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Capítulo 1 Honra: Entre a Ordem e Revolta

2. Hans Speier

O próximo sociólogo a estudar o funcionamento de uma sociedade pelo viés da honra foi Hans Speier. Leitor Weber, esse sociólogo alemão manteve que o sistema da honra é uma ferramenta política usada no planejamento social, um meio pelo qual o poder soberano pode definir ou desconstruir valores (ou o “estilo de vida” weberiano) mantidos por um coletivo, tendo sempre em vista a conquista de objetivos específicos. Há dois desvios em relação a Weber: 1) a honra não deriva exclusivamente do estamento ao qual se pertence, mas sim do poder soberano de uma sociedade (rei, Estado, Deus etc.; cf. 1935, p. 74); e 2) a honra operaria tanto em um nível “pessoal” quanto em um “social” (1935, p. 85-88). Tratemos de cada um dos pontos separadamente.

Em relação ao primeiro ponto, vale notar que Speier mantém a honra como uma substância que define o status do indivíduo e, portanto, a qual estamento ele pertence – inclusive é exatamente essa qualidade, a perspectiva de acesso a um grupo de status superior, que a permite ser usada como incentivo por parte de seu concessor (1937, p. 479-482; 1938, p. 195- 198). O mais interessante, entretanto, é a tentativa de Speier (1935, p. 75-76) de delinear os processos pelos quais a honra é obtida. Seu esquema começa com a concessão: uma ação ou qualidade considerada boa é reconhecida pelo poder soberano e premiada com honra, contanto que o recebedor aceite servir como exemplo de conduta para os demais indivíduos a ele submetidos. A segunda etapa é o porte dessa honra, isso é, a aceitação dessa honra por parte do recebedor – etapa necessária, uma vez que um indivíduo não é obrigado a se reconhecer como merecedor de determinada honraria. A terceira e última etapa é o respeito da honraria pelo coletivo submetido ao poder soberano, momento em que ela passa a ter algum impacto social – caso contrário, seu efeito será limitado apenas à relação entre os concessor e recebedor.

A construção speieriana do sistema da honra (essa ainda como substância que define

status comparativamente) nos é útil por tolher a passividade da sociedade na qual ela age.

Entretanto, a questão do monopólio do poder soberano de distribuir honra e de definir que tipo de ação é honrável limita, em muito, a aplicação de seu processo a diferentes sociedades. Speier constrói um quadro onde o status pode diferir no nível do indivíduo, mas o submete a um único padrão avaliativo (o definido pelo poder soberano), de modo que os estamentos e seus modelos de comportamento são anulados. Nesse contexto, um rei pode honrar um plebeu a ponto de

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colocá-lo (sem oposições) no mesmo status que um nobre, por mais que ele não siga o “estilo de vida” que caracteriza a nobreza. Tal problema pode ser atribuído ao contexto no qual Speier compôs a maior parte de suas obras, contexto esse cuja compreensão nos será útil em outros termos além do sistema da honra.

Exilado nos Estados Unidos da América desde 1933, quando a Alemanha do Partido Nacional Socialista lhe forçara a deixar o país junto com suas opiniões liberais (BESSNER, 2013, p. 4-7), Speier vê na honra uma ferramenta para entender as diferenças entre os regimes envolvidos na Segunda Guerra Mundial. Para Speier, sistemas capitalistas, liberais e democráticos como o americano eram mais propensos à liberdade e ao progresso, pois eles exercem controle sobre a sociedade através da riqueza. Em outras palavras, eles estratificam a sociedade através do sucesso individual, esse medido “objetivamente” por sua riqueza material (1934a, p. 128). Em contrapartida, regimes como o soviético e o alemão realizavam o mesmo de um modo menos “racional”, fiando-se em valores “pré-capitalistas, pré-liberais e militares” como a honra (1937, p. 482). Dessa forma, nos Estados onde vários elementos compunham o

status do indivíduo, o planejamento social ali praticado envolvia a ação de moldar os valores

coletivos em direção às necessidades momentâneas, o que minava tanto a liberdade quanto a expectativa de progresso daquele coletivo.13 Portanto, ao tentar criar uma apologia à liberdade e à democracia (ver BESSNER, 2013, p. 104-116), Speier criou dois polos opostos: um deles (EUA) conjugava apenas à vontade individual o acesso a grupos de status superiores, isso graças à equalização da honra ao dinheiro; o outro (URSS e Alemanha Nazista) não só privava os indivíduos da liberdade de escolher o estamento ao qual pertenceriam, mas também os controlava por meio de valores como a honra. Sabendo disso, é possível que tanto o “poder soberano” ao qual Speier se referia quanto o teor “irracional” da honra tenham sido desenvolvidos para basear seu discurso político.

Apesar desses problemas, as considerações de Speier sobre o as sociedades estamentais colocaram as bases de algumas considerações importantes sobre a honra. Podemos citar três delas: 1) a noção de que a honra serve como conector de indivíduos e grupos, principalmente por mover todos na direção de um código de comportamento comum; 2) que a honra consiste de um complexo com existência espacial e temporal, isso é, com configurações diferentes em sociedades diferentes; e, principalmente, 3) que a honra serve para estabelecer

13 Aqui é possível identificar duas posições weberianas: 1) de que a estratificação social pelos grupos de status

gerava um impedimento ao livre mercado e 2) de que se a honra estamental pudesse ser obtida economicamente e não exclusivamente do “estilo de vida”, os estamentos desapareceriam (WEBER, 1982, p. 224-225).

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valor axiologicamente e, assim, criar modelos com o objetivo de normalizar o comportamento (OPRISKO, 2012, p. 12).

Por fim, tratemos da segunda contribuição de Speier, de que há dois tipos de honra, uma “pessoal” e uma “social”.14 Essa última consiste no tipo de honra descrita acima, a

conseguida por meio das avaliações da conduta do indivíduo. A primeira, entretanto, não requer tais avaliações. Speier assume que qualquer indivíduo estaria submetido a diversos códigos de honra (inclusive alguns contrários ao advogado pelo poder soberano), esses que acabavam se sobrepondo. Assim, um indivíduo poderia adequar sua conduta de modo a respeitar todos os requerimentos de um único código de honra (de ladrões, por exemplo), mas não ser honrado (socialmente) pelo poder soberano por conta disso – ou ser até mesmo desonrado por isso. Ainda assim, ele manteria sua “dignidade” (honra pessoal), isso é, uma opinião positiva a respeito de seu próprio comportamento que não é alterada pela opinião alheia. Isso dá espaço para que indivíduo não seja encarado como um ser totalmente passivo, que adere automaticamente aos códigos de honra e às avaliações que lhe são transmitidas.