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Herança Familiar

No documento carlatoscanocarneiro (páginas 111-117)

4 AS MARCAS IDENTITÁRIAS DAS EDUCADORAS MONTESSORIANAS

4.1 Herança Familiar

A família é a primeira oportunidade do contato com o “outro”, que nos ensina e educa com uma perspectiva de vida que nos forma inicialmente. Seria nossa primeira formação. E assim ela nos deixa rastros de quem somos hoje em dia, sendo por aquilo que seguimos ou afastamos desses ensinamentos, ou seja, ela não é determinante, mas representa momentos de muita aprendizagem do nosso “eu” hoje. Portanto, também somos produções de nossas heranças familiares.

Para isso, Nóvoa (2013) contribui dizendo que:

O “papel” dos outros espaços de vida em relação à profissão pode ser muito diversificado. Os outros espaços de vida, nomeadamente o espaço familiar e o social, podem ser um “limite”, um “contributo”, um “acessório”, em relação à vida profissional. Mas se estes “papéis” podem ter um carácter dominante, pelo menos em certas etapas da vida, nunca são exclusivos. Não têm um carácter unidimensional (p. 138).

Podemos verificar a herança familiar como uma contribuição para o percurso das educadoras, mas jamais como uma forma determinante, única dos caminhos trilhados.

A educadora Flávia nos traz: “Da infância, trago vagas lembranças de brincadeiras de professora, adorava enfileirar meus amigos e/ou bonecas em bancos e carteiras feitas de tijolos e ensinar. Minha mãe Mariza ministrava aula, na minha cidade natal, numa classe da Educação Infantil, no Colégio Marista São José, que vim a saber tempos depois utilizava a filosofia Montessori” (Narrativa da educadora Flávia, 2018).

As brincadeiras de infância já exprimiam um “ser” interior cheio de vontade de ensinar. Esse fato também acaba evidenciando um contexto escolar vivido pela educadora, uma vez que ela reproduzia em suas brincadeiras o que vivia em sua escola: uma escola que enfileirava as crianças. Marcas significativas que as crianças introjetam em seu contexto, de uma representação escolar bem típica do “transmitir” conhecimentos.

Com o pronunciamento de Flávia, percebemos uma configuração de escola nos moldes daquela que Freire (2018 b) aponta:

Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens espectadores e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo especializado neles e não aos homens como “corpos conscientes”. A consciência como se fosse alguma seção “dentro” dos homens, mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a irá “enchendo” de realidade. Uma consciência continente a receber permanentemente os depósitos que o mundo lhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Como se os homens fossem uma presa do mundo e este, um eterno caçador daqueles, que tivesse por distração “enchê-los” de pedaços seus (p. 87).

Essa organização do ambiente escolar trazida por Flávia já diz muito sobre o que está posto naquela realidade. As cadeiras enfileiradas são marcas de um espaço delimitado a cada sujeito e um unidirecionamento para quem está à frente na sala (professor). Isso é uma marca da escola daquela época trazida pelas memórias da educadora.

Flávia ressalta que: “Essa educação para vida que Montessori propôs em sua filosofia, eu e meus irmãos tivemos o prazer de recebê-la por meus pais. Mesmo nas dificuldades, sempre nos proporcionaram e nos conscientizaram da importância dos estudos em nosso dia a dia e para nossa vida” (Narrativa da educadora Flávia, 2018).

Quando Flávia aponta isso, verificamos como o núcleo familiar concebeu as relações entre os sujeitos. E, com isso, a impactou, pois:

“Ao fazer uma retrospectiva sobre minhas aptidões e desejos [...] veio a vivência em casa com minha mãe; e quando visitava uma tia, que também era professora, onde eu pegava suas atividades de escola para refazer e brincar. Acredito que tive inspiração para ser uma grande educadora nas pessoas à minha volta” (Narrativa da educadora Flávia, 2018).

Flávia empodera os familiares quanto à inspiração para ser educadora. Mas conseguimos compreender isso quando observamos em sua linha familiar a educação em destaque nas brincadeiras, na profissão da mãe e da tia e os ensinamentos que provinham desses sujeitos. Além disso, uma força do seu interior em realizar as atividades de escola como uma brincadeira, o prazer que já demonstrava com essas atividades. Pensar nessa questão é levantar o posicionamento de Montessori sobre sempre permitir esta expressão natural do ser criança, que já está com ela.

Luciana também faz referência a sua base familiar para o convívio com o mundo dos livros, da contemplação à natureza, da tranquilidade e afirma a influência desta época nesta constituição do “ser” que se tornou.

“Sou filha caçula, temporã de um irmão aventureiro dez anos mais velho do que eu e de uma querida irmã um ano e meio mais velha do que eu. Meu pai, espírita com inspirações marxistas, apaixonado por livros. Era dentista e me recordo de sua sala de espera lotada enquanto ele atendia calmamente o livreiro e adquiria mais uma coleção... lembro-me de uma de capa dura vermelha, com os escritos impressos em dourado “EDUCAÇÃO COM LIBERDADE” – ROUSSEAU. Nos fins de semana, íamos, eu e meus irmãos, acompanhando meu pai ao sítio, ou praia ou lagoa... ele amava a natureza e assim facilmente me fez amar também. Na verdade, nutriu o amor que já existia em mim pela natureza. Conforme Montessori nos ensina que a criança cresce contemplando a natureza, sinal de seu amor genuíno pelos seres viventes, a tarefa do adulto é nutrir esse sentimento, permitindo que a criança esteja em contato com a natureza” (Narrativa da educadora Luciana, 2018).

O pai da Luciana, sabendo ou não identificar o que era esta educação que fornecia em casa, proporcionou aos seus descendentes a oportunidade de serem crianças em sua naturalidade, vigor e exploração do mundo a sua volta. Montessori fala muito da importância dos pais na educação dos filhos, em manter viva a essência do ser criança em suas descobertas.

É então onde Luciana nos traz a figura do seu pai novamente para incentivar e manter vivo o espírito de descoberta da “sua” criança.

“Meu pai trouxe muito para mim esta coisa da natureza, do contato com a natureza. A beleza, né? No comer o abacate, vamos abrir aquele abacate, a gente ficava ali a tarde toda, ele analisando aquele abacate. Depois a gente passava mal de tanto tomar vitamina de abacate” (Roda de conversa, Luciana, 2018).

Quando Luciana fala sobre suas experiências com o pai, reflete muito as práticas adotadas na educação montessoriana de vida prática, de contato com a natureza. E isso fica explícito quando Nóvoa (2013) ressalta:

Numa perspectiva diacrónica pode notar-se uma influência muito forte de um tempo “passado” na vida profissional – o tempo de infância. As experiências feitas durante a infância projetam-se na relação com as crianças. É significativo ouvir educadoras explicitarem as marcas das suas experiências de crianças nas suas relações educativas. Estas explicitações tornam menos opacas zonas obscuras dos percursos e das práticas (p. 138).

Essa identificação da educadora Luciana pela educação montessoriana pode ter forte influência desta educação realizada pelo seu pai nas relações que estabelecia em sua infância.

Além disso, quando Luciana ressalta um trecho de sua infância demonstra a preocupação do pai de manter um ambiente saudável aos filhos, visando tranquilidade. Visto que:

“Viemos de Belo Horizonte, minha cidade natal, para morarmos por oito anos em Campos dos Goitacazes, em busca, segundo meu pai, de um sono tranquilo e cidade mais silenciosa. Nesta, as escolas particulares eram todas católicas” (Narrativa da educadora Luciana, 2018).

E, logo, Luciana acrescenta sua visão sobre a importância de um tempo não escolar e da figura familiar na constituição do sujeito: “Você fazer o bem, esta troca, esse além do conhecimento, quando eu corrijo um aluno ao sentar, ao falar, né, eu invisto este tempo (que não é o escolar), tradicional, mas é um tempo de educar, quando eu faço isso, eu me sinto bem. Então, eu acho que é esta essência aí de nossos pais. Plantaram as nossas vivências, que vão definir (fica emocionada)” (Roda de conversa, Luciana, 2018).

Mas, em meio a tanta sensibilidade, amor e perfeição, as educadoras também trazem momentos de grande dificuldade emocional e financeira que consideram a força, a sensibilidade e a coragem de continuarem, de exercerem o bem aos “outros”.

Alessandra se apresenta: “Filha de pai e mãe separados, vivi e convivi com diversas dificuldades, tanto afetivas, emocionais quanto assistenciais e de cunho social” (Narrativa da educadora Alessandra, 2018).

A figura da mãe esteve muito presente na escrita e fala de Alessandra, quando, em meio a todo este contexto vivido, enxerga a relevância do papel de sua mãe em sua constituição:

“Minha mãe foi um grande exemplo também, que passou tanta dificuldade e se mostrou enquanto pessoa firme e forte para poder continuar a vida dela, criou duas filhas sozinha, né (se emocionou)? E, enfim, eu sempre aprendi com ela isso, de dar continuidade, não vão parar, não olha para trás” (Roda de conversa, Alessandra, 2018).

Vimos como é a personalidade de Alessandra, que nos expõe sua ação de sempre dar continuidade aos projetos, de aceitar os desafios e de “encarar” suas dificuldades providas pelo papel da mãe em sua trajetória.

Bárbara traz uma dificuldade em escrever sobre sua família (não traz na narrativa), mas expressa, oralmente, na roda de conversa, suas marcas familiares e o que elas produziram nela:

“[...] eu também tive vários motivos para as pessoas falarem assim: olha, você não vai ser nada (se emocionou), você não vai ser ninguém. E, ao contrário, até quando elogiavam, falavam assim: mas, você é muito mais inteligente do que isso. Meu pai falou isso para mim. Eu falei assim: pai, eu vou te mostrar que eu vou ser a melhor pedagoga que você conhece. E aí, em menos de dez anos, eu me torno coordenadora, e aí eu voltei e falo com ele: tá vendo, eu te falei que eu ia te mostrar. Aí ele fala: tenho muito orgulho de você. Não é pelo salário que você vai receber é pela pessoa que você se tornou né, independentemente da profissão que você escolheu” (Roda de conversa, Bárbara, 2018).

Como algumas palavras marcam as pessoas! Para Bárbara, foi uma força propulsora de seu caminhar, de sua busca e de suas conquistas ao longo dos tempos.

Flávia também traz as lembranças de suas dificuldades e o apoio dos familiares para manter seus sonhos.

“[...] eu tive muita ajuda (se emociona), [...] de pessoas que acreditaram (emocionada), eu não tinha a mínima condição de fazer. A minha irmã ainda teve a oportunidade de fazer Mestrado, que era o desejo dela. E a gente não, nós somos quatro, então o que dava para um, tinha que esperar o outro mês para dar para outro (choro). Não choro de sofrimento, não. Eu acho que foi isso que fez eu ser quem eu sou. E se a gente parar para pensar: Montessori é uma coisa de cada, não é uma coisa que eu preciso dar uma boneca para cada um. Eu precisava de um carrinho para o meu irmão, para mim uma boneca. Sapato que neste mês é meu e no outro é para o meu irmão. Eu até costumo dizer para as meninas, não sou muito de pulseiras, de brinco, até porque a gente cresceu com essa noção de cada momento é um. Então, graças a Deus, eu não sou materialista. Então, acho que isso contribui também para a questão da proposta do método, da gente se identificar nessa vida, da gente, não sou nesse sentido, eu acho que isso me ajudou. Então, eu poder ver que meus irmãos tiveram essa mesma educação e contribuíram; porque quando eu fui fazer a Pedagogia, eu não tinha dinheiro para fazer. Meu sonho era fazer primeiro a Psicologia, que eu amo, eu ainda vou poder fazer, se Deus quiser, porque eu queria me entender nesse mundo mesmo. E a Pedagogia era mais barata e também minha mãe era professora e eu sempre quis, a gente cresceu nesse ambiente, então a gente quer ser também, né? E que a gente poderia servir o outro. Então, refleti sobre isso tudo para chegar onde pensar: Gratidão! Porque se eu não tivesse vivido isso, talvez eu não estaria aqui aonde eu estou né, ou como eu sou. E, como a Lu falou, não sei se

é cosmo. Cada um tem sua religião, mas eu acredito muito que eu tinha que ter passado por isso. Se não Montessori não teria entrado na minha vida de uma forma tão natural e que tinha que ser, porque trabalhar Montessori, magistério quando eu fiz. A Pedagogia, quando eu fiz, a primeira coisa que eu pensei foi na Montessori. Então, eu acho que ela me buscou mesmo, uma coisa, que eu já tinha, mas ela me buscou. E eu passei e passo a todo momento para quem está do meu lado mesmo, eu falo: quem se entrega se reconhece, não tem outra melhor forma de viver sem essa essência que ela trouxe no método” (Roda de conversa, Flávia, 2018).

Quando Flávia nos aponta esse momento, fica exposta uma vida montessoriana em seus vários aspectos para uma constituição da educadora montessoriana. É uma identificação do “ser pessoal” com o “ser profissional” diante da convergência da educação montessoriana na vida e no exercício da profissão.

E, nesse sentido, Nóvoa (2013) diz:

Ninguém se forma no vazio. Formar-se supõe troca, experiência, interações sociais, aprendizagens, um sem fim de relações. Ter acesso ao modo como cada pessoa se forma é ter em conta a singularidade da sua história e sobretudo o modo singular como age, reage e interage com os seus contextos. Um percurso de vida é assim um percurso de formação, no sentido em que é um processo de formação (p. 115).

Diante disso, podemos corroborar com Freire (2018) quando exalta que o sujeito está com o mundo em suas relações e:

[...] mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença com um “não eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude (FREIRE, 2018).

Portanto, a constituição do “ser” depende de suas relações estabelecidas com o mundo e os outros, mediante o reconhecimento do “eu” a partir do contato com o não “eu” e as influências projetadas neste contexto de relações.

No documento carlatoscanocarneiro (páginas 111-117)