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2.2 NOÇÕES TEÓRICAS DA ANÁLISE DO DISCURSO

2.2.8 Heterogeneidade discursiva e heterogeneidade mostrada

A AD, tal como se constitui hoje, entende que os diversos discursos que atravessam uma FD não se constituem independentemente uns dos outros para serem postos em relação, mas se formam de maneira regulada no interior do interdiscurso. Assim, a heterogeneidade é entendida como elemento constitutivo das práticas discursivas, já que todo discurso é

mantêm entre si relações de contradição, de dominação, de confronto, de aliança e/ou de complementação.

Authier-Revuz (1982, p. 91-151) trata da questão da heterogeneidade, partindo da noção lacaniana de sujeito clivado, dividido pelo inconsciente (Outro), que vive na necessária ilusão da autonomia da sua consciência e do seu discurso e do conceito de dialogismo de Bakhtin (1988), indicando algumas dessas formas de heterogeneidade que acusam a presença desse outro: (1) a heterogeneidade constitutiva do discurso (que esgota a possibilidade de captar lingüisticamente a presença do outro no um); (2) a heterogeneidade mostrada no discurso (que indica a presença do outro no discurso do locutor).

A heterogeneidade constitutiva diz respeito ao discurso, na medida em que é dominado pelo interdiscurso. Assim, o discurso não é apenas um espaço em que acaba de se introduzir um discurso de outro, ele constrói-se através de um debate com a alteridade, independentemente de qualquer traço visível de citação, de alusão, entre outros. Para Pêcheux (1975), a dupla referência à psicanálise e à concepção althusseriana da ideologia baseia a primazia do interdiscurso sobre cada formação discursiva:

O próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas (PÊCHEUX, 1975, p. 162).

Pêcheux (1975) estabelece duas formas de esquecimento no discurso, sendo denominados de esquecimento número um e de esquecimento número dois. Sendo o esquecimento número dois da ordem da enunciação, deve ser relacionado à heterogeneidade constitutiva, pois segundo o que foi acima observado, a mesma faz parte do esquecimento e o discurso é dominado pelo interdiscurso. Este esquecimento enunciativo atesta o que a sintaxe significa, ou seja, que o modo de dizer não é indiferente aos sentidos. Este esquecimento é

parcial e estabelece uma relação “natural” entre a palavra e a coisa. Ele é do nível do semi- consciente e o falante produz então, famílias parafrásticas, que deixam a impressão de que o dizer poderia sempre ser outro. Já o esquecimento número um, também conhecido como esquecimento ideológico, faz parte do domínio do inconsciente e é o resultado de como a ideologia atua sobre cada ser falante, deixando sempre a impressão de originalidade sobre o que se diz. Entretanto, os sentidos são determinados pela maneira como cada falante está inscrito na história e na língua. Os sentidos significam por si e não pela vontade de cada ser falante.

Já a heterogeneidade mostrada, constitui-se de lapsos de consciência (lembrança), ou seja, é uma forma de negociação com a heterogeneidade constitutiva. Segundo Authier- Revuz, este tipo de heterogeneidade pode acontecer em duas modalidades: a marcada, da ordem da enunciação e visível na materialidade lingüística; e a não-marcada, da ordem do discurso e não provida de visibilidade. Pode-se também definir a heterogeneidade mostrada como correspondente a uma presença localizável de um outro discurso na linha do texto. As formas não marcadas são identificáveis no nível do pré-consciente, com base na intertextualidade, ou seja, em indícios textuais diversos ou graças à cultura do interlocutor (discurso indireto livre, alusões, ironia, pastiches, entre outros). As formas marcadas são assinaladas de maneira unívoca. Pode tratar-se de discurso direto ou indireto, de aspas, de notas explicativas, que indiquem uma não-coincidência do enunciador com o que diz. AUTHIER-REVUZ (1990, p. 173-193) distingue quatro tipos de não-coincidências enunciativas do dizer:

1. não-coincidência do discurso com ele próprio. Exemplo: quando se diz, Um tal, no sentido de Um Tal;

2. não-coincidência entre palavras e coisas. Exemplos: Como direi? Ou: É a palavra que convém;

3. não-coincidência das palavras com elas próprias. Exemplos: Em sentido figurado, Em qualquer sentido;

4. não-coincidência entre enunciador e interlocutor. Exemplos: Como você disse. Passe a expressão.

O enunciador debate-se assim com a alteridade, procurando preservar uma fronteira com aquilo que não depende do seu discurso.

Esses tipos de heterogeneidade propostos por Authier-Revuz, heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada estão relacionados com as duas formas de esquecimento postuladas por Pêcheux (1975), esquecimento número um e de esquecimento

número dois, respectivamente. De fato, o primeiro esquecimento é da ordem do inconsciente.

É também denominado esquecimento ideológico, pois resulta do modo como somos afetados pela ideologia: através dele temos a ilusão de ser a origem do que dizemos, a impressão de originalidade sobre o que se diz. Entretanto, os sentidos são determinados pela maneira como cada falante está inscrito na história e na língua. Os sentidos significam por si e não pela vontade de cada ser falante.

Já o esquecimento número dois, da ordem da enunciação e do nível do semi- consciente, fornece a ilusão da relação “natural” entre a palavra e a coisa, e é parcial. É, segundo Orlandi (1999), um esquecimento parcial e muitas vezes voltamos a ele, para melhor especificar o que dizemos. Portanto, este esquecimento, sendo do nível do semi-consciente se relaciona à heterogeneidade mostrada, pois segundo o que foi acima observado, este tipo de heterogeneidade, ao negociar com a heterogeneidade constitutiva (esquecimento número um), denegando-a, materializa lingüisticamente a presença desse outro, ou seja, “é sempre fruto de um breve instante de consciência ‘fantasmagórica’ em relação à heterogeneidade constitutiva” (GALLO, S., 2001, p.65).