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O grupo familiar é o grupo composto por pessoas com laços de parentesco entre si, seja por relação consangüínea, seja por adoção. O interesse do pai e da mãe reside no desejo de propiciar aos filhos o desenvolvimento biológico, psicológico, social e espiritual para o exercício da cidadania. Nas narrativas das professoras, os membros da família mais referenciados são os pais. As professoras destacam o interesse de seus pais no processo de escolarização e a influência intergeracional na transmissão dos saberes escolares. As alunas-professoras Jocélia, Ana Beatriz e a professora Euci, 50% das participantes, foram alfabetizadas por seus pais.

Elas ressaltam que estes lhes ofereceram, no processo de interação adulto/criança o primeiro exemplo de docência ao assumirem a tarefa de ensinar a ler e a escrever por meio de processos de aprendizagem informal (ALHEIT e DAU0IEN) o que se configurou como experiência formadora em sua constituição identitária docente. O primeiro refere-se às vivências da aluna-professora Jocélia com sua mãe:

[...] tenho desde a infância, a primeira e mais importante referência de educadora, minha mãe, professora utópica, que se orgulha daquilo que considera um dos maiores méritos de sua vida: seus trinta e dois anos de sala de aula na rede pública de ensino (ALHEIT e DAU0IEN, 2006),

O modelo biográfico de “professora utópica” serve de referência para si mesma como professora. O modo de aprendizagem escolar no grupo-familiar é discutido por Jocélia (2005), que mostra a divisão das tarefas de seus pais como alfabetizadores.

[...] nada se compara aos momentos de alfabetização proporcionados por meus pais. Minha mãe contava-me belos contos para serem interpretados e ensinava-me a escrever palavras até

com gravetos no chão. E meu pai, um lavrador semi-analfabeto, ensinava-me cálculos matemáticos mentais a partir do peso dos produtos agrícolas colhidos, sonhando para a única filha a formação que não teve [...] (JOCÉLIA, 2005).

É significativo que sua mãe compartilhasse com o marido, que não exercia a docência formalmente, a responsabilidade de alfabetizar a filha. A mãe de Jocélia usou como metodologia, para ensinar-lhe ler e escrever, a leitura de “belos contos para serem interpretados” e ensinou-lhe a escrever “com gravetos no chão”. Já seu pai, homem simples e analfabeto funcional, teve a criatividade de utilizar os recursos à sua volta a exemplo dos produtos agrícolas que plantava e colhia para ensinar-lhe “cálculos matemáticos mentais”.

No segundo exemplo, o das vivências da professora Ana Beatriz, evidenciou-se a familiaridade com a profissão docente e o cotidiano escolar desde a mais tenra idade devido seus pais terem sido professores. 0ua mãe mais diretamente assumiu a direção de lhe propiciar a leitura da palavra. É possível que tenha se utilizado de metodologias específicas para desenvolver as habilidades lingüísticas da filha que a favorecesse na obtenção de sucesso nos primeiros anos escolares. Além de aprender a ser professora com a mãe, seu pai, que também era professor, lhe ensinava indiretamente algumas especificidades da profissão, como o planejamento das aulas e o compartilhamento com os pares, sua mãe:

Não fiz pré-escola e lembro de minha mãe orgulhosa me levar para 1ª série já sabendo escrever e ler um pouco, fruto de seu trabalho em casa.

[...] Meus pais são professores, meu 2º irmão é professor de Matemática. [...] Cresci acompanhando meus pais para a escola ou mesmo nos levando quando coincidia em estudarmos na mesma escola em que eles trabalhavam.

[...] também me lembro dele planejando suas aulas e comentando com entusiasmo algumas delas com minha mãe.

E apesar de meus pais serem professores a coisa em casa não era tão fácil, pois as respostas e ajudas quando pedíamos, só vinham depois deles nos fazerem pesquisar e buscar encontrarmos sozinhos. Às vezes eu não entendia isto e não via muita vantagem em ter pais professores se eles sempre me mandavam pesquisar (coisas de criança). Em casa não se admitia deixar de fazer a tarefa ou mesmo faltar aulas (ANA BEATRIZ, 2005).

A professora Ana Beatriz destaca que a pesquisa era o “princípio educativo” que norteava a prática educativa de seus pais-professores. A disciplina diante das tarefas escolares e a assiduidade na freqüência às aulas eram exigências indispensáveis em sua formação. Essas características da atuação educativa dos pais de Ana Beatriz (2005) repercutiram de modo significativo em sua prática educativa, conforme seu relato abaixo:

Lecionei por alguns anos Língua Portuguesa, Educação Cristã e sempre fui reconhecida como uma professora dedicada, que gostava do que fazia e buscava fazer bem. 0empre quis ensinar diferente: pesquisava e adaptava. Elementos-surpresa (motivação) para conquistar meu aluno eram meu desafio constante (JOCÉLIA, 2005).

O reconhecimento de si mesma “como uma professora dedicada” e a sua auto-identificação com a profissão docente, que gosta do que faz e procura “fazer bem”, são reveladas na descrição de suas ações educativas e na prática da pesquisa. Vale ressaltar que essas declarações reafirmam os processos de aprendizagem informal – propiciados por seus pais, no grupo familiar –, durante sua formação escolar. Nesse sentido, é possível afirmar que formação continuada é a formação que ocorre ao longo da vida, é a “[...] formação no sentido de uma construção progressiva que se manifesta numa história de vida [...] [e que] o essencial da formação reside no processo” (DOMINICÉ, 1988, p. 56-57).

O terceiro exemplo é o da professora Euci, que aprendeu a ler e a escrever em grupo. Evidencia-se a assunção da docência por seu pai, um agricultor, analfabeto funcional, que foi seu primeiro professor e que se utilizava de recursos disponíveis em sua casa, como os “rótulos das compras, revista Família Cristã e os catecismos”. 0ua mãe, por outro lado, ajudava a confeccionar os cadernos com “papel de embrulho”. Essas estratégias de ensino e de aprendizagem possibilitaram- lhe a aprendizagem das primeiras letras, e também a do exercício da docência.

[...] Meu pai, apesar de ter freqüentado apenas um mês de aula, aprendera a escrever e avançou no processo de escrita social, que

lhe permitiu ensinar-me o que ele chamava o ABC – alfabetização. Quase todas as noites, após as ‘lidas na lavoura’, tínhamos um tempo de estudos em torno da mesa: eu, meu irmão e um empregado adolescente.

Escrevíamos e juntávamos as letras (formando palavras), em cadernos feitos em papel de embrulho que minha mãe confeccionava. Líamos rótulos das compras, revista Família Cristã e os catecismos. Desta forma, quando fui matriculada na escola, com seis anos e meio, já sabia ler e escrever com relativa autonomia (EUCI, 2005).

As experiências formadoras vivenciadas por Jocélia, Ana Beatriz e Euci, no grupo familiar fazem parte de sua constituição identitária docente e denotam em seu contexto a aprendizagem da profissão docente com três características que eu considero de fundamental importância para o exercício de qualquer profissão, a saber: responsabilidade, afetividade e compromisso. Essas características têm seu ponto de culminância no que Nóvoa (1988) aponta como categorias que representam a identidade com a profissão. 0ão elas: a) adesão, referente aos princípios e valores éticos e morais; b) ação, envolvendo os princípios e valores forjados em nossa formação pessoal e profissional, os quais nortearão nossas tomadas de decisão; e c) autoconsciência, que diz respeito à reflexão sobre si mesma e sobre sua ação, para possibilitar “a mudança e a inovação pedagógica” (NÓVOA, 1995, p. 16).

Nesse sentido a identidade profissional perpassa pelo reconhecimento da unidade do objeto, a prática educativa. Essa identificação de si mesmo que envolve a adesão, a ação e a autoconsciência, permite agregar a dimensão ética da profissão docente, pois conforme Contreras (2002, p. 79), “[...] somente nos contextos sociais, públicos, a obrigação ética pode alcançar sua dimensão adequada”. Assim sendo, foi/é no contexto escolar que as atitudes éticas e morais da aprendizagem informal sobre a docência, experimentadas no grupo familiar, incidiram na atuação profissional das professoras, quando elas se defrontaram com experiências desafiadoras nos primeiros anos de exercício da profissão docente, conforme os testemunhos abaixo:

Ao fazermos o diagnóstico dos alunos das duas primeiras séries no mês de agosto, detectamos apenas 40% dos alunos no nível alfabético, fato que mexia com a auto-estima de alunos e

professoras, mas também nos motivava a continuar nos complementando em termos de capacidades e limitações, como era proposto aos alunos (RELATO DE EXPERIÊNCIA, JOCÉLIA, 2005).

[...] no 2º bimestre, fazia parte do conteúdo programático uma experiência sobre a germinação das sementes. Vinha a instrução no livro e eu propus aos alunos que trouxessem, para a aula seguinte, potes de margarina e grãos de feijão.

Quando terminei de falar, pela primeira vez, Beto levantou a mão e disse que eu estava ‘ensinando tudo errado’. Quase desmaiei. [...] Ele respondeu que a gente não planta em algodão. [...] ele explicou como ajudava a mãe a preparar o adubo orgânico para colocar nas plantas e como as cultivava.

[...] À tarde chamei a mãe do Beto e expliquei o ocorrido. Disse que fiquei preocupada pois na escola eu não poderia fazer a experiência do jeito que descreveu, mas que achava importante aproveitar este interesse dele (RELATO DE EXPERIÊNCIA, EUCI, 2005).

Nesses relatos de experiências destaca-se a influência que o grupo familiar exerceu no exercício profissional das professoras, no sentido de compartilhamento das atividades pedagógicas do processo ensino-aprendizagem, no respeito às diferenças de aprendizagem e diferenças culturais dos alunos e nas reflexões acerca das “[...] oportunidades de análise sobre a vida e sobre suas alternativas e esperanças [...]” (CONTRERA0, 2002, p. 81) para a construção de um mundo melhor.

Passeggi alerta que é na narrativa autobiográfica que o pesquisador tem a chance de penetrar nas dimensões pessoal e profissional dos professores e, assim, propiciar a reconstrução da forma como este aprendeu a ser professor, a ser profissional, e a identificação das influências recebidas.

[...] a narrativa autobiográfica é, para o narrador, lugar de reconstrução de saberes profissionais e identitários e torna-se, por essa mesma razão, um método privilegiado para o pesquisador ter acesso ao universo da formação e à subjetividade do adulto (PA00EGGI, 2002, p. 02).

Com base nessa afirmativa da autora, identifiquei que “os saberes profissionais e identitários” das professoras sobre a docência foram forjados na infância, no grupo familiar. Acredito que as tramas vivenciadas pelos pais das

professoras Ana Beatriz, Jocélia e Euci para alfabetizá-las são evidenciadas pelos esforços empreendidos especialmente quando criam metodologias de ensino e confeccionam material didático-pedagógico. Essas ações foram forjando a identidade dessas professoras com a profissão docente. Entendo que todas as vivências se constituíram nas mais importantes influências, acionando nas professoras uma vigilância permanente em torno do processo ensino-aprendizagem, em torno da identificação com a docência.

Ao identificarem a influência familiar em sua constituição docente, as professoras reconstruíram os saberes identitários e mostraram parte de sua subjetividade. Ao assumirem a sua identidade docente, revelaram que a docência, para elas, está diretamente ligada aos princípios e valores adquiridos no grupo familiar e no grupo religioso.

Parafraseando Bosi (1994), questiono: Podemos recordar sem ter pertencido a um grupo-referência que sustente nossa memória? Nesse sentido, nas narrativas das professoras, o grupo familiar é o sustentáculo da memória que remeteu as professoras às recordações-referência (Josso, 2004) que influenciaram a constituição da identidade docente, a compreensão da educação e, sobretudo, da relevância desta para a humanização dos homens.

Josso, ao estudar as formas culturais dos elos biográficos, destaca que os laços de parentesco são os mais evocados nos relatos analisados pela autora, demonstrando que

[...] A força desses laços de parentesco se expressa nos laços de lealdade e de fidelidade que engendram e que se manifestam não apenas na preservação das relações mais ou menos ritualizadas, mas igualmente nas convicções adotadas [...] (JO00O, 2006, p. 376).

Nas narrativas das professoras, a “força” dos laços de parentesco, ou do grupo familiar, é especialmente identificada nas convicções adquiridas acerca da educação e do valor do saber escolar e na forma como elas fizeram a transposição dessas convicções para a prática educativa, mesmo quando forças contrárias tendiam a prevalecer. Os relatos de experiências bem-sucedidas das professoras testificam a força das convicções educacionais adquiridas no grupo familiar, e suas

opções teóricas e metodológicas justificaram essas convicções.

O grupo familiar propiciou às professoras a compreensão da dimensão social da prática educativa, e suas convicções são testificadas no momento em que elas iniciam a aprendizagem da profissão, ao criarem estratégias de formação continuada e, sobretudo, ao assumirem uma postura profissional dialógica em que a ação-reflexão-ação norteia as interações com os pares, com os alunos e com os familiares no contexto escolar. Para Contreras,

[...] 0e a educação for entendida como um assunto que não se reduz apenas à sala de aula, mas que tem uma clara dimensão social e política, a profissionalidade pode significar uma análise e uma forma de intervir nos problemas sociopolíticos que competem ao trabalho de ensinar [...] (CONTRERA0, 2002, p. 81).

Nas atividades de leitura e de escrita, os pais realizavam de forma lúdica o encontro das filhas com o saber sistematizado. É possível depreender que as professoras guardaram na memória esses momentos como os primeiros exemplos de como ser professora-alfabetizadora.

O grupo familiar, portanto, propiciou às professoras a compreensão das dimensões social e política da educação. Dessa forma, 33,33% das professoras receberam influência do pai; 16,67% da mãe, e 50% de ambos. Esses percentuais revelam que o objeto de curiosidade (FREIRE, 1995), de especulação (RICOEUR, 2000), sobre a prática educativa foi sendo forjado no grupo familiar, na infância das professoras.

4.2 Grupo comunitário: a aprendizagem informal e o espírito de