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GUILHERME DE MELLO: Os pressupostos racializados em uma historiografia da música brasileira

No documento REVISTA COMPLETA (páginas 76-80)

O prefácio da segunda edição do livro de Guilherme de Mello é assinado por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, responsável também pela revisão desta segunda edição, datada de 1947. Todavia, após dez anos, impossibilitado de continuá-la, repassou-a para Escola Nacional de Música, que era dirigida pelo Prof. Sá Pereira (MELLO, 1947, p. VI). Após correções gramaticais, Luiz Heitor, questiona:

...há utilidade em publicar dessa maneira, sem mais profunda revisão do texto, uma obra que investigações musicológicas ulteriores já ultrapassaram em tantos pontos, uma obra que, em face nossos conhecimentos atuais, aparenta uma certa ingenuidade provinciana de enunciado, contém informações deficientes e não consegue estabelecer aquele equilí- brio entre todos os fatos expostos que constitue (sic) o melhor índice da clareza e solidez dos estudos históricos? (MELLO, 1947, p. VII-VIII).

O musicólogo responde que este é um dos clássicos da história da música brasileira, chancelando, portanto, sua republicação. O aval de Luiz Heitor, chefe da Seção de Música da Biblioteca nacional do Rio de Janeiro, manteve a história da música de Guilherme de Mello no hall dos escritos canônicos, mesmo contendo informações “ultrapassadas”. É a partir desta postura, de avaliação e exaltação por in- telectuais do próprio meio, que discursos ambíguos, como o racial que proponho observar, se perpe- tuam, enclausurando a revisão do conhecimento, tornando-o inquebrantável, impossibilitando novas reflexões que modifiquem alguns paradigmas. São quase quarenta anos separando a primeira da se- gunda edição, isto é, quatro décadas de inúmeras transformações no contexto brasileiro como um todo. Guilherme Theodoro Pereira de Mello era baiano, nascido em 25 de junho de 1867 na cidade de Salvador. Filho de “família tradicionalmente consagrada à carreira militar” (MELLO, 1947, p. VII), es- tudou na instituição jesuíta Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim. Por certo, instituição que adotava doutrinas cristãs que muito influenciou a trajetória intelectual de Guilherme de Mello. Neste contexto, a cidade de Salvador vivia um complexo imbróglio social, cultural e religioso, amplo e com- pletamente racializado na segunda metade do século XIX.

Os escritos de Mello se tornaram referência para diversos trabalhos musicológicos sobre a trajetó- ria principalmente da música popular urbana brasileira, a qual o autor dá grande ênfase. Exatamente devido a isto – a música vernácula brasileira e suas raízes nos povos indígenas, afrodescendentes e eu- ropeus – que seu livro toma importância, coincidindo com o início do pensamento de valorização do nacional em fins do século XIX e início do século XX com o Brasil República.

“[...] sim o fiz com o desejo de mostrar-vos com provas exuberantes, de que não somos um povo sem arte e sem literatura, como geralmente dizem, e que pelo menos a Música no Brasil tem feição ca- racterística e inteiramente nacional” (MELLO, 1947, p. 05). Com essa afirmação, Guilherme de Mello anuncia o propósito de sua história da música, alinhando-se ao momento histórico brasileiro de busca identitária.

A história da música de Mello foi influenciada pela entrada das teorias raciais no Brasil, que levava em consideração resquícios dos debates da tardia Abolição da Escravidão e a Proclamação da República às quais a construção do pensamento social, racial e, consequentemente, cultural e musical brasileiro estava vinculada. Julgando-se como atrasada, urgente pela modernidade, parte da sociedade vivia – en- quanto outra sobrevivia – num modelo francês de civilização, pautado nos princípios de igualdade, fra-

ternidade e liberdade, mas que tinha como fantasma novas noções de sociabilidade, impregnada de pressupostos raciais. Era um cenário misto de otimismo e pessimismo, já que indivíduos, antes segre- gados da sociedade, viram-se novamente em face de grandes obstáculos. A “abertura social – experi- mentada no Brasil no final do século XIX, mas não apenas – seria freada por novos critérios de alteridade racial, religiosa, étnica, geográfica e sexual” (SCHWARCZ, 2012a, p. 21). Eram os tentáculos do ra- cismo científico, nos quais

[...] sinais físicos [foram utilizados] para definir a inferioridade e a falta de civilização, assim como estabelecer uma ligação obrigatória entre aspectos “externos” e “internos” dos homens. Narizes, bocas, orelhas, cor da pele, tatuagens, expressões faciais e uma série de “indícios” foram rapidamente trans- formados em “estigmas” definidores da criminalidade e da loucura. O resultado foi a condenação ge- neralizada de largos setores da sociedade, como negros, mestiços e também imigrantes, sob o guarda-chuva seguro da biologia. (SCHWARCZ, 2012a, p. 21; grifo da autora).

Com efeito, é neste panorama de evidente diversidade que se encontra a sociedade brasileira, di- versidade esta que transparece o fantasma de uma ambígua, dicotômica e controversa distinção entre culturas: a do colonizado e a do colonizador. Portanto, como imaginar o reconhecimento da evidente influência de outros agentes na cultura e música brasileira, proposto por Guilherme de Mello, já que eles enquadravam-se nessa segregação biológica? Como se livrar da reflexão de pressupostos raciais que evi- denciavam a construção de uma cultura etnocêntrica cristã e branca dentro de uma cultura definitiva e significativamente mestiça e diversa?

Desde a descoberta do chamado Novo Mundo, os relatos coloniais reportavam à metrópole por- tuguesa sempre destacando a existência de uma natureza paradisíaca, porém de uma estranheza dos costumes nativos. A descrição dos povos indígenas do Brasil como “atrevidos, sem crença na alma, vin- gativos, desonestos e dados à sensualidade”, só veio a incrementar a dicotomia do jardim do éden e do inferno – “desde Caminha e Vespúcio, mencionava a ambivalência entre a existência [...] da barbárie nessas terras perdidas”. Esse modelo “evidentemente etnocêntrico” moldou as gerações futuras, pois tudo que não correspondesse “ao que se conhecia [portanto, no velho mundo] era logo traduzido como ausência ou carência, e não como um costume diverso ou variado”4.

O primeiro capítulo da história da música de Mello, por exemplo, é o que ele considera como o de formação, reservado aos primórdios de civilização do Brasil, com ênfase na idealização de uma uni- dade na produção e escuta da própria música. Nele o autor cita o filósofo alemão Schopenhauer, for- mulando uma distinção da música em nível de razão e de vontade enquanto “metafísica do pensamento musical” (MELLO, 1947, p. 12). Esta metafísica justifica um dos subtítulos utilizados nessa primeira seção, “Influência dos jesuítas”, na qual é marcante a utilização da palavra “natureza” – provavelmente influência das ideias do filósofo Jean-Jacques Rousseau do “bom selvagem” como uma idealização de humanidade ainda não corrompida – e a importância dos jesuítas na construção de uma musicalidade brasileira.

O autor discorre a respeito da imposição da catequese, que tinha como objetivo difundir a fé católica, impelindo os indígenas à religião através da música. Foram es- critos autos, em português e em língua local, além do “castelhano e tupi” (AZEVEDO, 1956, p. 14) e às crianças eram ensinados instrumentos ocidentais, como flautas, gai- tas, viola e até cravo5. Segundo Azevedo, “o indígena era sensível ao canto e à música

4Cf. SCHWARCZ, “Nem preto

nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasi- leira”, p. 12 e 15.

5Cf. MARIZ, “História da Música

no Brasil”, p. 24.

6Cf. AZEVEDO, “150 Anos de

Música no Brasil (1800-1950)”, p. 10-12.

dos instrumentos”6, argumento este compartilhado e potencializado por José Ramos Tinhorão:

Ao aceitarem a música dos padres, por sua natural predisposição ao canto em comum, como fórmula de exorcismo do desconhecido (a morte, o mal, a influência dos astros, as forças da natureza), os indígenas brasileiros abandonavam sem sentir as palavras cabalís- ticas das suas canções de ritmo encantatório em favor da rigorosa lógica do cânone gre- goriano: sob-batuta dos jesuítas os índios ainda cantavam em uníssono, mas, agora, uma melodia principal, passando por todas as vozes, substituía a repetição obsessiva das pala- vras mágicas pela palavra de ordem cristã do temor a Deus. (TINHORÃO, 1972, p. 10). Esta passagem evidencia um discurso que, além de claramente exaltar os dogmas cristãos, euro- cêntricos, evidencia uma atitude outrificadora muito recorrente na historiografia da música brasileira: o colonizador português como um “exorcista” cultural. Portanto, sentimentos da religião cristã impos- tos por eles, que “levaram de vencida os cantares cabalísticos” (MELLO, 1947, p. 20), reforçam uma suposta abdicação do povo indígena de suas manifestações, sem conflito e sem contradição além de evidenciar a desconsideração às complexidades filosóficas de suas manifestações e práticas.

Na historiografia da música de Guilherme de Mello a presença e atuação dos povos indígenas na música brasileira são postas de forma equivocada, pois nesse contexto racializado de transição século XIX ao XX aspectos das culturas negra e indígena são (con)fundidos, formando um amálgama fantasioso e improvável, revelando os primeiros indícios de influência das teorias do branqueamento.

Nesse período, a fim de validar algumas premissas, intelectuais brasileiros iniciaram um processo de adaptação das teorias raciais, resultando em ambiguidades insolúveis. A partir da literatura sobre o darwinismo social e o evolucionismo, é possível citar três intelectuais que se destacaram: Silvio Romero (1851-1914), Nina Rodrigues (1862-1906) e Oliveira Vianna (1883-1951). Em particular, Silvio Ro- mero postulava uma teoria do branqueamento e da mestiçagem da população, que partiria

[...] de uma combinação de pressupostos racistas (existência de diferenças étnicas inatas) e evolucionistas (lei da concorrência vital e do predomínio do mais apto). Previa que o ele- mento branco seria vitorioso na “luta entre as raças”, devido à superioridade evolutiva, que garante seu predomínio no cruzamento. Prevê assim, o total branqueamento da popula- ção brasileira em três ou quatro séculos. (VENTURA, 1991 apud VIANNA, 2007, p. 68; grifo do autor).

Portanto, a partir da fusão principalmente desses dois indivíduos, branco e negro, seria gerado o

tipo nacional, mas com características brancas, tanto culturais quanto raciais7. É deste amálgama, que

Silvio Romero vislumbrava uma fusão, com resposta no mestiço:

[...] da fusão e integração das raças e culturas surgiria o mulato, tipo caracteristicamente nacional. Mas o predomínio racial e cultural seria da raça e da cultura brancas, devido à extinção do tráfico negreiro, à dizimação dos índios, e à imigração branca/europeia. Assim, a miscigenação serviria, antes de tudo, ao branqueamento da população e ao predomínio do branco no tipo caracteristicamente nacional. (GOMES COSTA, 2009, p. 95).

Guilherme de Mello demonstra indícios desse contexto que procura no bran- 7 gem, racialização e gênero”, p. 94-Cf. GOMES COSTA, “Mestiça- 120.

queamento/mestiçagem um quociente nacionalizado, fazendo de semelhanças uma oportunidade de fusão. Para o autor, a música dos povos indígenas, como a registrada pelo viajante francês Jean de Lery, era “impregnada de sentimentos bárbaros e selvagens” (MELLO, 1947, p. 14), que muito se asseme- lhavam aos dos negros:

E isto não nos deve causar grande admiração, desde quando ainda hoje mesmo se encontram ves- tígios dêste canibalismo hediondo e crenças supersticiosas entre o populacho crioulo que ainda não se depurou e em cujas veias correm ainda o sangue inculto do africano. O que são os candomblés senão uma cópia fiel e autêntica dos sabaths dos indígenas? Se não é uma copia pelo menos é a primeira ma- nifestação musical nos povos bárbaros. (MELLO, 1947, p. 14-15).

Com efeito, a categorização desses povos como racialmente inferiores, caracterizando-os como “iguais”, de certa maneira, reforça um discurso de Guilherme de Mello convergente com o ideal misci-

genatório em voga, que ao mínimo sinal de proximidade, os funde.

Guilherme de Mello é quem inaugura nas histórias da música a metáfora do triângulo musical bra- sileiro, além de evidenciar que o qualitativo da música de origem africana é o ritmo, mistificando-o como a maior contribuição desses à música. Pautado num triângulo racial, os três tipos populares, evi- dencia-se a mestiçagem:

Pois bem, foi sob a influência da fusão dos costumes e do sentimento musical destas três raças com a dos indígenas, que começaram a se caracterizar os três tipos populares da arte musical brasileira: o lundu, a tirana e a modinha; dos quais o primeiro foi importado pelo africano, o segundo pelo espanhól (sic) e o terceiro pelo português. (MELLO, 1947, p. 29; grifo do autor).

Desse amálgama fantasioso dos gêneros musicais característicos que é possível, segundo o autor, o entendimento da formação de nossa “raça”:

Em frente as suas senzalas, viam-se também grupos de africanos formarem os seus batu- ques, cantando e sambando sob a toada de seus lundús, cujo ritmo bastante cadenciado e onomatopaico, representando os requebros lascivos e luxuriosos de suas mucamas pro- porcionava aos indígenas um novo sentimento musical, que se propagando entre os mes- tiços, se identificou com o sentimento pátrio, produzindo a nossa chula, ou o nosso tango ou o nosso lundú pròpriamente dito. (MELLO, 1947, p. 30).

O autor traça, portanto uma linha caracteristicamente “evolutiva” da música e raça, indo do negro – influência ligada ao ritmo, cadenciado e onomatopaico – até o mestiço (nesse caso o cafuzo, resultado da soma do negro com o índio), chegando a nossa gente – da mistura com os gêneros já mestiçados, como a chula, o tango e o lundu. Guilherme de Mello propõe uma genealogia musical através dessa mis- cigenação. As teorias relacionadas ao desenvolvimento da humanidade e deterministas, que negavam qualquer futuro na miscigenação racial, seriam elas mesmas, utilizadas para a exaltação da miscigena- ção brasileira.

Guilherme de Mello, nessa heterogeneidade na consideração das questões de miscigenação brasi- leira, do “mestiço como símbolo nacional”, serviu ao discurso intelectual da época. É perceptível um distanciamento em seu discurso da problematização dos conflitos que geraram a exclusão de povos ne- gros e indígenas, assumindo o contexto racializado de preconceito e discriminação. Seu discurso trans- parece uma ilegitimidade de “outras” vozes e o ocultamento de uma realidade social cruel com quem ele mesmo disse ser o representante do “espírito do povo”: o mestiço. 8 Cf. ALMEIDA, “História da Mú-

sica Brasileira”, p. 11-12.

Renato Almeida: “A soalheira é uma allucinação.

No documento REVISTA COMPLETA (páginas 76-80)