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3. ALIMENTAÇÃO E CULTURA: PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES

3.2. Sistema alimentar

3.2.1. Alimentos aceitos e rejeitados

3.2.1.1. Hábitos alimentares orientados por costumes e tradições

Retomando a discussão de Harris (2011), o autor explica que os costumes culturais e as tradições alimentares de cada sociedade é que orientam os hábitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por aqueles que estudam o tema da alimentação. “Como antropólogo, también

suscribo el relativismo cultural em matéria de gustos culinarios: no se debe ridiculizar ni condenar los hábitos alimentarios por el mero hecho de ser diferentes” (HARRIS 2011, p. 15).

Essa defesa também foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare, em

alimentação no importante periódico “Social Science Information”. Nesse artigo, as autoras informaram sobre a criação da “comisión internacional sobre la

antropologia de la alimentación”. A criação da comissão ocorreu em função da

necessidade de se discutir as políticas e estratégias que estavam sendo desenvolvidas e implementadas nas situações de fome aguda e/ou crônica em algumas nações naquela época. Pontuaram neste artigo aspectos importantes que devem ser observados na implantação de políticas alimentares para solucionar a fome. Estes aspectos dizem respeito à necessidade de se planejar a solução de problemas que acometem países em situação de fome que são as questões que envolvem política sanitária e higiene, conhecimento de técnicas de armazenamento e distribuição, mas chamaram a atenção de forma enfática para o respeito aos aspectos culturais: “Ha de basarse em el análisis de la sociedade.

La convicción de fondo es que los patrones locales de selección de alimentos no pueden ser impuestos, sino que dependen de la vida doméstica, de las ideias locales sobre processos fisiológicos, de división de trabajo, de horário...”

(DOUGLAS; KHARE, 1979, apud GARCÍA, 2009, p. 30).

Essa argumentação deixa claro o entendimento diferenciado das autoras sobre a necessidade da interação dos antropólogos da alimentação com profissionais de outras áreas, nutricionistas, ecologistas, economistas, agrônomos, políticos e outros atuantes em políticas sobre o combate à fome, para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenções sociais. Questão também defendida por Valente (2003), ao criticar a limitação que existe nos trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade na elaboração de projetos, porque, feitos de forma isolada cada profissional tende a ver o problema da fome com suas próprias lentes, desprezando outras possibilidades.

O profissional da saúde “enxerga” desnutrição e doença e propõe vacinação, saneamento, aleitamento materno etc. O agrônomo “diagnostica” falta de alimentos e propõe maior produção de alimentos, ajuda alimentar, etc. O educador vê “ignorância e hábitos alimentares inadequados” e propõe educação alimentar. Os economistas clássicos “identificam” má distribuição de alimentos e propõem uma melhor política fiscal, geração de emprego e renda etc. Os planejadores diagnosticam “falta de coordenação” e propõem a criação de conselhos de alimentação e nutrição e capacitação (VALENTE, 2003, p. 52).

justificativa, informou que aproximadamente dois bilhões de pessoas no mundo já se alimentam de insetos como besouros, lagartas, abelhas, vespas, formigas, gafanhotos, grilos, cupins, libélulas e moscas. À prática de se comer insetos, da- se o nome de entomofagia, segundo a FAO/ONU (2013). As justificativas da FAO estão relacionadas a aspectos de saúde, pois são altamente nutritivos e ricos em proteina, podendo substituir facilmente, em termos nutricionais, as carnes de porco, de boi, de frango e também de peixe; aspectos ambientais, pois sua produção gera baixo impacto ao meio ambiente; e aspectos relacionados a fatores econômicos e sociais. Segundo este órgão, a criação de insetos pode vir a se tornar uma opção de investimento com pouco capital e pode ser importante fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e população sem acesso à propriedade da terra, além de ser uma atividade que não necessita de tecnologia sofisticada.

Sobre isso, é importante de tecer algumas observações críticas ao considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserção de insetos na dieta em nivel global, o que significa, torná-la atrativa também naquelas culturas onde são atualmente rejeitadas. Todos esses aspectos conduzem a uma reflexão sobre outro tipo de escolha alimentar, que está relacionada à questão de ordem social e econômica. Ou seja, está em pauta se as pessoas que sofrem de fome aguda ou crônica são obrigadas a se adaptar ao exótico se assim lhes for oferecido em função de uma política pública ou se isso lhes seria oferecido como escolha passível de adoção ou de rejeição.

Tal reflexão remete às observações sobre direito à liberdade na forma como é tratada por Sen (2000, p. 23): “a privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social, da mesma forma, pode gerar a liberdade econômica”. O que implica em perda de acesso e do direito de escolhas, inclusive alimentares. Portanto, acredita-se que caso esse tipo de alimentação seja imposta, o projeto vai no sentido contrário ao proposto pela comissão de antropologia da alimentação citado acima, por Douglas e Khare (1979 apud GARCÍA, 2009). A imposição de um determinado alimento, ou o convencimento em adota-lo, pode também ocorrer de forma velada, utilizando-se campanhas com os grupos locais e, ou, através da mídia, como ocorre em relação a vários alimentos que passam a ser

consumidos, sobretudo, pelas crianças à partir de campanhas publictárias, muitas vezes, utilizando-se argumentos apelativos.

Certamente essa proposta recente poderá ter o debate ampliado nos próximos anos. O que nos interessa aqui é, sobretudo, chamar a atenção para a inserção de novas práticas alimentares na contemporaneidade. Práticas essas que se mesclam num processo de ampliação do multiculturalismo alimentar.

O próximo item trata da discussão sobre a percepção do alimento como característica cultural e ainda, sobre os reflexos do sistema alimentar contemporâneo na vida dos comedores.