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Como visto, a partir dos debates e conflitos entre os artistas e as regras criadas pelos governos na execução da política de fomento, não há autonomia no âmbito do fomento estatal e isso é claramente percebido pelo campo do teatro.

Além disso, não existe um mercado capaz de financiar o teatro no DF. O cenário da produção deixa claro que há uma dependência do financiamento público ou de outras formas de remuneração que não é a produção teatral, seja ela o emprego formal ou atividades correlatas como a publicidade, licenciatura artística etc. “O teatro em Brasília é um teatro feito na maioria das suas vezes nas horas vagas. Não temos em Brasília um teatro profissional. O que se diz teatro profissional em Brasília, não se vive disso”. (ATOR E, 2019)

As experiências vividas pelos atores, principalmente no período aqui pesquisado entre 2011 a 2018, foram, assim, produzindo um conhecimento sobre as regras do jogo burocrático que lhes permitiram atuar sobre ela e, também, produziram efeitos sobre suas próprias práticas (BOURDIEU, 1996, p. 43). Ou seja, foram sendo incorporadas ao seu habitus.

Na busca de tentar tatear os habitus dos atores do campo do teatro, as entrevistas foram conduzidas para uma investigação da origem econômica e cultural, da sua formação e trajetória. O que se percebe, a partir das entrevistas, é que os atores vão flutuando entre “o boêmio” dos que vivem “arte pela arte” e dos inseridos no “mercado da arte”. Não há uma posição fixa e consolidada. As necessidades de cada fase da vida, como constituir família e moradia própria, acabam por ir conduzindo os atores por caminhos e opções diferentes. Na verdade, os grupos transitam entre essas “opções” do fazer artístico.

Assim, embora seja possível descrever grupos a partir das suas relações com o mercado, dependência do Estado e dos tipos de capital acumulado, o movimento interno dentro do campo do teatro é mais fluido do que imobilizado. Essa fluidez decorre tanto dos momentos e demandas individuais quanto dos aspectos sociais. Além disso, os grupos de “arte pela arte” e o dos mais ligados ao mercado mantém uma relação de trocas e de produção em conjunto. Há relações de rede entre eles nas produções culturais. Os entrevistados citam uns aos outros como grupos de interação, trocas e produção artística. O campo não é uma estrutura imutável, sua dinâmica acompanha as transformações dos habitus dos atores e a sua “topologia” se altera com as interações resultantes das suas lutas internas, contribuindo para sua “conservação ou transformação” (BOURDIEU, 1996, p. 49).

A perspectiva de um habitus como “estrutura estruturante” totalizadora dos agentes, que “organiza as práticas e percepção das práticas”, e “estrutura estruturada”, que “organiza a percepção do mundo social e, por sua vez, o produto da incorporação da divisão de classes sociais”, são observadas com as opções feitas pelos entrevistados, cujas decisões de carreira

parecem mais conduzidas por um conjunto de situações sociais, mas, também, afetivas, constituídas a partir de novas relações pessoais. Decisões que se mobilizam em contextos e demandas próprias, onde momentos específicos da vida como constituir uma família, ter filhos, viver perto da praia, parecem definir opções variáveis. Mas sofrem forte impacto das transformações da posição do Estado pela relação de dependência dos recursos ofertados pelo fomento.

[...] o Estado tem a capacidade de regular o funcionamento dos diferentes campos, seja por meio de intervenções financeiras (como, no campo econômico, os auxílios públicos a investimentos ou, no campo cultural, os apoios a tal ou qual forma de ensino), seja através de intervenções jurídicas (como as diversas regulamentações do funcionamento de organizações ou do comportamento dos agentes individuais). (BOURDIEU, 1996, p. 51)

Cita-se, como exemplo, a vida de um dos entrevistados de família de capital econômico elevado, que teve sua trajetória teatral iniciada em Brasília, na UnB, e onde realizou diversos espetáculos, mas resolveu mudar para o exterior para fazer uma pós-graduação no início dos anos 1990. Sua decisão de mudança ocorreu pela baixa oferta de condições de realização profissional no Distrito Federal. Acabou permanecendo no exterior, criando uma companhia teatral e constituindo sua família. Quando a Europa entrou em crise e com o novo momento das políticas culturais no Brasil, com os editais do FAC em Brasília, retornou e se estabeleceu novamente na Capital. Em sua entrevista, declarou que vive em condições de produção muito parecidas com que tinha na Europa, contudo, “lá [...] trabalhava 30% fazendo projetos e 70% como artista. Aqui é o contrário”. Porém, o Brasil, especialmente Brasília, é um espaço para criação e consolidação de projetos, ao contrário da Europa, onde as estruturas são seculares e de difícil renovação (ATOR D, 2019).

O Ator E (2019) compartilha do mesmo sentimento quanto à exigência e trabalho gasto com processos burocráticos frente aos países europeus, ao afirmar que: “[...] viveria na Alemanha fazendo o que eu faço aqui de uma forma muito mais simples e fácil. Fazendo muito menos (burocracia) eu viveria muito bem.” (ATOR E, 2019). Contudo, o Ator D não deseja mais retornar para a Europa por uma opção afetiva e de identificação cultural, mesmo vivendo com maiores dificuldades financeiras.

O que se observa dos discursos é que o habitus desses atores mobilizadores do campo do teatro não segue um padrão que o seu capital econômico e social encaminharia para estruturar suas decisões sociais, estabelecendo as “classes sociais”. Não agem em defesa lógica

e racional no contínuo ato do acúmulo de mais capital. Suas posturas são mais híbridas e variáveis, em constante deslocamento.

Se nós representarmos o espaço social em todas as suas dimensões (econômicas, políticas, culturais, religiosas, sexuais, familiares, morais, esportivas etc.[…]) na forma de uma folha de papel ou de um pedaço de tecido […], então cada indivíduo é comparável a uma folha dobrada ou a um tecido amarrotado. [...] Essas dimensões [...] dobram-se sempre de maneira relativamente singular em cada ator individual, e o sociólogo, que se interessa pelos atores singulares, encontra em cada um deles o social amassado, amarrotado. Dito de outro modo, o ator individual é o produto de múltiplas operações de dobramentos (ou de interiorização) e se caracteriza, portanto, pela multiplicidade e pela complexidade dos processos sociais, das dimensões sociais, das lógicas sociais etc. que interiorizou. (LAHIRE, 2002, p. 198)

Os relatos dos entrevistados apontam para uma variação de perspectiva e busca de experiências que alternam sua posição no campo. Os grupos de comédia, por exemplo, realizam, também, trabalhos artísticos fora do padrão do mercado. Essas alterações de posição no campo decorrem, a maioria das vezes, segundo as entrevistas, justamente quando há interação na produção de novos conteúdos com outros grupos e na interação com o Estado, quando participam das reuniões do movimento cultural e com a SECULT para intervir na formulação dos editais.

Quando indivíduos interagem uns com os outros, ordens de interação emergem; quando ordens de interação são estabilizadas em padrões normativamente regulados de ação, instituições emergem; quando instituições são integradas entre si de modo suficientemente estável, formações sociais emergem; quando formações sociais são integradas em um único sistema, um sistema mundial emerge. (VANDENBERGH, 2013, p. 23)

Essa mobilidade ultrapassa o raciocínio da maximização benefícios e uma motivação da ação sempre calcada no interesse. Há uma significativa mobilidade dentro campo e uma busca por esse deslocamento tanto por questões pessoais quanto estéticas.

A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo deslocadas. (HALL, 2006, p. 12 – 13)

Pode-se inferir que a relação no campo e as interações com o campo burocrático alteram o habitus dos integrantes do campo do teatro. Também indica um forte grau de dependência do Estado mesmo para os grupos com maior penetração no mercado amplo.