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2. Contextos de produção da obra: Concílio de Trento como momento charneira

2.2. O Concílio de Trento e a sua aplicabilidade em Portugal

"In manu sua esse omnia" foi com estas palavras que o cardeal Giovanni Morone depositou no papa Pio IV no final do Concílio de Trento a confiança numa reforma efe- tiva e duradoura da Igreja116. O Concílio de Trento foi o acontecimento mais marcante no contexto do cristianismo europeu e representou uma das mais abrangentes reformas da Igreja. Dessa centralidade derivam as teses que defendem que a aliança entre econo- mia e religião teria determinado, inicialmente, uma cisão na Europa (Norte e Sul) que, posteriormente, teria sido transposta para os espaços colonizados. Este não é o momento para desenvolver esta questão pelo que nos vamos deter no essencial117.

Nascido como reação à instabilidade e descrédito em que tinha caído a Igreja Ca- tólica depois da Reforma Protestante impulsionada por Lutero — lembre-se a querela

114 DIAS, Sebastião da Silva — Correntes do Sentimento Religioso… Tomo I. p.134-135. Veja-se a argumentação do

cronista relativamente aos Jesuítas, fl.64v.

115 CARVALHO, José Adriano de Freitas — Antes de Lutero: A Igreja… p.94-102. 116 PAIVA, José Pedro — A recepção e aplicação do Concílio de Trento… p.14.

117 Veja-se as páginas 41 e 42 do artigo de Amélia Polónia para aprofundar esta questão: POLÓNIA, Amélia — A

das indulgências materializada nas teses publicadas em Vitemberga em 1517118 —, este

evento foi dividido em três sessões (1545-48; 1551-52; 1562-63) e nele procurou-se regularizar questões de âmbito teológico e doutrinal assim como de caráter pastoral, situação que precisava de uma renovação profunda tendo em conta a crise com que o clero secular e regular se deparavam119.

A substituir o Cardeal D. Henrique que se escusou de participar nas sessões conci- liares, Portugal enviou D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, D. Fr. João Soares e D. Fr. Gas- par do Casal respetivamente, arcebispo de Braga e bispos de Coimbra e Leiria. A estes juntaram-se alguns intelectuais e embaixadores que formavam a comitiva portuguesa. Enquanto em Roma se procedia aos debates conciliares, em Portugal o Cardeal D. Hen- rique mandava divulgar um documento interno — que efetivamente refletia alguns dos assuntos discutidos nas anteriores reuniões e antecipava, também, certas normas que, mais tarde, iriam fazer parte dos decretos tridentinos — dirigido aos prelados no sentido de disciplinar e regulamentar a ação pastoral nas dioceses do reino (Capítulos que per

ordenança do Cardeal D. Henrique foram dados aos prelados por mandado de D. João III): muitas das disposições nele impostas procuravam corrigir as situações, já sobeja-

mente conhecidas, de indisciplina e incumprimento das obrigações sacerdotais, doutri- nais, vocacionais e intelectuais de cada eclesiástico. Este conjunto de normas de com- portamento, teorizadas neste documento, foi complementado com a criação de colégios para a formação de clérigos pobres, instituições que progressivamente foram adquirindo o estatuto de "verdadeiros centros de formação do clero (…)"120. Para assegurar o suces-

so da aplicação destas medidas, as dioceses deveriam ser alvo de visitas121.

Esta resolução, que teve como responsáveis o rei D. João III e o Cardeal D. Hen- rique, não foi bem recebida nem em Roma, uma vez que não teria sido aprovada pelo Sumo Pontífice então Júlio III; nem no reino quer pelo núncio, que a entendeu como um abuso de poder, quer pelos bispos que se recusavam a aceitar o documento que diziam não ter validade como 'documento normativo' uma vez que foi emitido antes da aprova- ção final dos decretos tridentinos pelo papa e pior, divulgava, sem autorização, assuntos

118 PAIVA, José Pedro — A recepção e aplicação do Concílio de Trento… p.15. 119 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.43.

120 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.46. 121 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.44-46.

discutidos nas sessões. Apesar de todas as contrariedades do projeto note-se, porém, o efetivo interesse e a concórdia do rei e do cardeal portugueses com as resoluções de Trento. Interesse que tem, naturalmente, motivações religiosas mas, também, políticas: convinha demonstrar ao papa; a competência de D. Henrique para desempenhar o cargo de legado a latere que lhe permitia interferir na situação religiosa e política do reino e, ao mesmo tempo, alargava a possibilidade do rei intervir na vida religiosa do país. De facto, Portugal destaca-se neste processo quer pelo envolvimento efetivo de figuras da vida política portuguesa num acontecimento eminentemente religioso, o que denota a confluência entre interesses políticos e religiosos; quer pela prematuridade da implanta- ção das diretrizes tridentinas no reino, o que levou a autora a suspeitar da existência "de um processo de reforma religiosa já em curso antes e durante a realização do concí- lio"122: as normativas tridentinas foram integradas nas leis portuguesas pela bula Bene-

dictus Deus outorgada pelo papa Pio V a 26 de Janeiro de 1564, enquanto o Cardeal D.

Henrique era regente do reino por causa da menoridade de D. Sebastião123.

A reforma empreendida no clero regular mereceu também muita atenção por parte dos monarcas do reino. Contudo, como já mencionado, só com D. João III, auxiliado pelos seus irmãos, é que este projeto reformador deu, finalmente, frutos. Mais uma vez, foi essencial a colaboração entre os poderes políticos (D. João III, D. Afonso, D. Henri- que, D. Luís) e religiosos, nomeadamente, as ordens religiosas recentemente chegadas a Portugal como os Jesuítas e os Capuchos. Ao analisarmos a ação de D. João III (associ- ação dos irmãos à ação reformadora; criação da Mesa da Consciência e das Ordens; reconstituição do mapa de dioceses; etc.) rapidamente percebemos que a reforma da Igreja era parte, fundamental, do plano político do rei (centralização do poder do rei através da reforma religiosa), sendo o seu irmão D. Henrique a peça central de todo este processo uma vez que servia de ligação entre o mundo político e o religioso. A ele, D. João III queria associar os cargos que mais diretamente estivessem envolvidos neste projeto ('inquisidor'; legado a latere; visitador; etc.). Não se deve, de todo, descurar, as intervenções de D. Afonso nos principais mosteiros das antigas ordens religiosas insta- ladas em Portugal como os Cistercienses (Alcobaça) e os Cónegos Regrantes de Santo

122 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.48. 123 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.46-48.

Agostinho (Santa Cruz de Coimbra). De facto, é notório o claro apoio e, consequente, aproveitamento estratégico do rei das carreiras eclesiásticas dos irmãos, quer de D. Hen- rique quer de D. Afonso, no sentido de construir uma política de centralização régia. O monarca rapidamente percebeu que dominando alguns dos núcleos eclesiásticos mais importantes — como o Tribunal do Santo Ofício, o cargo de núncio no reino e ser re- presentante na cúria romana — conseguia concentrar e dominar vários poderes124.

A presumível facilidade na adesão às normativas tridentinas não podem ser vistas apenas como fruto de uma vontade política. A preparação prévia de um contexto religi- oso e devocional na linha das regras tridentinas (atente-se nas Constituições Diocesanas consecutivamente publicadas desde 1505 a 1564) ajuda a explicar a "recepção célere e relativamente pacífica"125 das mesmas no reino. A isto, acrescente-se a ação fundamen- tal de personalidades de topo da vida religiosa portuguesa — como Fr. Luís de Granada, com forte ligação a D. Henrique, ou D. Fr. Bartolomeu dos Mártires — e do papel das novas ordens religiosas, particularmente da Companhia de Jesus, que mereceu o favor do infante D. Luís aquando da sua chegada a Portugal, do qual resulta a confiança por parte do Cardeal D. Henrique a muitos dos seus membros que monopolizaram o ensino em Portugal e desempenharam dos cargos mais importantes na Sé de Évora, da qual diocese era prelado o cardeal. Esta cooperação foi, de facto, essencial para a anteriori- dade da aplicação de muitas das medidas emanadas de Trento e, também, para a aceita- ção ou adaptação das mesmas à realidade portuguesa. A este panorama acresce o facto de, em Portugal, não se ter difundido e implantado firmemente as correntes culturais que, pela mesma época, se espalhavam pela Europa cristã como o Humanismo, que no reinado de D. João III conheceu um entrave significativo, e o próprio Erasmismo, que enquanto linha intelectual não conheceu no nosso reino uma adesão firme e constante, sendo que Damião de Góis foi o seu verdadeiro representante. O Tribunal do Santo Ofí- cio implantado em Portugal desde 1536 funcionou, pelo seu papel controlador e de cen- sura, como um entrave à entrada de novas correntes de pensamento e, com elas, os li- vros (recorde-se o famoso Index librorum prohibitorum, 1564), sobretudo aquelas que

124 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.49-51. 125 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.51.

atentassem contra a Igreja126. "Erasmo de Roterdão e Lefèvre d' Etaples são dois dos

autores cujas obras mais profundamente foram afetadas pela censura inquisitorial"127. Embora a aceitação dos termos conciliares tenha sido relativamente pacífica, quando falamos da sua aplicação prática o cenário muda, basta a referência às 20 Cons- tituições Diocesanas publicadas entre 1564 e 1620128. Ao analisarmos esta faceta de Trento, tenhamos em conta a especificidade de cada diocese nomeadamente do quadro religioso e cultural local ao tempo129. A dificultar a situação, teremos ainda de incluir o monopólio régio, desde D. Manuel I, sobre a escolha episcopal e a falta de apoio central daqueles prelados que procuravam impor as disposições tridentinas, nomeadamente o arcebispo de Évora D. Teotónio de Bragança que durante o seu episcopado procurou fazer chegar ao papa essas dificuldades. Dificuldades essas que passaram vários papas até Clemente VIII. Estas situações parecem contrariar as teses, nomeadamente de Se- bastião da Silva Dias, de que os decretos de Trento tinham sido pacificamente aceites e aplicados em Portugal, beneficiando do apoio régio130.

Nos decretos emanados de Trento, entre as diversas exigências de cumprimento de deveres pastorais e litúrgicos acresce a tentativa de domesticar os gostos, ou seja, procede-se a um controlo ideológico e estético através da limitação na arte, particular- mente, no que à iconografia religiosa diz respeito. Com Trento, a Igreja apercebe-se do poder que as imagens têm no seio de uma sociedade maioritariamente analfabeta e ser- ve-se delas converter e ensinar o povo. Daí que as disposições tridentinas defendam que a representação do sagrado deve ser feita para fins devocionais e de veneração dos san- tos, de Jesus Cristo e da Virgem, cultos muito difundidos no período pós-tridentino. A socialização da imagem torna-se por demais evidente e, por isso, a Igreja passa a contro- lar a sua representação de forma a preservar o decoro e respeito pelo sagrado, numa clara intencionalidade de separar o sagrado do profano131.

126 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.51-55. 127 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.55. 128 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.56.

129 PAIVA, José Pedro — A recepção e aplicação do Concílio de Trento… p.22-23. José Pedro Paiva refere no seu

trabalho uma série de exemplos que representaram falhas da aplicação e respeito pelos decretos tridentinos nas dioce- ses portuguesas que estavam expostas no relatório do coletor apostólico Roberto Fontana de 1578/79 (PAIVA, José Pedro — A recepção e aplicação do Concílio de Trento… p. 22-23).

130 PAIVA, José Pedro — A recepção e aplicação do Concílio de Trento… p.23-24. 131 POLÓNIA, Amélia — A recepção do Concílio de Trento… p.56-58.

O papado serviu-se da extensa rede eclesiástica composta por núncios, bispos e ordens religiosas para difundir os decretos e controlar a massa de fiéis. Interessava ao poder central religioso limitar o acesso direto da população às Escrituras ao mesmo tempo que preconizava uma maior formação doutrinal e catequética e acompanhamento pastoral assim como a vigilância da vida e dos costumes, cujos instrumentos práticos foram os róis de confessados e os registos paroquiais132. A intervenção da religião sobre a vida quotidiana dos crentes tornou-se por demais evidente, tendo como consequência o domínio pastoral, cultural e das próprias mentalidades ao interiorizar nas populações preceitos tridentinos que moldaram o comportamento social e individual como os temas da sexualidade extraconjugal ou dos pecados públicos133. Houve por parte da Igreja um incentivo ao culto dos santos, relíquias e devoções de que as crónicas religiosas são ex- celentes exemplos 134.