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A herança de Euclides e de Galileu

Do ponto de vista histórico, a ciência tradicional já começara a encontrar contraposições nos fins da Renascença. E, na modernidade, seus oponentes se aliam com mais força, defendendo a necessidade do conhecimento das realidades naturais e de uma outra cosmologia. No caso de Hobbes, iniciando o caminho inverso ao da cultura humanista, opõe-se ao seu caráter retórico e sai em busca de uma nova filosofia, procurando constituir um método pelo qual pudesse desenvolver um pensar pautado no modelo da ciência e no encadeamento claro e rigoroso das idéias. Ele crê que, pela via da dedução e das abstrações geométricas, será possível iniciar uma nova investigação acerca da natureza. Nesse sentido, a filosofia hobbesiana é, sem dúvida, devedora a Euclides e a Galileu.

Ao se deparar com os Elementos de Euclides por volta de 1630, Hobbes seduz-se pelo método ali apresentado em função das sínteses bem elaboradas,

estilo geométrico, modelo lógico e rigor das demonstrações. E é esse matemático grego que abre para Hobbes o caminho e interesse pelas ciências. Euclides reúne nos 13 livros dos Elementos estudos feitos por Tales, Pitágoras, Eudóxo, Zenão, Demócrito, entre outros grandes matemáticos gregos, e sintetiza o que viria a ser, até o início da modernidade, as linhas mestras da geometria, aritmética e álgebra. O encontro de Hobbes com esse estudioso representa o momento inicial e decisivo de sua adesão ao espírito matemático e está marcado pela produção do Short Tract on First Principles de 1630-31.

Adotando metodologia dos Elementos, Hobbes inicia o Short Tract por definições e segue, apresentando e justificando uma conclusão para cada enunciado. O método euclidiano tem de fato grande importância, pois representa uma clara possibilidade do rompimento com uma tradição que compreende o real como algo mágico e vê a natureza como uma instância intocável. Jean Bernhardt também identifica a proximidade do pensamento do filósofo inglês em relação a Euclides e lembra no Essai de Commentaire, feito logo em seguida a sua tradução do Short Tract, que, para Hobbes, “o olhar euclidiano não é de pura contemplação, ele controla uma manipulação, uma construção, lugar onde se manifesta a atividade de um sujeito” numa “adesão transparente à progressão irrefutável dos teoremas.”19

(BERNHARDT,1988, p. 84, tradução nossa).

O método utilizado no Short Tract apresenta uma exposição enumerada de princípios, dos quais são retiradas diversas conclusões. Inicia-se com uma lista de definições, postulados e axiomas, provando uma proposição após outra e baseando- as nos resultados precedentes até alcançar o nível das proposições rigorosamente demonstradas. Acompanhando esse método, Hobbes quer retirar da filosofia as pretensões herméticas que a tradição havia lhe imposto. O método, mais do que o conteúdo dos teoremas, é o que chama sua atenção na obra do matemático grego, na medida em que obedece a um desenvolvimento formal que passa do enunciado às demonstrações e, destas, à conclusão. Pelos procedimentos do método são separados os dados da investigação, apresentadas as inferências e proposto um raciocínio científico a partir das proposições já admitidas e embasadas no cálculo

19 “[...] le regard euclidien n’est pas de pure contemplation, il contrôle une manipulation, une construction, où se manisfeste l’activité d’un sujet. [...] d’une adhésion transparente à la progression inéluctable des théorèmes.” (BERNHARDT, 1988, p. 84).

das palavras. Apenas depois de traçado este caminho, é possível estabelecer uma conclusão legitimamente aceitável.

Lembremos com Hobbes que o cálculo está por trás do conhecimento metodológico e científico. Aritméticos, geômetras, lógicos e escritores de política podem lançar mão do cômputo e mostrar que é possível calcular não somente com números, mas com tudo aquilo passível de adição e subtração. Afinal, onde há lugar para cálculo, há lugar para a razão.

Quando alguém raciocina, diz Hobbes, nada mais faz do que conceber uma soma total pela adição de parcelas, ou conceber um resto pela subtração de uma soma por outra; o que (se for feito com palavras) é conceber a conseqüência partindo dos nomes de todas as partes para o nome do todo, ou partindo dos nomes do todo e de uma parte para o nome da outra parte. [...] Estas operações não são características apenas dos números, mas também de toda a espécie de coisas que podem ser somadas e tiradas uma das outras. Pois, se os aritméticos ensinam a adicionar e a subtrair com números, os geômetras ensinam a fazer o mesmo com linhas, figuras (sólidas e superficiais), ângulos, proporções, tempos, graus de velocidade,

força, potência, e outras coisas semelhantes. Os lógicos ensinam o

mesmo com conseqüências de palavras, somando dois nomes para fazer uma afirmação, duas afirmações para fazer um silogismo,

muitos silogismos para fazer uma demonstração; e da soma ou conclusão de um silogismo, subtraem uma proposição para encontrar

a outra. Os escritores de política somam pactos para descobrir os

deveres dos homens, e os juristas, leis e fatos para descobrir o que é direito e errado nas ações dos indivíduos. Em suma, seja em que

matéria for que houver lugar para a adição e para a subtração, também haverá lugar para a razão, e, se não houver lugar para elas,

também a razão nada terá a fazer.20 (L, 1, V, p. 39, grifo do autor).

Não há dúvidas de que Hobbes escreve encantado pelo cálculo. Após a descoberta de Euclides, ele se aproxima da nova física-matemática de Galileu. O método utilizado pelo matemático italiano reforça aquilo que ele encontrara nas

20 “When a man Reasoneth, hee does nothing else but conceive a summe totall, from Addition of parcels; or conceive a Remainder, from Substraction of one summe from another: which (if it be done by Words) is conceiving of the consequence from the names of all the parts, to the name of the whole; or from the names of the whole and one part, to the name of the other part. And though in some things, (as in numbers) besides Adding and Substracting, men name other operations, as Multiplying and Dividing, yet they are the same; for multiplication, is but Adding together of things equall, and Division, but Substracting of one thing, as often as we can. […] For as Arithmeticians tech to adde and substract in numbers; so the Geometrician teach the same in line, figures (solid an superficiall) angles, proportions, times, degrees of swiftnesse, force, power, and the like; The Logicians teach the same in Consequences of words; adding together two Names, to make an Affirmation. And two Affirmations, to make a Syllogisme; and many Syllogismes to make a Demonstration; and from summe, or Conclusion of a Syllogisme, they substract one Proposition, to finde the other. Writers of Politiques, adde together Pactions, to find mens duties; and lawyers, Lawes, and facts, to find what is right and wrong in the actions of private men. In summe, in what matter soever there is place for addition and substraction, there also is place for Reason; and where these have no place, there Reason has nothing at all to do.” (L, 1, V, pp. 31-2, grifo do autor).

páginas dos Elementos, além de trazer novidades sobre a natureza do movimento, conteúdo que lhe auxilia na resolução de muitas de suas questões referentes à filosofia natural e civil. Parte do mecanismo humano e político professado por Hobbes fundamenta-se na mecânica galileana. Junto com a nova física, interessa investigar o movimento, suas leis e as forças que o provocam dentro do universo natural e social humano.

Ao absorver o método e as linhas mestras da geometria antiga e da física- matemática moderna, Hobbes tornar-se-á incansável na pretensão de estabelecer um método e de fazer em filosofia moral e civil a mesma mudança radical que Galileu fizera na ciência natural. Compreende-se, então, que a modernidade, na figura desses dois pensadores e de tantos outros, busca a autonomia em relação ao pensamento tradicional, passando a interrogar o sentido das coisas pelas racionalizações, abstrações, conjecturas e observação de uma natureza calculável.

O caráter científico e ordenado da teoria hobbesiana, anunciado pelo método, demonstra que a “conjunção entre matemática e física significa, para Hobbes, uma res novitia, graças a Galileu que iniciou a aetas physicae (idade física)” (HECK, op. cit., p.150). A ciência se difere do conhecimento comum, porque concerne a teoremas, isto é, compromete-se com a verdade geral das proposições e se circunscreve no eixo dos conhecimentos que podem ser demonstrados pelos homens, partindo tanto das causas quanto dos efeitos.

A geometria, pelo uso das figuras e linhas, apresenta uma vasta possibilidade do cálculo. Na verdade, ela é a grande salvaguarda do conhecimento científico, pois sendo a priori é demonstrável, e torna-se demonstrável justamente porque está sob o poder da criação e da imaginação do homem. Isso quer dizer que, ao incluirmos elementos da matemática nos fenômenos físicos, podemos torná-los acessíveis à nossa mente e, a partir daí, propor suas representações. É essa junção com a geometria e sua possibilidade de demonstração a saída encontrada para o domínio da física em Galileu. Hobbes reafirma essa junção ao declarar que

não se pode prosseguir às conseqüências dos movimentos sem um conhecimento da quantidade, que é a geometria; nada pode ser demonstrado pela física sem ser demonstrado também a priori. Conseqüentemente a física (eu quero dizer a física verdadeira), aquela que depende da geometria, é numerada geralmente entre a

matemática.21 (DH, X, p. 42, tradução nossa)

21 “[…] one cannot proceed to the consequences of motions without a knowledge of quantity, which is geometry; nothing can be demonstrated by physics without something also being demonstrated a

Por decorrer de teoremas demonstráveis pela quantidade, figuras e linhas, a geometria pode ser descrita aprioristicamente. Apenas quando se une à geometria e ao seu poder de cálculo a física torna-se demonstrável, pois tem como causas as coisas naturais que ultrapassam, em princípio, ao alcance humano. Sobre isso, Hobbes afirma que

As causas de coisas naturais não estão em nosso poder, mas na vontade divina, e desde que grande parte delas [...], nós não as vemos, não podemos deduzir suas qualidades por suas causas. Naturalmente, nós podemos, deduzindo o quanto possível as conseqüências daquelas qualidades que nós vemos, demonstramos que tais e tais poderiam ter sua causa. Este tipo da demonstração é

chamado a posteriori, e sua ciência, física.22 (Ibid., p. 42, tradução

nossa)

O pensador inglês é taxativo ao afirmar que não podemos criar, nós próprios, os fenômenos físicos, e, por isso, não podemos deduzir suas qualidades de suas causas sem aliá-los aos cálculos permitidos pela geometria. Entende-se, com isso, que a modernidade, na figura de Galileu, inova ao unir a física à matemática e ao torná-la uma ciência a priori. Essa inclusão da matemática nos estudos da física retira esta da condição de uma mera suposição e a insere no patamar de uma ciência demonstrável. Os fenômenos, antes invisíveis, tornam-se calculáveis e, portanto, quantitativos e manifestos em seus princípios e causas. Hobbes, então, apropria-se da novidade − de que está sob a mente do homem o poder de calcular e propor os princípios e causas dos movimentos dos corpos − e a transfere para a compreensão dos movimentos dos corpos humanos e dos procedimentos necessários para o triunfo da commonwealth.

Isso posto, podemos afirmar que a geometria e a física revelam para a modernidade muito mais do que uma nova cosmologia. Em Hobbes, elas desnudam fisiologicamente o homem, anunciando seus limites e sua força para, a partir daí, propor uma nova ciência civil. A recorrência aos elementos quantitativos dos fenômenos representa uma forma de dominá-los externamente e de criar um mundo

priori. Therefore physics (I mean true physics), that depends on geometry, is usually numbered among the mixed mathematics.” (DH, X, p. 42).

22 “[…] the causes of natural things are not in our power, but in the divine will, and since the greatest part of them, […], we, that do not see them, cannot deduce their qualities from their causes. Of course, we can, by deducing as far as possible the consequences of those qualities that we do see, demonstrate that such and such could have their cause. This kind of demonstration is called a posteriori, and its science, physics.” (Ibid., p. 42).

de artifícios não somente quantitativos, mas também, qualitativos, e de demonstrar o quanto o homem é, ao mesmo tempo, senhor de sua glória e miséria.

Com a publicação do De Cive, Hobbes se auto-intitula o fundador de uma nova ciência política e se orgulha de abandonar as bases ortodoxas humanistas que impregnavam as teorias políticas até ali. Esse era o grande ranço de toda a tradição, da antiguidade ao medievo, que ele queria superar. E o lugar de destaque reservado à geometria demonstra quão devedora a filosofia é daquela que apontara a novidade das definições, axiomas, postulados e relações causais no conhecimento.

A busca pelo conhecimento seguro faz com que Hobbes se aposse do método da geometria euclidiana e da física galilaica como se se apropriasse de algo perdido ou abandonado por aqueles que desconhecem o significado de um verdadeiro empreendimento científico. Ambas possibilitam um conhecimento legitimamente aprofundado “porque a ars ratiocinandi hobbesiana não apenas articula elementos metodológicos de investigação científica, denominada invention ou investigation, mas também configura o cânone da normatização lógica, chamado demonstration” (HECK, op. cit., p.173). Com Hobbes, a nova filosofia civil toma corpo, declarando a necessidade de conjugar a verdade à evidência.

Os procedimentos metodológicos da geometria de Euclides, assim como o método e as novas descobertas da moderna física de Galileu, abrem espaço ao conhecimento na ciência civil e funcionam como seu sustentáculo. Hobbes quer provar a capacidade científica de sua teoria política, torná-la lógica e categoricamente válida, calcando-se na ciência e em seu método de passar das definições às proposições, enumerando-as e apresentando seus nexos causais demonstrativamente.

Assim, de proposição em proposição a teoria hobbesiana vai sendo apresentada. Quando não é possível recorrer à experimentação lança-se mão dos postulados. E como postular significa pedir para aceitar, Hobbes pede ao seu leitor que aceite o fictício estado natural juntamente com o postulado do bellum omniun contra omnes, fundamentos do estado civil e do poder absoluto. Dessa forma, sistematiza uma filosofia com base no método das relações de causa e efeito, negando-se a conceber eventos contingentes e incertos. Para ele, toda verdade científico-filosófica é analítica e, como tal, ou se inicia ou é seguida de definições. Com uma filosofia balizada nesses pressupostos, o pensador inglês pretende cumprir o intento de apresentar um conhecimento científico claro e explicável pari

passu. E Euclides abre as portas desse conhecimento pela geometria e Galileu o sela com a sua nova física matemática.