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HEGEL E O NASCIMENTO DA ESTÉTICA

3. HEGEL E A PROBLEMÁTICA DA ESTÉTICA

3.1 HEGEL E O NASCIMENTO DA ESTÉTICA

O movimento dialético da afirmação da arte enquanto produção do Espírito poderia indicar a dinâmica da sua progressiva emancipação, enquanto fenômeno que se realiza na história e se afirma como disciplina filosófica da arte no século XVIII, em sua singularidade de conduzir à dimensão mais sublime a que se pode chegar na esfera sensível, o saber e a consciência da liberdade. Essa emancipação da estética não se restringe à problemática proposta por Hegel enquanto a filosofia da bela arte, mas engloba a totalidade da discussão da arte livre que se afirma em sua autonomia ao longo da história. Assim, os Cursos de Estética situam-se como o ápice dessa dinâmica da progressiva emancipação da arte.

A fundação da estética como disciplina autônoma e, portanto, livre, constitui um acontecimento de um alcance considerável (JIMENEZ, 1999, p. 31). Este acontecimento não se restringe ao acréscimo de um novo ramo à árvore da ciência, criado para reunir e designar um saber até então difuso. Antes, trata-se de um novo modo de contemplar a arte, os artistas e as obras. A reflexão específica e autônoma da criação artística, que resultou de um longo percurso de descobertas e transformações no modo de pensar do Ocidente, a fim de emancipar o homem das tutelas teológica, metafísica, moral e social rumo à emancipação, poderia indicar a alma moderna da estética. Ao partir desse pressuposto histórico que fundamenta e lança as bases para o surgimento da reflexão filosófica da estética moderna, pretendemos situar as condições necessárias à fundação da filosofia da arte conforme se desenvolve em Hegel.

A palavra arte, originada na língua latina com o termo ars, a partir do século XI, era designada como um conjunto de atividades e habilidades vinculadas à técnica e ao ofício, atividades genuinamente manuais. Assim, a concepção moderna de arte enquanto objeto de reflexão da estética só é desvelada a partir do século XVIII18, no momento em

18 Com Baumgarten (1993, p. 97) pretenso fundador da estética, surge no século XVIII a discussão da

estética como disciplina filosófica e a compreensão de que nela estaria a perfeição do conhecimento sensitivo: a beleza. Isso porque existem duas faculdades na alma que a possibilitam conhecer: a clara e distinta, que corresponde a metafísica, e a obscura e confusa, que diz respeito ao conhecimento sensitivo. A estética, segundo o autor, pertence ao domínio da faculdade inferior, porque é um discurso sobre o que

que a arte passa a ser reconhecida e se reconhece mediante seu conceito, tornando-se uma atividade intelectual (JIMENEZ, 1999, p. 32). Daí resulta a importância da reconstrução teórica dos momentos históricos do desenvolvimento da percepção da arte enquanto subjetividade19 que se torna manifesta nas nuances que assume em suas formas fenomenais, já que:

As periodizações, as fronteiras precisas e as cronologias exatas são artifícios históricos a que se recorre para explicar transformações que se prolongam no tempo, deixando meros vestígios [...] que, estratificando-se uns sobre os outros, formam um percurso ao longo do qual podemos dispor alguns marcos de orientação (FRANZINE, 1999, p. 13).

Acompanhemos algumas etapas necessárias à emancipação da arte, pois as múltiplas nuances no modo de concebê-la, resultam de uma trajetória histórica que reflete as mudanças ocorridas após a Idade Média que permitem a progressiva libertação do artista das tutelas a que estava submetido. Na Idade Média era corrente a concepção da impossibilidade de se atribuir ao homem um poder criador, mesmo que fosse de criação artística, pois criar era um privilégio unicamente divino. Não havia lugar para a ideia de criação artística, porque mesmo ao produzir uma obra, o artista nela apenas estaria refletindo o poder de Deus que o criou.

No século XIV já é possível notar indícios germinais do que viria a se constituir posteriormente com a arte autônoma. Os artistas vão paulatinamente atentando para a consciência do seu poder criador para a sua força criativa, tanto que alguns passaram a rubricar seus auto-retratos. Esse fato implica o deslocamento da obra à personalidade do autor que não se esquiva de expor-se tomando-se como objeto.

aparece como confuso e obscuro, ressaltando que a confusão sugere a ordenação do conhecimento sobre o belo. Assim, por ocupar-se do conhecimento sensitivo apenas na figura da beleza, ela pode educar a percepção sensível para o conhecimento superior, sendo compreendida enquanto lugar intermediário entre a matéria (sensível) e a forma (inteligível), rumo ao conhecimento claro e distinto. Desse modo, “a Estética como teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte de pensar de modo belo, como arte do análogon da razão é a ciência do conhecimento sensitivo” (BAUMGARTEN, 1993, p. 95).

19 A subjetividade é para Hegel o princípio dos novos tempos que se caracteriza pela liberdade da reflexão,

pois “a grandeza do nosso tempo é o reconhecimento da liberdade, a propriedade do espírito pela qual este está em si consigo mesmo” (HABERMAS, 2000, p. 25).

Nesse sentido, a ideia da criação como atributo unicamente divino dá lugar à nova concepção de que ela também dependeria da ação humana que a concretiza em suas obras. E, assim, no século XV, o conceito de criação artística passa a ser pensado e aceito através da produção de obras. Emerge, na Renascença, o reconhecimento social do artista antes considerado unicamente como artesão que dominava uma técnica, agora passando a ser reconhecido como “artista humanista, dotado de um verdadeiro saber e não mais somente de perícia, depois como artista que negociava as próprias obras no mercado” (FRANZINE, 1999, p. 33). Surge, assim, a compreensão da produção artística como atividade intelectual que se utiliza das faculdades e aptidões do artista, o que significa dizer que, através da consciência da complementação entre razão e sensibilidade, progressivamente, vai sendo constituída a idéia de um sujeito autônomo.

Na Renascença, abre-se espaço para o questionamento do próprio pensamento, através de uma possível correspondência entre o conteúdo da arte e o do pensamento conceitual (CASSIRER, 1992, p. 368). Segundo Fullerton, podemos entender a Renascença como renascimento segundo a seguinte explicação: “o que estava renascendo na Europa, no começo do século XIV, era o interesse e o respeito pelo passado clássico” (2002, p. 26). Despontam as ideias de criação autônoma através do gênio criador do artista, instaurando uma ruptura com o pensamento medieval. Nesse momento, o artista passava a receber uma determinada quantia pela sua produção, trabalhando para um empregador que estabelecia critérios que definiam o que deveria ser pintado, o prazo a entregar a obra e os materiais a serem utilizados.

E, já em meados de 1530, o preço das obras aumentava conforme o renome e o talento e não mais, apenas, em vista dos materiais utilizados em sua elaboração. O artista vai conquistando o reconhecimento de autor e proprietário do seu talento, destacando-se em sua notoriedade. Tanto que alguns são convidados a morar nos palácios reais, além de receberem títulos de nobreza.

Contudo, neste período, a autonomia da arte ainda não pôde ser afirmada, pois o objeto artístico ainda encontrava-se atrelado a finalidades simbólicas ou utilitárias, tais como: ornar, embelezar, decorar igrejas, palácios, ou celebrar a glória de Deus. O princípio estético dominante era a imitação da obra divina na natureza e no homem, pois “render

homenagem a Deus, imitando sua obra, a natureza ou o homem, permite aceder à beleza” (FRANZINE, 1999, p. 45). Decorrerão ainda dois séculos para a instauração da estética como disciplina filosófica.

Por conseguinte, no século XVI, busca-se saber que forças impelem o artista na produção de suas obras, se a razão ou a emoção, já que se trata da percepção da arte e de sua produção. Surge neste período uma preocupação teórica na definição da arte, a partir da “exigência mediadora de um contexto cultural no qual se procura colocar o mundo da contingência no plano da razão” (FRANZINE, 1999, p. 16). Cabe afirmar a arte não apenas em sua dimensão sensitiva que diz respeito ao sentimento por ela suscitado, mas também afirmá-la como possibilidade de conferir ordem e unidade ao que aparece como múltiplo e disforme. É a ascensão de uma concepção racional para a arte.

Seria preciso ainda que a razão e a sensibilidade não fossem mais tidas como dimensões contrastantes e conflitantes, o que se manifestará ainda timidamente no século XVII. Conviria acrescentar que este século está perante a busca do sensato, da moderação, do verossímil, da busca do gosto, e do cálculo da razão. Assim, somente na metade do século “surge a suspeita de que a razão não é una, absoluta, e de que não constitui a única fonte de conhecimento” (FRANZINE, 1999, p. 58). É precisamente neste momento que desponta uma abertura para a sensualidade, quando a beleza passa a ser objeto de investigação.

Apesar de algumas mudanças nos temas de investigação filosófica não há ainda o aparecimento claro e consciente da reflexão científica da arte, enquanto disciplina filosófica. O que se pode notar neste período são as bases da discussão estética, a atenção voltada ao sensível e a vontade de racionalizar e reconduzir tudo aos ditames da razão.

Concatenada a esta discussão, vale lembrar que o pensamento de alguns empiristas também contribuiu para a elaboração de um estatuto teórico e filosófico ao outro da razão: a natureza, os sentimentos e a experiência. Desenha-se o debate entre antigos e modernos20 no que toca ao desenvolvimento da reflexão estética devido às novas

20 De acordo com Jimenez poderíamos entender o debate entre antigos e modernos a partir da perspectiva

segundo a qual eles teriam um ponto de concordância: “a chamada razão estética ou poética. Ela poderia ser um elo intermediário entre a razão e a imaginação, entre o entendimento e a sensibilidade. E finalmente, é o indivíduo, o sujeito que realizaria de alguma maneira a harmonia entre as faculdades, de

divisões do saber, através do espírito de mediação e de equilíbrio entre as dimensões contrastantes. Desta feita, surge:

Uma rica variedade de fenômenos diversos, teorias e ideias que, estando presentes há séculos [...] vêm a revelar, de um modo geral, uma amplitude [...] sem precedentes, no âmbito de um quadro onde se cruzam complexidade e confusão (FRANZINE, 1999, p. 37).

No século XVIII é que a arte passa a ser vista não apenas como imitação da natureza, posto que na arte os aspectos contraditórios e até antagônicos da atividade humana, se enlaçam de modo privilegiado, como atividade intelectual e material. A criação artística também é dotada de racionalidade, pois “criar uma obra de arte significa realizar um ato ao mesmo tempo abstrato e concreto” (FRANZINE, 1999, p. 36). O que implica dizer que este ato de produzir algo, que não se submete ao uso e que não se perde na dimensão utilitária, envolve a habilidade do artista e a matéria de que se constitui, mas também as faculdades racionais daquele que a produz. Assim, a “produção de obras de arte implica a utilização de mecanismos psíquicos e mentais, portanto a dimensão racional para a invenção de algo que se oferece à percepção” (JIMENEZ, 1999, p. 36).

Dessa maneira, na arte evidencia-se o poder demiúrgico do artista mediante a capacidade de criar objetos que não se reduzem pura e simplesmente a imitação da natureza. Objetos esses que refletem todo o saber adquirido no decorrer da história, de modo a manifestar este conteúdo na forma concreta, já que na experiência estética, a racionalidade se une à experiência sensitiva. Esta é a tendência mediadora que caracteriza o século XVIII.

O húmus, a essência ou o espírito fundador desse século seria a reflexão sobre temas estético-artísticos, com o foco nos problemas relativos ao sentimento e a sensibilidade (FRANZINE, 1999, p. 17). Isto porque a teoria estética insere a sensibilidade no contexto de uma teoria gnoseológica, pois o século XVIII institui a racionalização da

um lado, porque é o autor da experiência estética e, de outro lado, porque cabe a ele [...] pronunciar-se sobre o que sente: cabe a ele emitir um julgamento de gosto. Esta maneira de expor o problema já anuncia as soluções que serão propostas por Baumgarten” (JIMENEZ, 1999, p. 73-74).

beleza através da possibilidade de atribuir um plano de saber para a arte. Desta forma, a razão esclarecida, sob a influência do pensamento cartesiano, representa um dos momentos imprescindíveis para a constituição da estética moderna. Pois temas como progresso, unidade na variedade, concepção dinâmica da natureza e fantasia, característicos da filosofia iluminista, são encontrados no momento inaugural da estética, perante a possibilidade de unificar o múltiplo mediante a racionalização do saber.

Além do mais, com o racionalismo foi possível indagar se a beleza obedeceria a regras exatas ou se seria mais vinculada ao sentimento. Questão crucial para a definição do campo de especulação estética (JIMENEZ, 1999, p. 52). A busca de um fundamento universal, de verdades absolutas almejada pela certeza do cogito: penso, logo existo21

, foi

decisiva para a reflexão científica da arte, tendo em vista que a afirmação do sujeito como dono e criador de suas representações artísticas foi fundamental para o nascimento da estética (JIMENEZ, 1999, p. 56).

Elencamos as novidades dos conceitos cartesianos afim de destacar que o devir entre razão e emoção marca o surgimento da estética setecentista na sua orientação para a espiritualização do prazer. Especialmente no que concerne ao status do sujeito pensante, o cogito que coloca o sujeito no centro do racionalismo, afirmando-se autônomo através da dúvida e da certeza que lhe advêm do seu próprio pensamento.

Sublinhe-se, além disso, que os postulados fundamentais aqui elencados, seguindo um percurso histórico, no que toca ao desenvolvimento da estética enquanto disciplina e reflexão filosófica autônoma, nos serviu como norte que conduziu à argumentação para o século XVIII, momento da fundação da estética. Nisto salientou-se que esse acontecimento remete às épocas precedentes, as quais lançaram as raízes para a sua afirmação enquanto tal. Precisamente nesta dinâmica das mudanças ocorridas ao longo da história que no final do século XVII e início do século XVIII, manifesta-se uma profunda transformação no modo de conceber a arte. Ocorre o reconhecimento da experiência e das sensações na

18 Conforme a explicação de Cottingham, o Cogito ergo sum: penso, logo existo é talvez a frase mais famosa da história da filosofia, “ela aparece primeiro em francês – jê pense donc jê suis – na Parte IV do Discurso (1637): Notei que, enquanto tentava pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, era algo. E observando que essa verdade continha em si tamanha certeza e firmeza que resistia incólume às mais extravagantes suposições dos céticos, julguei que poderia aceitá-la, sem escrúpulos, como o primeiro princípio da filosofia que procurava” (COTTINGHAM, 1995, p. 37).

reflexão estética, promovendo o surgimento de uma nova mentalidade que desloca o foco de investigação do objeto para o sujeito pensante. Dessa forma, o nascimento da estética22 é setecentista, pela definição de seu nome e pelos horizontes teóricos.

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