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Há controvérsias na comunidade científica

De acordo com Robert Merton, nos últimos três séculos diversos homens de ciência, têm se envolvido em controvérsias envolvendo prioridades sobre descobertas. Ele cita casos que aconteceram com Galileo Galilei, Robert

Hooke e Henry Cavendish.135

“Durante todo o século XIX até o presente, disputas sobre prioridade continuam sendo frequentes e intensas”136

Algumas possíveis razões para essas disputas são citadas no trabalho

Priorities in Scientific Discovery: A Chapter in the Sociology of Science, de

Merton. A primeira delas seria a própria natureza humana, o egoísmo seria natural da espécie. O próprio Merton não acredita que essa ideia se sustente. A segunda razão seria o mesmo egoísmo, porém não como sendo a natureza humana, compartilhado por todos os homens, mas sim como uma característica de apenas alguns homens. Esse tipo de homem aparece frequentemente entre os cientistas porque “... a ciência atrai pessoas egocêntricas... famintas pelo sucesso...”. Apesar disso não ser evidente Merton afirma que:

“Ainda que isso seja uma pergunta sem resposta... em todo o caso não deve ser difícil encontrar alguns agressivos homens de ciência.” 137

135Merton, “Priorities in Scientific Discovery”, 635-6. 136

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Merton fala de um processo de seleção que seria o responsável por concentrar homens de forte personalidade no meio científico e, portanto ávidos pela fama. Ainda assim isso não seria suficiente para explicar os diversos embates verificados ao longo do tempo.

Já Bourdieu afirma que a ciência, sendo um produto do meio social, envolve relações de poder. Portanto ela não é neutra, criando uma forma muito específica de interesse. Os conflitos se dão nas esferas políticas e epistemológicas. As escolhas, portanto, estão sujeitas a uma busca por reconhecimento e prestígio. Outros cientistas são pares e concorrentes. O campo científico de Bourdieu é como um campo de disputas que gera vencido e vencedor na busca pelo capital social.138

“O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores) é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial.”139

Com todas essas disputas não é de se surpreender que as pesquisas de Roentgen com os raios X também tenham gerado alguns conflitos. Não vamos nos aprofundar nas razões que levaram a essas divergências, nosso interesse é compreender o conceito de descoberta compartilhado pela comunidade científica da época, portanto, consideramos que, de forma geral, os conflitos são gerados pela busca da notoriedade e do reconhecimento por parte da comunidade científica e vamos nos concentrar nos argumentos que questionam a originalidade e a primazia dos trabalhos de Roentgen.

137Merton, “Priorities in Scientific Discovery”, 638. 138

Bourdieu, “O campo científico”, 1-3.

139

60 2.4. Os raios de Marstaller

O primeiro questionamento e, talvez o mais pitoresco, é o caso do ajudante de laboratório Kasper Marstaller, o “faz-tudo” (factótum) que supostamente estaria presente no laboratório de Roentgen no momento da descoberta. Roentgen afirma que estava sozinho em seu laboratório nas semanas nas quais identificou a anomalia e procedeu aos experimentos que culminaram no primeiro comunicado. Isso só foi possível, pois, como já comentamos, os alunos e professores da universidade estavam em férias de final de ano e o instituto estava como um “túmulo”. 140

“Nem um único estudante estaria andando apressado pelos corredores, e ninguém, exceto talvez o factótum Kasper Marstaller, entraria no laboratório no momento em que Röntgen estivesse observando o estranho comportamento dos novos raios.”141

Kasper Marstaller afirma que teria sido ele o primeiro a notar os estranhos raios durante os experimentos de Roentgen no laboratório enquanto Roentgen estava ocupado com os ajustes dos equipamentos. Nitske afirma que Marstaller poderia ter sido o ajudante no dia dos primeiros experimentos de Roentgen ou quando Roentgen ajustou seus equipamentos para pesquisas com os raios catódicos, mas afirma que:

“... é altamente duvidoso que Marstaller tenha visto primeiro o verdadeiro fenômeno na tela antes de Roentgen, ou que ele também estivesse no laboratório escuro quando os raios se tornaram visíveis.”142

140

Nitske, The life of Wilhelm Conrad Röntgen, 95.

141

Ibid.

142

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Outra versão envolvendo o ajudante, dessa vez apresentada pelo Dr. F. Kanngiesser. Ele afirma que Marstaller contou que certa vez encontrou uma chapa fotográfica velada sobre a mesa, perto do aparato para testes com raios catódicos. Roentgen teria advertido Marstaller por sua negligência, mas o ajudante insistiu que ele não havia aberto a caixa e nem exposto o material fotográfico à luz. Esse teria sido o caminho para que Roentgen tivesse deduzido a existência de um raio invisível que teria penetrado através do metal e velado a chapa.143

Existe ainda uma terceira versão, contada por A. Dyroff, professor do filho de Marstaller no ginásio de Würzburg, ele comenta que estava interessado em mais detalhes sobre a descoberta e perguntou para o aluno se ele sabia mais detalhes. O jovem contou que seu pai encontrou uma chapa fotográfica sobre a mesa, entre o aparato e a chapa encontrava-se a aliança de casamento de Roentgen. A chapa fotográfica estava armazenada em uma caixa de madeira. Certa manhã Marstaller notou uma estranha linha que se formou na chapa fotográfica. Quando ele chamou a atenção de Roentgen para a imagem, o cientista ficou momentaneamente assustado e pensativo.

“... é um fato conhecido que Roentgen sempre retirava seu anel quando fazia experimentos no laboratório...”144

Ele tomava esse tipo de cuidado para não danificar o anel de ouro com substâncias que poderiam manchá-lo e também porque peças de metal poderiam interferir no funcionamento dos sensíveis aparelhos. Porém, essa chapa fotográfica com a suposta imagem do anel de Roentgen desapareceu.

143

Nitske, The life of Wilhelm Conrad Röntgen, 151-2.

144

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Encontramos ainda mais uma versão dessa história, contada trinta anos depois pelo Dr. Wolfgang Brendler que também era assistente de Roentgen na época da descoberta. Em uma conversa com George Manés ele relata que no dia oito de novembro, Roentgen estava em seu laboratório, sem seus assistentes, apenas com o ajudante de muitos anos. Enquanto ele investigava a condução da corrente elétrica através do tubo de Crookes, um brilho na tela de platinocianeto de bário apareceu, entre o tubo e a caixa de materiais de laboratório no armário. A atenção de Roentgen estava voltada para o tubo, quando o ajudante empolgado chamou a atenção de Roentgen para o que estava acontecendo com a tela. Roentgen olhou para trás e observou a sombra dos materiais que estavam na caixa aparecendo na tela. Na manhã seguinte

Roentgen teria contado a ele o que aconteceu.145

Para nosso trabalho a presença ou não de Marstaller no laboratório no momento da observação do brilho provocado pelos raios X não é importante. O que nos interessa é a visão de descoberta que se apresenta nesse episódio. Observamos que, mesmo membros da comunidade científica como o Dr. Kanngiesser e o professor Dyroff consideram a descoberta como sendo o momento da observação, seja do brilho na tela de platinocianeto de bário seja da imagem formada na chapa fotográfica. Não há estrutura interna, não há trabalhos anteriores e nem é necessário um cientista habilidoso e equipamentos adequados. Quem observou primeiro é o descobridor, mesmo que seja o ajudante, e a observação não tenha nenhuma fundamentação científica.

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Essa versão da descoberta ultrapassou as paredes de Würzburg, Zehnder, o assistente de Roentgen, ouviu essa especulação provavelmente vinda de Heidelberg. Conforme o próprio Roentgen conta em uma carta para Frau Boveri:

“Zehnder também ouviu a fábula de que não fui eu o primeiro a observar os raios X, mas que teria sido um assistente ou um ajudante quem descobriu. Que pobre alma invejosa teria inventado essa história?”146

Roentgen desconfiava de onde vinham esses rumores ou quem alimentava essas versões. Em uma carta para Zehnder ele menciona esse assunto:

“O rumor infame de que não fui eu, pessoalmente, que descobri os raios X, tem origem presumivelmente em Heidelberg, de [G. H.} Quinke, em cujos pés eu pisei algumas vezes...”147

O interessante é que Roentgen não questiona o fato de que a descoberta não se resume na observação do fenômeno, também não comenta que haveria algo mais complexo nessa descoberta, alguma manifestação que proponha o que entenderíamos hoje como uma estrutura. Ao que parece, ele também concorda com a ideia que a observação foi a descoberta, como foi ele que observou, ele seria o descobridor.

Uma curiosidade nessa história é o comportamento dos alunos da universidade. Roentgen era um professor enérgico, apesar de ser respeitado e admirado como cientista, havia muitos alunos que não gostavam dele como

146

Roentgen, carta para Frau Boveri em 1921 transcrita em Nitske, The life of Wilhelm Conrad Röntgen, 153.

147

Roentgen, carta para Zehnder em 1921 transcrita em Nitske, The life of Wilhelm Conrad Röntgen, 153.

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professor e, como uma forma de provocação, esses alunos se referiam aos

raios X (raios de Roentgen) como sendo raios de Marstaller.148