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2. Contextos de produção da obra: Concílio de Trento como momento charneira

2.3. Espiritualidade na Época Moderna em Portugal

2.3.2. Hagiografias e crónicas religiosas: contributos para a historiografia portuguesa

O florescimento de hagiografias, biografias devotas e crónicas religiosas na Época Moderna constituíram, como até então pudemos verificar, verdadeiros paradigmas da religiosidade, particularmente, do século XVII. Já tivemos oportunidade de enumerar os factores que contribuíram para a progressiva valorização deste tipo de obras na socieda- de portuguesa; importa, agora, retermo-nos sobre o contributo que, em termos historio- gráficos, estes trabalhos vieram dar. De facto apesar destes textos estarem iminentemen- te associados ao maravilhoso, muitos autores esforçaram-se por imprimir na sua narrati- va características que os aproximaram dos textos historiográficos. Houve, em certos casos, a preocupação com a veracidade do discurso pelo que foram estabelecidos con- tactos com diversos intelectuais e procedeu-se à leitura, e mesmo posse, de livros quer nacionais quer estrangeiros como forma de colmatar as falhas de informação e funda- mentar as afirmações. A frequência destes autores em arquivos e bibliotecas foi uma constante pelo que, apesar da fama pouco lisonjeira que este tipo de obras têm, certo é que muitas revelam já traços que refletem as correntes historiográficas europeias. São exemplificativas desta preocupação obras como Agiológio Lusitano de Jorge Cardoso e a Crónica do Mosteiro de São Salvador de Grijó de D. Marcos da Cruz.

168 MENDES, Paula Almeida — «Vidas», «Histórias», «Crónicas», «Tratados»… p.177. 169 MENDES, Paula Almeida — «Vidas», «Histórias», «Crónicas», «Tratados»… p.180-181.

Jorge Cardoso foi capaz de criar uma onda de interesse e uma rede de contactos de tal forma bem estruturada que permitiu envolver todos no seu trabalho, pelo que foi recebendo informações de diversos tipos e proveniências com que sustentou ou enrique- ceu muitos dos seus relatos que catapultaram a obra, inicialmente hagiográfica, para um patamar historiográfico. Este trabalho foi particularmente importante pelo significou para o avanço da investigação histórica. Pouco a pouco viu chegar informações que ul- trapassavam em muito o domínio eclesiástico e ajudavam a formar o quadro da época em muitos dos seus domínios170.

Além da descrição da vida dos santos, interessou-lhe provar a origem portuguesa dos mesmos, daí que a narrativa hagiográfica seja complementada por informação de carácter historiográfico (biografias, toponímia, epigrafia, fundação e história dos mos- teiros, igrejas, ermidas, igrejas, referências cronológicas, informações sobre a história eclesiástica). A intenção do autor seria a de criar um trabalho com várias funções e uti- lidades que poderia servir diferentes públicos171. Este trabalho foi resultado de um es- forço colossal por parte de Jorge Cardoso que procurou através da sua investigação em livros, documentos e outras informações fundamentar a sua narrativa em torno dos san- tos portugueses e contribuir para recuperar e preservar a memória e a História religiosa do reino. Aliado à pesquisa destaque-se a erudição do autor que lhe permitiu resumir, discutir, corrigir ou corroborar as teses de outros, ou seja, deu-lhe uma atitude crítica. A referência que o autor faz às obras que consultou permitem-nos perceber o amplo leque de leituras que fez, as várias bibliotecas e arquivos onde esteve, percurso que foi acom- panhado pela formação da sua própria biblioteca que foi sendo preenchida quer por ma- nuscritos como por impressos muito utilizados no seu trabalho. A esta investigação mi- nuciosa acresce o facto de o autor contar com os contributos de eruditos, religiosos, clé- rigos e leigos que lhe permitiram a reunião de um acervo documental considerável172.

A sua biblioteca é composta naturalmente por obras de história eclesiástica e ha- giografias mas também por obras de genealogia e heráldica, de política, biografias, de

170 FERNANDES, Maria de Lurdes Correia — Agiologio Lusitano: estudo e índices… p.7-38. 171 FERNANDES, Maria de Lurdes Correia — Agiologio Lusitano: estudo e índices… p.7-38.

172 FERNANDES, Maria de Lurdes Correia — A biblioteca de Jorge Cardoso (+1669), autor do Agiológio Lusitano:

cultura, erudição e sentimento religioso no Portugal Moderno. Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Porto,

geografia, de filosofia, de teologia, de poesia, etc., a estas acrescente-se os impressos de diversas temáticas. A supremacia do espanhol e do latim nas obras que compõe a sua biblioteca é elucidativa da atividade cultural da época: "A superioridade da percentagem das obras em espanhol (…) confirmam nesta biblioteca a presença que tinham tanto no

Agiológio Lusitano como, em geral, na cultura portuguesa dos séculos XVI e XVII.

Muitas delas são, aliás, citadas por diversos cronistas e por autores de obras religiosas da época, o que confirma uma vez mais como muitos aspectos da cultura portuguesa até ao século XVII (e posterior) não poderão ser compreendidos e interpretados sem se ter em conta essa presença e influência"173.

Ainda que o texto hagiográfico contenha relatos de milagres e fenómenos do ma- ravilhoso atente-se no cuidado de Jorge Cardoso com o rigor da informação, fundamen- tando as suas afirmações e verificando a fiabilidade das suas fontes. Fez por isso uma criteriosa seleção e argumentou os seus textos ousando questionar autores prestigiados da época, detetando erros e incongruências que expôs. A publicação em meados do sé- culo XVII dos Acta Sanctorum (Tomo I) fomentada pelos Jesuítas foi responsável pela redefinição da hagiografia e com ela o descrédito dos textos hagiográficos anteriores174. Esta obra não foi exceção. Na lembrança ficaram as vidas pautadas pelo ascetismo e pelo maravilhoso (milagres, visões, corpos incorruptos, poderes taumatúrgicos das relí- quias, manifestações cultuais e devocionais). Esta obra é a prova de como a vida religio- sa se cruzou e andou a par da social, da política e dos interesses privados175.

D. Marcos da Cruz na sua crónica sobre o mosteiro de Grijó procurou seguir um caminho idêntico ao de Jorge Cardoso. A sua obra, no cômpito geral, não se rege por fenómenos do maravilhoso mas sim por acontecimento passíveis de serem comprovados através de documentos o que, por si só, já se afasta da maioria das crónicas religiosas da época. Através de um discurso claro e concreto que muito pouco fica a dever à efabula- ção, o autor foi apresentando sucessivamente documentos que corroboravam as suas teses. Muitas das tranches de texto foram, sem exagero, enumerações de documentação diversa que, segundo o autor, por si só, chegavam para dar a conhecer determinado

173 FERNANDES, Maria de Lurdes Correia — A biblioteca de Jorge Cardoso… p.18. 174 FERNANDES, Maria de Lurdes Correia — Agiologio Lusitano: estudo e índices… p.7-38. 175 FERNANDES, Maria de Lurdes Correia — Agiologio Lusitano: estudo e índices… p.7-38.

prior, principalmente no início da fundação do mosteiro. A acompanhar estas referên- cias sucintas lembre-se a transcrição de textos completos ou dos excertos dos documen- tos mais importantes para a história do mosteiro, dos quais a maioria foi retirada do fa- moso cartulário Baio Ferrado que hoje podemos consultar devido à publicação de Ro- bert Durand176. Muitas vezes o autor serviu-se de bibliografia e da pesquisa em arquivos e bibliotecas para confrontar teses ou mesmo para refutar ideias ou informações177. A pesquisa feita reflete o conhecimento e acessibilidade do mesmo quer a arquivos como a bibliotecas onde pode consultar diversas obras que ao longo do texto foi referindo no corpo principal ou em nota na margem. Efetivamente D. Marcos da Cruz procura atra- vés delas mostrar de onde retirou a ideia exposta quer para corroborar a sua ideia quer muitas vezes para confrontar com outras ou mesmo refutá-la. Certo é que este cuidado refletiu-se em mais de 1000 notas presentes na crónica do mosteiro de Grijó. Sobre isto desenvolveremos mais à frente aquando da análise da crónica.