Kristeva), frente ao diverso, a sensibilidade se aguça numa capacidade de observação objetiva. Entretanto, em La Nausée, vê-se que através de uma superestimulação do egocentrismo, o personagem perde a percepção de fundo e funciona arritmicamente com o contexto. Ele só pode ver os circuitos que lhe interessam com vistas à sua (quase nenhuma) atividade humana, deixando de lado as interconexões múltiplas das contingências da vida.

Roquentin não é possuidor de um espírito de curiosidade, de empreendimento ou de aventura:

J’ai traversé les mers, j’ai laissé des villes derrière moi et j’ai remonté des fleuves ou bien je me suis enfoncé dans les forêts, et j’allais toujours vers d’autres villes. (...) Et tout cela me menait où? À cette minute-ci, à cette banquette”.47

O mundo e a vida parecem monocromáticos e monótonos:

46

Idem p. 148-149.

47

“Et qu’est-ce que je gagnerai au change? C’est toujours une ville: celle-ci est fendue par un fleuve, l’autre est bordée par la mer, à cela près elles se ressemblent (...) J’ai peur des villes.48

Dessa forma, La Nausée denuncia a angústia gerada na terrificante regularidade do mundo narrado por Roquentin, um mundo de ordem, de costumes e hábitos automáticos como os horários dos tramways, a rotina da rua do comércio, dos passeios de domingo, das presenças e da superficialidade das conversas no Café, das partidas de cartas, etc.

Roquentin tendo a possibilidade de romper com essa regularidade nega-se a fazê-lo. Abandona a sua aventura na Indochina, abandona a sua aventura sentimental com Anny, abandona a sua aventura intelectual de escrever a biografia do marquês de Rollebon, “Je n’écris plus mon livre sur Rollebon; c’est fini, je ne peux plus l’écrire. qu’est-ce que je vais faire de ma vie?” Este projeto, aliás, embora configure a única referência para a existência de Roquentin – “Ne pas oublier que M. de Rollebon, représente, à l’heure qu’il est, la seule justification de mon existence”49 tem a dimensão do inócuo, o que alerta para o significado da gratuidade. Esta gratuidade não pode comportar mais que o enfado. Uma vez abandonado este projeto, Roquentin se vê abruptamente destituído do próprio sentido da sua vida e diante de uma constatação paradoxal e atordoante: o que constituía o essencial para a sua vida revelou-se gratuito. Resta a indiferença, a invalidez da vontade atrofiada.

Sartre oferece ao personagem a liberdade, mas para Roquentin, até mesmo a liberdade é nada:

Est-ce que c’est ça, la liberté? (...) Je suis libre: il ne me reste plus aucune raison de vivre, toutes celles que j’ai essayées ont lâché et je ne peux plus imaginer d’autres. Je suis encore assez jeune, j’ai encore assez de forces pour

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Idem p.219-220.

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recommencer. Mais que faut-il recommencer? (...) Je suis seul (...) seul et libre. Mais cette liberté ressemble à la mort.50

O que Sartre postula como um dos fundamentos do Existencialismo é que somente o homem pode ser livre, é livre, senhor das suas atitudes, inventor do seu caminho. A existência dos animais e das coisas se processa num mundo estruturalmente fechado, é pré-determinada, as modificações são previsíveis e obedecem a um mecanismo necessário. A liberdade do homem é um fato contingente, mas irredutível de se opor à facticidade do mundo.

Surpreendentemente, Roquentin assume uma atitude passiva frente ao universo de possibilidades que a liberdade lhe oferece, falta-lhe o detonador da vontade e a capacidade de apreender o mundo. “Je vais me survivre. Manger, dormir. Dormir, manger. Exister lentement, doucement, comme les arbres”.51 Roquentin não se afasta da sua posição de passividade mesmo se Sartre o instiga através do personagem l’Autodidacte, que em vários momentos o incita à mudança de atitude. L’Autodidacte afirma, a propósito de um livro que lera: “La vie a un sens si l’on veut bien lui en donner un. Il faut d’abord agir, se jeter dans une entreprise.”52 E mais tarde: “Pour supporter votre condition, la condition humaine, vous avez besoin, comme tout le monde, de beaucoup de courage”.53

Roquentin se enclausura, abriga-se num encouraçamento sistemático, numa inépcia para participar e atuar no meio onde está inserido, vive insulado e apático e sua natureza social se perverte, os sentimentos se embotam e ele mergulha num exílio inevitável, inócuo e insensato. Não quer se adaptar ao grupo dos que vivem adormecidos pela rotina e pelas convenções, nem quer se revoltar contra isso, prefere o 50 Idem p. 221. 51 Idem p. 222. 52 Idem p. 162. 53 Idem p.173.

exílio, ser estrangeiro no seu próprio lugar, subordinado apenas às funções de viver. Caracteriza e modula a insatisfação essencial do homem que não toma consciência de si mesmo senão para se descobrir solitário e contingente. Num contexto instável, polissêmico, multidimensional, agarra-se à substância mesma da vida, com sua gama de tormentos, de fantasmas, de angústias devastadoras, atado à uma hipertrofia do ego própria de um narcisismo exacerbado e alheio às metáforas e aos meandros de tudo o que a situação poderia comportar de autoreflexão e autocrítica.

Ao final, por se manter indiferente à experiência que poderia se gravar e tomar gravidade em seu ser, sua história e seu futuro se sustentam fragilmente sobre um impreciso e vacilante peut-être. Ele só tem uma certeza: demain il pleuvra sur Bouville.

Sem aquela coragem resoluta, voluntariamente ele se acomoda à mediocridade, omite-se de orientar a tensão entre a visão problemática da vida e as múltiplas referências do cotidiano para uma ótica positiva, à uma espécie de alumbramento, que é o sentimento peculiar de um ser sem fronteiras. Respira num pequeno intervalo que se situa no vazio, na inexistência de si, por negar-se a perceber que é do interior da experiência que se elevará a liberdade, que pelas metamorfoses constantes, subverte-se a representação negativa, desvitalizada, e a vida de monotonia e exiguidade se expande numa contínua busca.

Ele se sente estrangeiro em todos os lugares, mas, mais do que isto, ele se sente exilado de sua própria vida: “on peut dire alors que Roquentin qu’il se sent “étranger” au monde, et c’est ce sentiment qu’il appelle la “Nausée”.54 A ‘estrangeiridade’, aqui, se revela na sua negatividade, embora ela seja potência em outras ficções teóricas. Todavia, mesmo se as categorias de exílio e de estrangeiro se apresentam como negatividade, e mesmo se Roquentin não se esforça para se arrancar da náusea, tudo isto

vai, paulatinamente, conduzindo-o ao ponto fulcral do romance, isto é, a descoberta da consciência da existência e da existência das coisas.

1.5 A DESCOBERTA DA CONSCIÊNCIA DA EXISTÊNCIA E DA