• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 – A natureza dialógica e a heterogeneidade enunciativa da

1.3 A teoria das heterogeneidades enunciativas de Authier-Revuz

1.3.3 Heterogeneidade constitutiva

Essa heterogeneidade do discurso refere-se a uma heterogeneidade da raiz, interna ao próprio discurso, portanto, não localizável e não representável, e, como tal, não é encontrada no fio do discurso por não estar presente e nem se fazer

manifestada no mesmo. Diríamos que esta categoria pertence ao plano do discurso, enquanto uma realidade formal, uma realidade que participa da própria constituição discursiva. Aqui, encontramos o Outro do discurso. Assim, o “Outro” passa a ser compreendido como “Uma outra língua, um outro registro discursivo, familiar, pedante, adolescente, grosseiro, etc., um outro discurso, técnico, feminista, marxista, jacobino, moralista, uma outra modalidade de consideração de sentido para uma palavra, um outro, o interlocutor” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 30-1).

Enquanto discurso, o Outro tem um caráter de participação de constituição a um certo discurso, na medida em que ambos mantêm uma relação de comunhão, de consenso, defrontamento, ou mesmo de indiferença aparente. Por conseguinte, podemos dizer que o Outro é aquilo que sistematicamente faz falta a um discurso, pois todo discurso já nasce com essa falta, a falta de um outro discurso, a falta inerente a todo e qualquer discurso, de um discurso que lhe traga a sensação de acabamento.

Ouçamos, mais uma vez, algumas palavras de Authier-Revuz, ao destacar o aspecto da constitutividade desse Outro no sujeito e no seu discurso:

Em ruptura com o EU, fundamento da subjetividade clássica concebida como o interior diante da exterioridade do mundo, o fundamento do sujeito é aqui deslocado, desalojado, “em um lugar múltiplo, fundamentalmente heterônimo, em que a exterioridade está no interior do sujeito”. Nesta afirmação de que, constitutivamente, no sujeito e no seu discurso está o Outro, reencontram-se as concepções do discurso, da ideologia, e do inconsciente, que as teorias da enunciação não podem, sem riscos para a lingüística, esquecer. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 29).

Authier-Revuz chama a atenção da questão do Outro, enquanto instância constitutiva do sujeito no seu discurso, na medida em que se instala uma necessidade de refleti-lo nos planos das teorias da enunciação, nas concepções de discurso e nas teorias que abordam o campo do inconsciente. E arrisca, ao afirmar que isso a lingüística tem que lembrar: “O próprio de toda formação discursiva é o

dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso determinante desta formação discursiva como tal, objetividade material que reside no fato de que “isso fala” (ça parle) sempre, antes,

alhures, e independenemente (sic) [...] (ALTHIER-REVUZ, 1990, p. 27). A respeito

do caráter constitutivo da palavra, a própria autora afirma que

Sempre sob as palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo o discurso, através da qual a análise pode tentar recuperar os indícios da “pontuação do inconsciente”.

Esta concepção do discurso atravessado pelo inconsciente se articula àquela do sujeito que não é uma entidade homogênea exterior à linguagem, mas o resultado de uma estrutura complexa, efeito da linguagem: sujeito descentrado, dividido, clivado, barrado ... pouco importa a palavra desde que longe do desdobramento do sujeito ou da divisão como efeito sobre o sujeito do seu encontro com o mundo exterior, divisão que se poderia tentar apagar por um trabalho de restauração da unidade da pessoa, mantido o caráter estrutual (sic) constitutivo da clivagem pelo sujeito (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28).

Como se vê, a heterogeneidade de natureza constitutiva não mostra a existência do outro por estar compreendida no plano do interdiscurso e do inconsciente. A heterogeneidade constitutiva passa a ser constituída a partir de uma compreensão da interdiscursividade, já que um discurso só tem existência a partir de outro, como fora concebido pela teoria da Análise do discurso de linha francesa, no momento em esta abordagem efetiva uma retomada do princípio dialógico da linguagem de linha bakhtiniana, com o tema do sujeito e de sua relação com a linguagem, através da perspectiva psicanalítica lacaniana, em que se tem um viés da psicanálise atravessada pelas leituras (reinterpretação de quase todos os conceitos freudianos) do psiquiatra e psicanalista francês Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) aos enunciados do médico vienense, fundador da psicanálise, Sigmund Freud.

Nestes termos, a heterogeneidade constitutiva está na ordem do

discurso, e faz parte dos processos reais de constituição dum discurso. Vale

ressaltar que o conceito de heterogeneidade está incorporado à concepção dialógica da linguagem, de Mikhail Bakhtin, que percebe essa orientação como um fenômeno presente em todo discurso. Tomando-se a obra Questões de literatura e de estética:

a teoria do romance (1988, p. 88), o autor, discutindo a questão das ressonâncias

dialógicas, vozes e entonações presentes no plurilingüismo em face de um objeto, aponta para essa orientação da linguagem,

Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua-orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar.

Assim, a orientação dialógica está presente em todo e qualquer discurso, e é justamente devido à dialogicidade que os discursos se encontram em todas as direções. A especificidade da linguagem reside exatamente no fato de que ela representa um espaço de encontro de, no mínimo, dois discursos em interação, pois, fora deste contexto, seria possível encontrar-se com Adão mítico, na condição do primeiro a manifestar-se discursivamente em volta do objeto, sem o discurso alheio, condição essa impossível para o discurso humano, concreto e histórico.

É nessa direção que se tem a heterogeneidade constitutiva como um espaço conceitual em que o discurso de um delimita-se com os discursos de outros. Como se observou, essa heterogeneidade difere-se da mostrada, levando-se em consideração o lugar que ocupa na ordem da discursividade, pois, como vimos, as

duas heterogeneidades pertencem a ordens distintas. Afirma Authier-Revuz (1990, p. 32):

A uma heterogeneidade radical, exterioridade interna ao sujeito e ao discurso, não localizável e não representável no discurso que constitui, aquela do Outro do discurso – onde estão em jogo o interdiscurso e o inconsciente -, se opõe à representação, no discurso, as diferenciações, disjunções, fronteiras interior/exterior pelas quais o um – sujeito, discurso – se delimita na pluralidade dos outros, e ao mesmo tempo afirma a figura dum enunciador exterior ao seu discurso.

Em síntese, Authier considera a heterogeneidade constitutiva como uma forma não representável, não localizável, como também pertencente à ordem do processo real de constituição do discurso. Isso não quer dizer que essa heterogeneidade não possa estabelecer relações com a mostrada, que elas não sejam articuláveis entre si. Ambas possuem planos distintos de manifestação: a primeira está na própria raiz do discurso; a segunda no fio, na “seqüência do discurso”, no plano da representação em suas diversas formas e graus.

A questão agora é saber de forma específica a noção de “outro” desenvolvida por Authier-Revuz em seu quadro teórico. A autora (1990) afirma que existem discursos chamados como “exteriores”, que interferem na cadeia do discurso em enunciação gerando um espaço de heteregeneidade, quais sejam: as palavras de outro; uma outra língua (Exemplo: Good night, como dizem os americanos); um outro registro discursivo (Exemplos: jovem porreta, broto legal, para

tomar uma expressão da geração jovem dos anos 60); um outro discurso – técnico,

familiar, feminista, marxista, socialista, comunista, capitalista (Exemplo: A

sexualidade humana, como dizem os psicanalistas. Ou: Língua como sistema, como dizem os estruturalistas); uma outra forma (modalidade) de tomar o sentido de uma

palavra (Exemplo: democracia, no sentido dos gregos; materialismo, no sentido dos

expressão). Nesse procedimento, o enunciador estabelece uma relação de si para fora do discurso, buscando o interlocutor.