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Guitarra e baião: ritmo e legado na produção fonográfica de músicos brasileiros

As gravações fonográficas dos baiões de Luiz Gonzaga revelam execuções de instrumentos, dos conjuntos musicais conhecidos como regionais, que incluem guitarras de sete e seis cordas, cavaquinho, flauta e pandeiro. Além desses, atuam também conjuntamente o trio pé de serra, formado por sanfona, zabumba e triângulo, e mais a bateria, o contrabaixo (acústico e elétrico) e a guitarra elétrica, bem como outros de execução percussiva como reco- reco, gonguê e cabaça. Todos esses instrumentos formam os conjuntos musicais que acompanham Luiz Gonzaga nos diferentes períodos das gravações de seus discos.

O nome “regional” se originou de grupos como Turunas Pernambucanos, Voz do Sertão e mesmo Os Oito Batutas, que, na década de 20, associavam a instrumentação de violões, cavaquinho, percussão e algum solista a um caráter de música regional (CAZES, 1998: 85).

Dominguinhos comenta que sanfona, flauta, pandeiro, cavaquinho e dois violões comandam as gravações em discos de todos os artistas sertanejos nordestinos (DOMINGUINHOS..., 2012). Com o passar dos anos, pela dinâmica dos contínuos movimentos e inovações da música popular brasileira, os grupos regionais vão cedendo espaço aos conjuntos com guitarra, contrabaixo e bateria.

Por volta de 1946, ano do lançamento do baião na fonografia brasileira, já existem gravações com guitarra, inicialmente acústicas e posteriormente eletrificadas, de gêneros musicais urbanos como foxtrotes, marchas, choros, sambas, valsas e romances. Ouvimos o instrumento nas gravações em discos e constatamos a presença do cordofone nos primeiros catálogos de fabricantes de instrumentos no Brasil: Giannini, Del Vecchio e Di Giorgio. A guitarra clássica, o popularmente conhecido violão, adquire condições técnicas de ganho em volume por meio do uso de captadores eletromagnéticos e amplificadores de som, que favorecem a execução do instrumento no contexto dos conjuntos musicais. Josué de Barros, Henrique Britto, Pereira Filho, Euclides Lemos e Antônio Rago, são alguns dos músicos que utilizam a guitarra eletrificada na música brasileira da época, instrumento conhecido como “violão-elétrico”, também chamado simplesmente de guitarra, aproximadamente uma década antes do surgimento do baião.

O guitarrista e integrante do conjunto de Noel Rosa, Henrique Britto, é um dos músicos a utilizar a guitarra, de origem americana, em terras brasileiras. Além de Britto, outros guitarristas, já citados anteriormente, destacam-se também como introdutores do instrumento na música popular brasileira como é o caso de Josué de Barros, que acompanha a cantora Carmem Miranda no início de sua carreira; de Antônio Rago, que lança um livro autobiográfico sobre sua vida de guitarrista e José do Patrocínio Oliveira, o Zezinho, que traz da Alemanha uma novidade: a guitarra eletrificada. E ainda, além desses, Pereira Filho, Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, e Zé Menezes, são também pioneiros da guitarra elétrica no Brasil:

Quando cheguei ao Rio, em 1943, para substituir Garoto na Rádio Mayrink Veiga, nem se falava em guitarra elétrica. Só o Pereira Filho tocava um violão elétrico. Não tínhamos nem como adquirir o instrumento. Em 1947, o próprio Garoto me levou à Rádio Nacional. Em suas viagens com a Carmen Miranda pelos Estados Unidos, o Garoto viu a guitarra acústica sendo usada

para executar bases. Ela fazia a vez do banjo, que era utilizado aqui, no Brasil, em bandas de jazz. A Rádio Nacional tinha grandes orquestras e Radamés Gnattali, que era maestro da emissora, ia colocando a guitarra a partir da convivência com o Garoto e comigo” (CARRILHO, 2014: 20-21).

Em depoimento ao documentário sobre o lançamento do livro Heróis da Guitarra, Zé Menezes nos fala também de outro guitarrista: “só quem tinha uma guitarra americana, naquele tempo, era o Bandeirante” (HERÓIS..., 2018).

Gravações de baiões no formato instrumental, já com a guitarra eletrificada como instrumento integrante dos conjuntos, surgem na fonografia brasileira revelando composições, arranjos e improvisações que contribuem para a criação de um repertório com características peculiares do ritmo nordestino em linguagem idiomática do instrumento. Numa entrevista ao guitarrista Mozart Mello, em edição nacional do periódico Guitar Player, Heraldo do Monte fala sobre o desenvolvimento de uma linguagem de improvisação brasileira:

(...) Começamos a pensar em desenvolver uma linguagem de improvisação brasileira (...) então, tivemos a seguinte idéia: ‘Que tal criarmos também uma linguagem de improviso?’ (...) e começamos a ouvir folclore, e a criar e treinar (...) tem um pouco disso no disco do Quarteto Novo (...) e a gente acabou criando uma linguagem (...) (MELLO, 1996: 78).

A guitarra elétrica só vai aparecer no conjunto musical de Luiz Gonzaga no show ao vivo, de 1972, intitulado Luiz Gonzaga volta pra curtir4, anteriormente mencionado. Os

4 Link do áudio do show completo na Internet:

músicos que integram o grupo do sanfoneiro nesse show, posteriormente lançado em CD, em 2001, são os seguintes: Dominguinhos (sanfona), Maria Helena (voz, triângulo, cabaça), Toinho (triângulo), Raimundinho (reco-reco), Ivanildo Leite (zabumba, gonguê e triângulo), Porfírio Costa (baixo) e a presença inédita da guitarra elétrica, executada por Renato Piau, nunca antes utilizada no grupo de Gonzaga. Segundo Piau, “foi a primeira vez que Luiz Gonzaga conseguiu, quer dizer, quis tocar, aceitou, tocar com guitarra...naquele forró que ele fazia, pé de serra” (REVISTA..., 2012).

Nesse show, Luiz Gonzaga toca e canta ao vivo músicas de suas parcerias executando a sanfona, sob o acompanhamento de seu grupo, nos vários gêneros nordestinos de seu repertório incluindo o baião. O guitarrista Renato Piau, protagonizando o uso inédito da guitarra elétrica no contexto da música de Gonzaga, executa as bases harmônicas e realiza improvisos melódicos durante as falas de Gonzaga e em alguns trechos de músicas do show. Piau desenvolve uma forma de tocar os ritmos, acordes e melodias das composições de Luiz Gonzaga à guitarra elétrica, adicionando um sabor “bluseiro/roqueiro”, condizente com a época, ao baião de Luiz Gonzaga. O instrumento aparece também, posteriormente, em outras gravações da fonografia do sanfoneiro.

Luiz Gonzaga, sempre aberto a ideias inovadoras e contextuais que fortaleçam e viabilizem o intuito em inovar o seu baião urbano, demonstra afinidade com o novo e o atual nas demandas do mercado fonográfico, sem deixar as raízes nordestinas de sua música. Na fonografia de sua obra musical o sanfoneiro inicialmente toca e grava ao lado de conjuntos regionais, depois define e acrescenta a “clássica” formação do trio pé de serra, para em seguida render-se à guitarra elétrica acompanhado do baixo e da bateria. Dominguinhos nos conta que:

“(...) Esses instrumentos de acompanhamento foram cedendo lugar às guitarras (...) desse tempo em diante a guitarra entrou (...) mas ele (Gonzaga) também adorava mudanças, e se rendeu, botando também em algumas gravações, guitarra (...)” (DOMINGUINHOS..., 2012).

A música O Fole Roncou, um baião cantado por Luiz Gonzaga, em parceria com Nelson Valença, do disco intitulado Luiz Gonzaga, lançado em 1973, tem o seguinte comentário do jornalista pernambucano e crítico de música, José Teles:

Ele (Gonzaga), por sua vez, abriria a cabeça para os novos tempos. A síntese de tudo isto está no disco que faria no ano seguinte (1973), o LP Luiz Gonzaga (bastou unicamente o nome por título) na faixa O Fole Roncou (uma das cinco no álbum compostas por Nelson Valença). A música é aberta com a mais antológica introdução de uma guitarra na MPB (tocada por Geraldo Vespar). A linha melódica do baião é totalmente diferente de tudo que ele havia feito até então, é ao mesmo tempo é puro Luiz Gonzaga, numa gravação definitiva. (TELES, 2012)

Nas décadas seguintes, a guitarra e o baião são utilizados para a construção de um repertório musical, nas gravações de guitarristas, que levam o gênero nordestino ao formato de música instrumental, por meio de gravações na fonografia brasileira, contribuindo para o desenvolvimento de ambos: gênero e instrumento. Músicos de distintas formações e estilos gravam composições e arranjos voltados para o gênero baião tendo a guitarra como o meio de expressão musical. Algumas músicas desse repertório são intituladas com atributos ao gênero em palavras e expressões do tipo: Baiãozinho, Baião alterado, Baião experimental, Baião por

acaso, Baião minimal e Baião barroco. Outras composições que não possuem o termo baião

no título foram analisadas por meio de escutas repetidas e verificadas quanto às características rítmicas, melódicas e harmônicas pertinentes ao gênero.

Este terceiro capítulo do trabalho traça uma cronologia de gravações com baiões à guitarra, inserida em conjuntos e a solo, por meio da coleta de fonogramas para verificarmos o desenvolvimento e as criações e recriações do ritmo nordestino, em suas características peculiares, nas execuções de músicos guitarristas em temas musicais no formato instrumental. Aspectos da execução do baião à guitarra estão apresentados, discutidos e refletidos juntamente sobre as contribuições desses músicos como continuação do legado de Luiz Gonzaga.

O Quadro 2, exposto a seguir, contém uma relação em ordem cronológica de gravações fonográficas do baião coletadas entre os anos 1951 a 2014. No Quadro, observamos a presença de formações instrumentais contendo solos, duos, trios, quartetos e conjuntos maiores como orquestras. Em seguida, todas as gravações estão comentadas com análises nos aspectos da composição, arranjo e improvisação (ver Quadro 2, pp. 75-77).

Ano Título Autores Executantes *bpm (1951) Baião no deserto Abel Ferreira & Zé

Menezes

Abel Ferreira e seu Conjunto

97

(1951) Oriental Pedro Raimundo Pedro Raimundo com

Pereira Filho e seu Conjunto

91

(1952) Mexe com a gente

Euclides Lemos Euclides Lemos 111

(1952) Ciganinha; Cuco; Tristonho

Paschoal Melillo Paschoal Melillo e seus guitarristas

97; 107;

80

(1953) Baião da Bahia Bola Sete Bola Sete (grupo) 103

(1953) Sonhador Luiz Bonfá Luiz Bonfá (grupo) 115

(1953) Conversa fiada Pereira Filho Pereira Filho e seu

conjunto

110

(1954) Caruaru Belmiro Barrela Ribamar e seu conjunto de

boate

126

(1954) Saci Antônio Bruno Carlinhos e seu conjunto 110

(1956) Baião da garoa; Baião; Cabeça inchada;

Paraíba; Qui nem jiló

Orlando Silveira e sua Orquestra 95; 107; 116; 104; 123

(1956) Baião Radamés Gnattali Radamés Gnattali &

Laurindo Almeida (duo)

113

(1957) Boneca japonesa Antôno Rago & Mário Vieira

Rago e seu conjunto 120

(1957) Blue baião Gonzaga/Teixeira Laurindo Almeida Quartet 143

(1966) Baion blues; Mulher rendeira

Gonzaga/Teixeira Zé do Norte

Bola Sete (grupo) 95;

103

(1967) Vim de Santana Quarteto Novo Quarteto Novo 135

(1971) Shebaba Bola Sete Bola Sete (grupo) 120

(1973) O fole roncou Nelson Valença Luiz Gonzaga (grupo) 118

(1973) Baião de São Sebastião

Humberto Teixeira Luiz Gonzaga (grupo) 113

(1976) Baião violado Dominguinhos Dominguinhos (grupo) 110

(1976) Concerto I Radamés Gnattali Dilermando Reis e

Orquestra

115

(1980) Baião da barca Zé da Flauta & Paulo Rafael

Zé da Flauta & Paulo Rafael (grupo)

140

(1980) Forrozin Heraldo do Monte Heraldo do Monte (grupo) 160

(1980) Pro Zeca Victor Assis-Brasil Hélio Delmiro (grupo) 145

(1981) Baiana Claudio Bertrami Grupo Medusa 110

(1981) Um bolerésio Fredera Fredera (grupo) 115

(1983) Coisa de lá Heraldo do Monte Heraldo do Monte (grupo) 103

(1983) Nordestina Olmir Stocker Grupo Medusa 125

(1983) Dois na

brincadeira

Heraldo do Monte Heraldo do Monte (grupo) 105

(1984) Mulher rendeira Zé do Norte Hélio Delmiro (grupo) 140

(1984) Baião cigano Nonato Luiz Nonato Luiz (solo) 103

(1985) Baião cansado Marco Pereira Marco Pereira (solo) 80

(1985) Pra Hermeto Marco Pereira Marco Pereira Trio 125

(1989) Quebra-pedra Tom Jobim Victor Biglione (grupo) 138

(1991) Tenha modos Ary Piassarollo Ary Piassarollo (grupo) 160

(1993) Baião por acaso Nelson Faria Nelson Faria (grupo) 149

(1993) Baião minimal Ulisses Rocha Ulisses Rocha & Teco Cardoso (duo)

132

(1993) Pablo Heraldo do Monte Heraldo do Monte (grupo) 97

(1996) Amolando faca Cristiano Pinho Cristiano Pinho (grupo) 120

(1996) Baião Gonzaga & Teixeira Dominguinhos (grupo) 117

(1996) Sertão Richard Galliano Richard Galliano Quartet 112

(1998) Quartzo verde Marcos Maia Grupo Quartzo 128

(1998) Na pisada Heraldo do Monte Heraldo do Monte (grupo) 105

(1998) Do baião Marcos Maia Marcos Maia Trio 140

(1998) Qui remédio Mozart Mello Mozart Mello (grupo) 127

(1999) Baião Rio Victor Biglione Victor Biglione Quartet 171

(2000) Baião

experimental

Luciano Magno Luciano Magno (grupo) 113

(2000) Baião barroco Juarez Moreira Quadros Modernos (trio) 117

(2001) Baião Luiz Gonzaga &

Humberto Teixeira

Luiz Gonzaga (grupo) 109

(2001) À procura do conde

Luiz Duarte Grupo Marimbanda 133

(2001) Baião da China Lanny Gordin Lanny Gordin (grupo) 96

(2004) Pau-de-Arara Kiko Loureiro Kiko Loureiro (grupo) 135

(2004) Um outro baião Nonato Luiz Nonato Luiz (solo) 114

(2004) Tamancada Heraldo do Monte Heraldo do Monte (grupo) 110

(2005) Baião caçula Mário Gennari Filho Dominguinhos (grupo) 105

(2006) Feijão de corda Kiko Loureiro Kiko Loureiro (grupo) 138

(2006) Enquanto não se resolve

Jurandir Santana Jurandir Santana (grupo) 130

(2006) Baião menino Turíbio Santos Turíbio Santos (solo) 138

(2007) Gonzaga’s blues Felipe Cazaux & Klaus Sena

Felipe Cazaux (grupo) 118

(2007) Baião de Lacan; Baiões

Guinga/Aldir Blanc Marcus Tardelli (solo) 150; 118 (2009) Arrasta pé;

Baião de domingo

Alexandre Gismonti Alexandre Gismonti Trio 113; 140

(2009) Brejo Santo Cristiano Pinho Cristiano Pinho (grupo) 135

(2009) Baiãozinho Diego Figueiredo Diego Figueiredo Trio 94

(2009) Catatônica Fred Andrade Grupo Noise Viola 159

(2009) Se entrega, Corisco!

Kiko Loureiro Kiko Loureiro (grupo) 140

(2010) Baião country Mozart Mello Mozart Mello (grupo) 140

(2012) Baião alterado; Mãe das águas

Gabi Gonzalez Gabi Gonzalez (grupo) 130;

(2014) Baião pra Lyle e Pat

Mimi Rocha Mimi Rocha (grupo) 92

Quadro 2. Lista cronológica dos fonogramas de baiões coletados para essa pesquisa com a guitarra

inserida nos conjuntos, a solo, e seus respectivos autores e executantes. *Leia-se bpm (batidas por minuto)

Alguns dos músicos presentes nessas gravações são executantes de outros instrumentos que tem, em seus grupos e orquestras, a presença de guitarristas, como os sanfoneiros Paschoal Melillo, Orlando Silveira e Pedro Raymundo, além do clarinetista Abel Ferreira. Nos fonogramas mais antigos, não existem fichas técnicas nas capas dos discos para identificação dos músicos, e respectivos instrumentos, presentes nas gravações.

A partir da escuta repetida dos fonogramas são feitos, a seguir, comentários e análises musicais das gravações discriminadas no Quadro 2, sobre as características peculiares desses baiões. Constatamos, nos primeiros anos das gravações, a ausência de improvisos, uma prática musical posteriormente desenvolvida por esses músicos, no gênero nordestino, e que não está contemplada na obra de Luiz Gonzaga. Vale ressaltar que em 1952 Luiz Gonzaga grava o Baião na garoa, de sua autoria, o único baião instrumental coletado do sanfoneiro.

No início do Quadro 2 temos a composição intitulada Baião no deserto, lançada em 1951, parceria do clarinetista Abel Ferreira e do guitarrista Zé Menezes, executada por

Abel Ferreira e seu conjunto. Com andamento de 97 bpm e ritmo do baião no padrão 1

(Figura 31), o fonograma evoca a música árabe em sua introdução na escala de Mi menor harmônica (compassos 1-4), numa alusão a um deserto imaginário das longínquas terras do Oriente como sugerido no título e na abertura da gravação. Nos quatro últimos compassos da introdução as notas da melodia configuram-se no modo pentatônico blues em Mi. O tema é exposto quatro vezes: (8”); (1’); (1’50”) e (2’40”) (Figura 37).

Figura 37. Tema da introdução da composição Baião no deserto (Abel Ferreira & Zé Menezes).

Após a introdução de Baião no deserto, seguem-se duas partes, A e B, com

ritornelo, sempre repetindo desde a introdução. O acompanhamento rítmico e harmônico é

executado à guitarra, na parte A. Na parte B, há um contracanto à guitarra (voz inferior) com uma voz executada à clarineta (na voz superior), em intervalos musicais de terças e sextas, no modo mixolídio em Sol. O tema da composição em nenhum momento é executado à guitarra,

caracterizando um papel coadjuvante do instrumento no arranjo da gravação. A guitarra tem um papel secundário na gravação da composição (Figura 38).

Figura 38. Baião no deserto: tema da parte B executado à clarineta (voz superior) e à guitarra (voz inferior), (40”), (1’29”) e (2’15”).

No fonograma intitulado Oriental, lançado em 1951, de autoria do acordeonista Pedro Raimundo, ouvimos a gravação com acompanhamento de Pereira Filho e seu conjunto. Com andamento de 91 bpm e ritmo do baião no padrão 1, a composição também sugere, como em Baião no Deserto, uma ambiência de música oriental representada musicalmente por meio dos seguintes acordes: Gm, Eb e D. Na parte B, ouvimos trechos musicais em cromatismo, no estilo pergunta e resposta, com Pereira Filho executando fragmentos melódicos à guitarra. Em nenhum momento o tema é executado à guitarra, configurando-se, de forma análoga à composição Baião no Deserto, um papel secundário do instrumento na gravação.

Ainda na introdução da gravação de Oriental, o ritmo do baião executado à guitarra assemelha-se ao ritmo do padrão 1 do baião, na gravação do quinteto vocal 4 Ases e 1

Coringa. Lembramos que esse ritmo está presente na primeira gravação do ritmo nordestino

na discografia brasileira (Figura 39):

Figura 39. Ritmo do baião executado à guitarra na introdução da música Oriental de Pedro Raimundo.

Esses dois primeiros fonogramas comentados, Baião no deserto e Oriental, revelam a inserção de elementos musicais que dão um sabor árabe; exemplos de hibridismo e fusão com elementos musicais característicos do baião. Este gênero se permite a essa capacidade plural e multifacetada de dialogar com outros ritmos e estilos, como observaremos em outros fonogramas, que revelam algumas tendências do baião que tem a capacidade de incorporar elementos musicais advindos de outros gêneros e culturas musicais sem perder seus traços característicos.

O baião de Euclides Lemos, intitulado Mexe com a gente, de 1952, apresenta andamento de 111 bpm com a guitarra executando o tema sempre a duas vozes, em intervalos musicais de terças assemelhando-se às práticas dos executantes da viola de dez cordas. Isso requer habilidade técnica da mão esquerda do guitarrista na realização desses intervalos, na alternância de terças maiores e menores, sobre a escala do instrumento. O tema da música é de caráter tonal, em tonalidade menor, mas com mudança de modos. O esquema formal obedece à seguinte disposição em suas partes: introdução – A – A’ – e uma estrofe que utiliza novo fragmento melódico com trecho da introdução. O ritmo encontra-se no padrão 1 do baião.

Do acordeonista Paschoal Melillo, considerado como o introdutor do baião no Estado de São Paulo, coletamos os seguintes fonogramas lançados em 1952: Ciganinha (97 bpm), Cuco (107 bpm), ambas no padrão 3, e, Tristonho (80 bpm), lançada em 1953, no padrão 1. Em geral, a guitarra, presente no conjunto, realiza a base rítmica e harmônica do baião e protagoniza a divisão dos temas com a sanfona, dessa forma, o instrumento é utilizado tanto como solista quanto no acompanhamento.

Os fonogramas de Baião da Bahia, 103 bpm e Sonhador, 115 bpm, dos guitarristas Bola Sete e Luís Bonfá respectivamente, ambas no padrão 3 e lançadas em 1953, revelam a guitarra executada como instrumento principal, acompanhada de conjunto musical, principalmente nas exposições dos temas, e em todas as partes das canções. Não há a presença da sanfona nesses fonogramas, a guitarra está à frente do conjunto musical. O instrumento é utilizado da mesma forma que no baião Caruaru, em 126 bpm e no padrão 3 do baião com tema em modo pentatônico, de 1954, realizando o acompanhamento harmônico e revezando a exposição da melodia do tema com a sanfona. Ainda em 1954, coletamos o baião Saci, 110 bpm, padrão 2, de Antônio Bruno, com execução gravada por Carlinhos e seu conjunto, mais um exemplo da guitarra elétrica inserida nos conjuntos com sanfona.

Nos cinco fonogramas coletados do maestro e sanfoneiro Orlando Silveira, do ano de 1956, destaca-se a questão do arranjo, prática musical comum nas formações dos grandes

conjuntos que eram chamados de orquestras. Nesse contexto de escrita pré-determinada a guitarra atua de forma semelhante a um instrumento de orquestra. Há momentos de exposição e silêncio, e a guitarra não permanece sendo executada em toda a extensão da gravação, e sim de forma contígua em fragmentos melódicos.

A gravação intitulada Baião, 113 bpm, padrão 1, extraída do álbum Suíte Popular Brasileira para violão (guitarra clássica) e piano, de 1956, composta pelo maestro Radamés Gnattali, está gravada e executada por Radamés, ao piano, e Laurindo Almeida à guitarra clássica eletrificada. Noutro fonograma de Radamés Gnattali temos a gravação do Concerto I

para violão e orquestra, de 1976, com a execução de Dilermando Reis à guitarra clássica do

movimento em ritmo de baião e andamento 115 bpm. Essas duas obras apresentam uma linguagem composicional sofisticada nos revelando fonogramas do baião com ares de música de concerto.

Os fonogramas comentados até o momento não apresentam improvisos ao longo das gravações. Composições e arranjos para formações variadas são alguns dos aspectos presentes com execuções previamente concebidas e sem a espontaneidade do improviso. Segundo Gridley (2009: 35), “improvisar é compor e executar ao mesmo tempo”. Esta prática, decorrente de uma intuição construída por músicos improvisadores em geral, manifesta-se por meio de recriações momentâneas que ficam registradas em outros momentos na história da fonografia brasileira. Ainda de acordo com Gridley (2009: 35), que acrescenta à sua definição de improviso como sendo “a prática de se tomar liberdades com as melodias e acompanhamentos das músicas que estão sendo executadas. Isso levou ao que hoje chamamos de improvisação”. Nas palavras de Maranesi (1987: 10) “o improviso, ato criativo no qual a invenção se dá no mesmo momento que a execução, exige do improvisador um estado de atenção permanente, onde à intuição se acrescenta uma boa dose de raciocínio”. Ambas as citações anteriores fazem referência à prática do improviso, que, embora Luiz Gonzaga não a tenha utilizado nos baiões presentes em sua fonografia, constatamos o surgimento e o desenvolvimento dessa prática nas gravações coletadas para esta pesquisa no âmbito da música instrumental com guitarra no ritmo do baião.

De acordo com o Quadro 2, dos fonogramas coletados, o registro mais antigo de gravação com baião improvisado à guitarra é a música Conversa Fiada, 110 bpm (padrão 3), do guitarrista Pereira Filho (1953). Nessa gravação o músico explora possibilidades de improvisação melódica, tonal, sob o ritmo do baião, numa base harmônica constante de cadência plagal em Mi Maior em alternância com o acorde de Lá Maior. Algumas técnicas de execução utilizadas como, portamentos, trêmolos e vibratos, exploram o timbre eletrificado da

guitarra. O improviso se divide na execução de motivos melódicos e efeitos inusitados, numa espécie de divertimento.

Também encontramos outro baião instrumental sem a presença de improvisos, como em Boneca japonesa, lançado em 1957, em 120 bpm e no padrão 3, com melodia em modo pentatônico, fazendo alusão à música japonesa como o título da composição sugere. Na introdução do fonograma ouvimos o seguinte motivo rítmico/harmônico, com repetição, numa base de acordes formados por intervalos de quartas justas superpostas, conhecidos como acordes quartais (Figura 40):

Figura 40. Introdução de Boneca japonesa, baião de Antônio Rago, em harmonia quartal.

Na virada do século XIX para o século XX, alguns compositores que buscavam elementos musicais até então inusitados utilizaram as estruturas harmônicas por quartas superpostas para ampliar ainda mais as possibilidades harmônicas, misturando elementos tonais tradicionais com uma prática modal aberta e mais livre (...) as melhores soluções nas aplicações dos acordes por quartas se dão nos planos

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