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Esse grupo é composto pelos membros da comunidade em que cada pessoa reside. Nas narrativas das professoras, a comunidade apresenta-se compartilhando interesses comuns – por exemplo, reivindicando escola para crianças, na zona rural.

âmbito familiar, no comunitário, no religioso, no institucional. Em diferentes dimensões de nossas vidas, os grupos-referência nos acompanham, direcionando nosso agir, nosso pensar, nosso sentir e nosso viver. Para Freire,

[...] a educação, como formação, como processo de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, se tornou, ao longo da aventura no mundo dos seres humanos uma conotação de sua natureza, gestando-se na história como a vocação para a humanização [...] (FREIRE, 1995, p. 21).

A idéia de nossa “vocação para a humanização” por meio do processo ensino-aprendizagem está presente na Constituição de 1988, no artigo 205, no qual lemos onde encontramos que a educação é um “direito público subjetivo”. Desse modo, todo ser humano tem esse direito, desde a mais tenra idade.

Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRA0IL, 1988, grifo meu).

Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

VII – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Parágrafo 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo (BRA0IL, 2007).

O descumprimento destes artigos de nossa Carta Magna ocorre quando a oferta de educação escolar não corresponde ao atendimento da demanda socioeducativa de cada “Cidade”, o que incide num contingente de crianças, jovens e adultos analfabetos funcionais ou absolutos, portanto, com seu direito à educação e à cidadania negados. Freire mais uma vez, alerta:

[...] não é possível ser gente sem, desta ou daquela forma, se achar entranhado numa certa prática educativa. E entranhado não em

termos provisórios, mas em termos de vida inteira. O ser humano jamais pára de educar-se. [...] Daí que se possa observar facilmente quão violenta é a política da Cidade, como Estado, que interdita ou limita ou minimiza o direito das gentes, restringindo-lhes a cidadania ao negar educação para todos [...] (FREIRE, ibid., p. 21).

Essa constatação de Freire evidencia-se nas narrativas das professoras e foi vivenciada, principalmente, por Ana Queiroz, Ana Luíza, Euci e respectivos familiares, ao começarem a se “entranhar” no mundo escolar. Após a construção e a constituição da escola, por iniciativa dos pais e da comunidade, as professoras destacaram que a inserção dos alunos de diferentes faixas etárias em turmas multisseriadas, sob a responsabilidade de uma professora leiga foi a realidade vivenciada por todas elas.

Como em todo lugar, a escola também funcionava de modo precário. No início, eram apenas bancos na casa de minha avó, depois foi construída uma escola com apenas uma sala de aula, onde uma única professora atendia todas as crianças em turmas multisseriadas de 1ª a 4ª séries (ANA QUEIROZ, 2005).

[...] Na região onde morávamos havia mais ou menos quatro famílias numerosas iguais à minha. Éramos nove irmãos. Devido a essa circunstância meus pais e os demais solicitaram o funcionamento de uma escola para nos assistir. Depois de muita espera enviaram uma professora para aquele local [...] (ANA LUÍZA, 2005).

A escola mais próxima ficava seis quilômetros longe de casa, então meu pai, preocupado com a necessidade dos filhos estudarem, juntou-se aos demais pais da vicinal onde residíamos e foram até a prefeitura solicitar uma escola. Neste encontro, decidiu-se que os pais construiriam a sala e a prefeitura providenciaria a professora. Vi meu pai e seus vizinhos construírem com as próprias mãos a primeira escola formal que freqüentei [...].

A turma era multisseriada com alunos do ‘1º ao 5º ano primário’. A professora foi escolhida numa reunião entre pais, alunos e 0ecretaria de Educação do município. Era uma jovem de 18 anos residente na comunidade e possuía apenas o ‘5º ano primário’. [...] Neste espírito de companheirismo, que na época não fazia parte de nenhum movimento social instituído, construí os primeiros conceitos cognitivos, sociais e políticos (EUCI, 2005).

Para as professoras Ana Queiroz, Ana Luíza e Euci, o processo de aprendizagem informal, na infância, deu-se em torno da vida comunitária, que lhes permitiu vivenciar a forma como os adultos compartilharam as dificuldades, os

sonhos, as necessidades e, sobretudo, a reivindicação coletiva, aos poderes públicos, da primeira escola, onde elas iniciaram os processos de aprendizagem formal. Essas vivências foram de fundamental importância para as professoras, porque o “espírito de companheirismo” que envolveu o grupo familiar e o grupo comunitário configurou uma aprendizagem informal, que lhes possibilitou os “primeiros conceitos cognitivos, sociais e políticos”.

É especialmente a experiência formadora da professora Euci que quero destacar aqui. Tendo vivenciado a implicação de seu pai e da comunidade na construção da primeira escola que freqüentou, ela transpôs essa vivência dos dois grupos-referência para sua vida pessoal e profissional quando se aliou a um grupo de professoras para criar a Escola de Aplicação dentro da UFRR e quando lutou politicamente pela garantia desse espaço como profissional, mãe de alunas e membro da comunidade. 0ua postura e sua atitude são reveladoras da aprendizagem significativa ocorrida nos grupos-referência: o grupo familiar e o grupo comunitário.

A vinda para a universidade fez a diferença. A proposta de criação de uma Escola de Aplicação tornou-se um desafio permanente para um grupo de professoras fundadoras, no qual estou incluída. Além do trabalho de implantação – profissional e físico – dentro da universidade, isso gerou um sentido diferente para a minha profissão (EUCI, 2005).

Para Bruner (1997, p. 34), os valores que possuímos estão presentes no nosso modo de pensar e de agir e são construídos ao longo de nossa trajetória de vida. Esses valores estão relacionados com a comunidade cultural a que pertencemos, portanto ao grupo-referência.

[...] os valores são inerentes a compromissos assumidos com ‘estilos de vida’, e os estilos de vida, em sua complexa interação, constituem uma cultura. Nós não fazemos com que nossos valores eclodam caso a caso, por puro modismo, ao sabor de cada situação de escolha, nem eles constituem o produto de indivíduos isolados, sujeitos a fortes impulsos e neuroses compulsivas. Ao contrário, eles

são compartilhados e dizem respeito à nossa relação com uma comunidade cultural [...] (BRUNER, 1997, p. 34).

Como se percebe, o processo de constituição da identidade docente perpassa pelos grupos-referência, sendo “compartilhados” por “sucessivas socializações” (DUBAR, 2005) e evidencia que as experiências que marcaram e que acompanharam o processo de constituição docente das professoras estão impregnadas de valores e princípios forjados pelos membros dos grupos de pertença, por “uma comunidade cultural”. As professoras, em sua totalidade (100%) destacaram a importância das vivências na comunidade.