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O grande “sacrifício” da morte e o Axexê

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3. RELIGIÕES E MORTE: DO MITO AO RITO

3.3. Candomblé

3.3.3. O grande “sacrifício” da morte e o Axexê

Nas religiões afro-brasileiras, o culto aos mortos é comum e, em conjunto com a crença nos espíritos, torna-se um dos patrimônios dessas religiões. Estes espíritos são seres ou forças intermediárias entre o supremo e as pessoas, que mantêm contato com eles, havendo a possibilidade até mesmo de um relacionamento entre ambos. (BERKENBROCK, 2012, p.64). Segundo o mito, um fenômeno conhecido como hybris é culminante para o surgimento da Morte na mitologia iorubá. Assim, como acontece em diversos mitos, como os da mitologia grega e judaico-cristã, o pecado do orgulho do homem caracteriza essa hybris, que leva o homem caminhar sobre sua própria vaidade, tornando-se vítima dela e pensando que

71 pode alcançar patamares mais elevados que a ele foram permitidos (MAGALHÃES, 2012, p.151).

Quando o mundo foi criado,

coube a Obatalá a criação do homem. O homem foi criado e povoou a Terra.

Cada natureza da Terra, cada mistério e segredo, foi tudo governado pelos orixás.

Com atenção e oferenda aos orixás, tudo o homem conquistava.

Mas os seres humanos começaram a se imaginar com os poderes que eram próprios dos orixás. Os homens deixaram de alimentar as divindades. Os homens, imortais que eram,

pensavam em si mesmos como deuses.

Não precisavam de outros deuses. (PRANDI, 2001b, p.506)

Por causa do comportamento do homem perante suas obrigações aos deuses, Obatalá decide ir embora da Terra e ir viver com os orixás entre o Aiyê e o Orum. Além disso, imputa ao homem a necessidade de morrer, cada um no seu tempo certo. Para isso, cria Ikú, a Morte, e encarrega-o de fazer morrer todos os seres humanos, mas apenas com o aval de Olodumaré, pois, segundo o itan: “A Morte leva, mas a Morte não decide a hora de morrer/ O mistério maior pertence exclusivamente a Olorum.” (Ibid., p.507).

Segundo Oliveira, Ikú é o portador do fim da vida física e é simplesmente identificado com a Morte, na cultura Iorubá. Para eles, Ikú é um ser do gênero masculino que nada tem a ver com a representação ocidental da morte, por um ser escaveirado, com seu manto negro, carregando uma foice para ceifar a vida. O autor explica que Ikú foi um ancestral que acompanhou os orixás e Olorum na criação da vida do planeta, tendo participação importante na criação do homem, pois como vimos anteriormente é ele quem traz a lama primordial para a construção do corpo dos seres humanos (2012, p.263).

Cabe ressaltar aqui a dualidade vida-morte, presente no Candomblé através da dinâmica do dar e receber, tão bem representada por Ikú, que, ao mesmo tempo, traz e leva o princípio formador do corpo, a lama. Segundo Santos, Ikú retorna com a lama para que novas criações sejam possíveis e os praticantes do Candomblé, ao trocarem a lama pelas oferendas e sacrifícios, restituem o axé, substituindo a morte pela continuação da vida (2012, p. 255). Por essa lógica, a morte nada mais é do que uma dinâmica natural de circulação do axé, uma restituição da individualidade da pessoa à massa genérica:

(...) Para os Nagô, a morte não significa absolutamente a extinção total, ou aniquilamento, conceitos que verdadeiramente o aterram. Morrer é uma mudança de estado, de plano de existência e de status. Faz parte da dinâmica do sistema que inclui, evidentemente, a dinâmica social. (...) Uma passagem que significa uma nova

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transformação dos elementos relacionados com a diferenciação de matéria. (Ibid., pp.252-253)

É no momento da morte, e particularmente com os ritos que se inserem na ocasião, que a pessoa enquanto unidade, reconstruída na iniciação, será desconstruída, pois já não porta mais o èmi, o sopro vital, que se desprende de seu corpo e volta ao Orum, reintegrando- se na massa de ar que deu sua origem e, segundo Santos (Ibid., p.264), pode corporizar-se em novos indivíduos. O corpo, ao ser enterrado, irá se decompor e suas partes úmidas serão reintegradas às águas contidas na terra, sua carne e partes obscuras serão absorvidas pela terra e as partes brancas integrarão o giz. De acordo com a autora, o corpo passará por uma transformação e irá integrar os elementos genéricos (SANTOS, 2012, p.264). Como vimos, as partes foram unidas pelo processo de iniciação e agora, após a morte, será realizado o “desfazimento” da pessoa, em um ritual conhecido como Axexê (SILVA, 2005, p.132).

Seguindo a base mitológica para a compreensão da religião, trabalharemos aqui o mito sobre a origem do Axexê, que conta a história de Oiá, também conhecida como Iansã, que através do ritual, homenageia seu pai adotivo, Odulecê:

Vivia em terras de Queto um caçador chamado Odulecê. Era o líder de todos os caçadores.

Ele tomou por sua filha uma menina nascida em Irá,

que por seus modos espertos e ligeiros era conhecida por Oiá. Oiá tornou-se logo a predileta do velho caçador,

conquistando um lugar de destaque naquele povo.

Mas um dia a morte levou Odulecê, deixando Oiá muito triste.

A jovem pensou numa forma de homenagear o seu pai adotivo. (PRANDI, 2001b, pp. 310-311)

Iniciando esse ciclo de “homenagens” a que se propõe o Axexê, após a morte do indivíduo, alguns elementos serão cuidadosamente manipulados por um sacerdote devidamente qualificado e iniciado para essa ocasião. O osù, cone feito com vegetais, minerais e animais, colocado no topo da cabeça durante a iniciação, será simbolicamente retirado, como assinala Previtalli (2014, p.72). O topo da cabeça do iniciado falecido será cuidadosamente raspado e os cabelos dessa área serão envolvidos em algodão, em conjunto com outras substâncias passadas na cabeça, representando a inversão do rito de iniciação. Essas substâncias serão posteriormente depositadas em um lugar previamente indicado por Exu Eleru, que é o responsável pelo carrego, seu transporte e despacho (SANTOS, 2012, 264; PRANDI, 2001c, p.55).

Em sua fase preparatória, o Axexê conta com o levantamento provisório junto ao Ile- Ibo-Aku, local cujo acesso só é permitido aos sacerdotes do culto, onde serão adorados os

73 mortos e onde se encontram os “assentos”, que são o conjunto de objetos que representam o morto (SANTOS, 2012, pp. 34 e 265). Essa fase do ritual funerário do Candomblé pode ser simbolizada pelo próprio mito de origem do Axexê:

(...) Reuniu todos os instrumentos de caça de Odulecê e enrolou-os num pano.

Também preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear Dançou e cantou por sete dias,

espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto,

fazendo com que se reunissem no local todos os caçadores da terra Na sétima noite, acompanhada dos caçadores,

Oiá embrenhou-se mata adentro

e depositou ao pé de uma árvore sagrada

os pertences de Odulecê. (...) (PRANDI, 2001, p.311)

Em seus cinco primeiros dias o Axexê contará com cerimônias iguais, iniciando-se pelo Padê, rito privado e carregado de grande perigo, pois, segundo Santos, é um rito de grande poder sobrenatural (2012, p.210). Os participantes vestem roupas brancas, que cobrem todo o seu corpo e, em especial, as mulheres que têm seu dorso e cabeça também cobertos, para a proteção contra os eguns (BARBOSA, 2006, p.66). Sobre a simbologia do branco no Candomblé, Ligiéro salienta que:

O branco revela as cores do leite, do esperma, das secreções do corpo. Representa a luz solar responsável pelo oxigênio que respiramos e por toda a vida na Terra. O branco simboliza também a origem de toda a matéria, e todas as cores numa só. A cor branca, em si, revela o Orixá Obatalá (Oxalá), um dos criadores do mundo. Branco é a cor do plasma do Igbin (caracol), comida preferida desse Orixá. O Efun (giz) é branco, e na África é feito com argila branca, que, misturada com sal branco, é usado em muitos rituais. (LIGIÉRO, 1998, p. 36)

A despedida e a reverência ao morto são feitas através de danças em torno de uma cuia vazia e uma vela acesa, momento em que cada filho de santo deposita uma moeda de forma ritualística na cuia e, sequencialmente, saúda os ancestrais na porta do barracão (SANTOS, 2012, p. 266-267)

A última fase do Axexê inicia-se com a repetição dos ritos dos cinco primeiros dias e, nesses dois últimos dias, os membros de terreiro não podem voltar para a cidade, tendo que ficar no local para pernoitar (BARBOSA, 2006, p.72). Ao lado da cuia, são colocados a comida e o obi (espécie de noz), e os animais que serão sacrificados. No punho dos participantes é amarrada uma tira de mariô, identificando e protegendo os filhos de santo (SANTOS, 2012, p.267).

74 O carrego do morto é preparado em conjunto com a realização dos sacrifícios dentro do Ile-Ibo-Aku, pelos sacerdotes. O destino dado ao assento do morto depende de seu grau ocupado, bem como por seu status dentro do terreiro. Desse modo, se for um sacerdote que ocupe um alto grau e status na comunidade, alguns elementos de seu assento pode permanecer no terreiro para serem reverenciados, segundo sua permissão. No Ile-Ibo-Aku, o morto é invocado três vezes para que pegue seu carrego, leve-o, separando do terreiro, e, na terceira invocação, esse carrego é destruído pelo sacerdote de grau mais elevado, que, munido de um isan, tala de palmeira, arrebenta os colares e rasga as vestimentas do falecido (SANTOS, 2012, pp. 267-268).

De acordo com Santos, na última parte do Axexê, o carrego é preparado para ser levado pelo sacerdote ao local determinado pelo oráculo, para que Exu Elerú disponha dele (2012, p.268). Os membros do terreiro permanecem no barracão, aguardando a volta do sacerdote que, após cumprir sua missão na casa do eguns, avisa aos que participam do Axexê que tudo foi cumprido e que as ligações do morto com o terreiro foram devidamente cortadas. O sexto dia de Axexê termina com uma grande roda de dança e cantigas de adeus ao morto (BARBOSA, 2006, p.73).

No sétimo dia, é feita uma refeição coletiva que tem grande importância simbólica para o Candomblé. Canta-se o Padê de encerramento e começa o sacudimento do barracão que é varrido, lavado e sacudido com ramos de folhas especiais. O luto será vivenciado durante um ano e, nesse espaço de tempo, não serão realizadas nem festas nem iniciações, apenas as obrigações internas. Fechando esse ano ritual, outra oferenda especial será realizada (BARBOSA, 2006, p. 75-76; SANTOS, 2012, p.269).

O rito do Axexê agradou muito a Olorum e, no mito, emocionado com o gesto de Oiá, concede a ela o posto de guia dos mortos, acompanhando-os no caminho para o Orum:

Olorum, que tudo via,

emocionou-se com o gesto de Oiá

e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos no caminho do Orum. Transformou Odulecê em Orixá

e Oiá na mãe dos espaços dos espíritos. Desde então todo mundo que morre tem seu espírito levado ao Orum por Oiá.

Antes, porém, deve ser homenageado por seus entes queridos, Numa festa com comidas, cantos e danças.

Nasceu assim o funerário ritual do axexê. (PRANDI, 2001b, p.311)

75 A morte é, para o Candomblé, um acontecimento repleto de simbolismos, que traz à reflexão o processo de manutenção do equilíbrio entre seres humanos e orixás, sendo este momento caracterizado como o grande sacrifício. Segundo Berkenbrock “o sacrifício é o fator que ativa e possibilita o equilíbrio. Ativa pelo fato de este equilíbrio não se algo dado a priori” (2012, p.203). Essa dinâmica tem por objetivo a restituição e redistribuição do axé e a oferenda constitui a única forma de se trocar, a ponte entre os dois níveis de existência, Orum e Aiyê (Ibid.).

(...) O único meio de manter a dinâmica e a harmonia entre os diversos componentes do sistema é a restituição e redistribuição de àse através da oferenda, do sacrifício e do renascimento. Vimos que o nascimento implica num desprendimento de matéria, numa redistribuição, numa transferência e numa perda de àse da “massa progenitora”. (...) A restituição implica sempre na transformação da existência individualizada em existência genérica, passando pela morte. (SANTOS, 2012, p.255)

Seguindo a mesma lógica dos cultos em que o sacrifício se faz presente, o morto também será uma restituição propiciatória ou expiatória, garantindo a continuação da vida e o eterno nascimento. Suas substâncias se reintegram em suas massas de origem e perdem sua individualidade através da desintegração, que transforma a vida dotada de destino e refortalece e mobiliza as forças e princípios coletivos (Ibid., pp.258-259)

Morte e renascimento, ou vice e versa, significam a restituição e redistribuição de axé, respeitando a dinâmica entre existência genérica e existência individualizada. Assim, aquele que morre e se desintegra, restitui parte das massas progenitoras, reforçando o axé delas. Segundo Santos, quanto mais expressividade e utilidade tiver o ser humano que morreu, mais seu axé será poderoso, sendo que parte dessa energia vital poderá ser reencarnada em seus descendentes diretos (Ibid., p.263)

Retomemos aqui a importância do elemento egun, pois é com o cumprimento dos ritos e celebrações pertinentes ao falecimento, que será dada a possibilidade de esse ancestre ser respeitado e venerado (Ibid., p.254). Prandi ressalta que a memória da ancestralidade é algo muito importante para o culto, principalmente como forma de continuidade corpórea do princípio de vida da pessoa:

Quando a memória do morto extravasa os limites de sua família particular e passa a ser louvada pela comunidade mais ampla da aldeia, da cidade, de uma grande linhagem que reúne muitas famílias, quando esta lembrança deixa de ser privativa de alguns indivíduos para se incorporar na lembrança coletiva, o morto não precisa mais renascer entre os vivos para garantir o ciclo de sua eternidade. (PRANDI, 2001a, p.50)

76 O autor continua salientando que, no Brasil dos dias atuais, ainda existe esse culto aos ancestrais ilustres, que são invocados nas diferentes cerimônias e relembrados por várias gerações. Porém, essa noção de “continuidade” não pode ser tomada como algo que se insere na família carnal, pois, em nossa sociedade, muitas vezes a família-de-santo não corresponde necessariamente à família biológica do iniciado, como era comum na sociedade Nagô (Ibid., p. 51).

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