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Heterotopias e o saber

No documento Download/Open (páginas 33-42)

Nosso entendimento é de que não será por acaso o fato das Heterotopias serem apresentadas na obra de Foucault que trata dos espaços das ordens que tornam os saberes possíveis. No livro As palavras e as coisas as mudanças na epistémê não se dão exclusivamente em função dos progressos da razão, “mas os modos de ser das coisas e da ordem que distribuindo-as, oferece-as ao saber, é que foi profundamente alterado” (2007, p. XIX). A própria arqueologia trata do “espaço geral do saber, a suas configurações e ao modo de ser das coisas que aí aparecem, define sistemas de simultaneidade, assim como a série de mutações necessárias e suficientes para circunscrever o limiar de uma positividade nova” (2007, p. XX). Convém lembrar com Ternes (2007, p. 302) que o espaço de trabalho de Foucault não é o mesmo dos historiadores tout court, “sua história é de outro mundo”. As metáforas espaciais, caras a Foucault21, parecem indicar espaços movediços, em ruínas, mas, também, uma outra possibilidade, um espaço outro para o pensamento, nos dizeres de Deleuze (2006), “que haja camadas bem diferentes nesse solo, que haja mesmo mutações nele, agitações topográficas, organizações de novos espaços, é o que mostra Foucault”.

Nas linhas iniciais do livro As palavras e as coisas, numa apreciação do texto de Borges, Foucault coloca a questão sobre a impossibilidade do pensamento no absurdo do sem- nome, do inclassificável e do desordenado. Entre os “códigos fundamentais de uma cultura” (linguagem, esquemas perceptivos, trocas, técnicas e a hierarquia de suas práticas) e as interpretações filosóficas ou as teorias científicas, existiriam “regiões” distantes, onde reina um domínio “mais confuso, mais obscuro e, sem dúvida, menos fácil de analisar” (FOUCAULT, 2007, p. XIX.).

21

TERNES, José. Compelle intrare: a transgressão do Sobrinho. In. MUCHAIL, S. T., FONSECA, M. A. & VEIGA-NETO, A. O mesmo e o outro: 50 anos de História da Loucura. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

Foucault trata de diferenciar a sua leitura da história das idéias ou das ciências. Trata- se de pensar o espaço da ordem no qual se constitui o saber. Não se trata de um estudo do progresso da razão que determine, ou que resulte, na ciência moderna. O que se coloca, então, se refere ao espaço e a ordem do saber. Para Foucault (2007, p. XXI) “trata-se, em suma, de uma história da semelhança: sob que condições o pensamento clássico pôde refletir, entre as coisas, relações de similaridade ou de equivalência que fundam e justificam as palavras, as classificações, as trocas”.

É, de certa forma, no entrecruzamento da linguagem com o espaço, ou da comicidade provocada pelo texto de Borges, que as heterotopias são apresentadas. Se as utopias consolam, com seu espaço maravilhoso e liso, as heterotopias inquietam, ao impedir de nomear isto e aquilo, ao fracionar ou emaranhar os nomes comuns. Se as utopias autorizam as fábulas e os discursos, situando-se na linha reta da linguagem, as heterotopias “desfazem os mitos e imprimem esterilidade aos lirismos das frases” (FOUCAULT, 2007, p. XIII).

É interessante que nessa apresentação das heterotopias, figure ao lado de Borges, o doente, o afásico. O doente, infinitamente, “reúne e separa, amontoa similitudes diversas, destrói as mais evidentes, dispersa as identidades, superpõe critérios diferentes, agita-se, recomeça, inquieta-se e chega finalmente à beira da angústia” (Idem, p. XV). A doença nos remete a arqueologia do olhar médico que, juntamente a experiência limite do Outro, a ordem das coisas e o pensamento do Mesmo constitui o espaço arqueológico. Dessa forma, o “que se oferece à analise arqueológica é todo o saber clássico, ou melhor, esse limiar que nos separa do pensamento clássico e constitui nossa modernidade” (idem p. XXII). A novidade desse limiar é o aparecimento dessa “estranha figura do saber que se chama homem e que abriu um espaço próprio às ciências humanas” (Idem, p. XXII).

A relação com a ordem é fundamental para o período clássico. Para Foucault (Idem, p. 99) “o que torna possível o conjunto da epistémê clássica é, primeiramente, a relação a um conhecimento da ordem”. Sejam as naturezas simples, através da máthêsis, ou as naturezas complexas, através de uma taxinomia, e, ainda, através da busca do contínuo, de uma gênese, configura-se o saber na idade clássica. Uma análise arqueológica do saber para Foucault (Idem, p. 103), precisa

[...] reconstituir o sistema geral de pensamento, cuja rede, em sua positividade, torna possível um jogo de opiniões simultâneas e aparentemente contraditórias. É essa rede que define as condições de possibilidade de um debate ou de um problema, é ela portadora da historicidade do saber.

É preciso ainda, para compreender as disposições do saber na idade clássica, se ater as relações entre o saber e a linguagem. Para os clássicos “a linguagem começa onde houver não expressão, mais discurso” (Idem, p. 129). A linguagem se converte toda ela em discurso. A palavra designa e em sua natureza é nome. Dessa forma, tudo para os clássicos pode tornar-se discurso. Para Foucault (Idem, p. 166),

Pode-se dizer que é o Nome que organiza todo o discurso clássico; falar ou escrever não é dizer as coisas ou se exprimir, não é jogar com a linguagem, é encaminhar-se em direção ao ato soberano de nomeação, é ir, através da linguagem, até o lugar onde as coisas e as palavras se ligam em sua essência comum, e que permite dar-lhes um nome.

A utopia localiza-se para os clássicos nessa possibilidade dada por essa ordem na qual, a partir de uma origem, se desdobra um quadro ideal “onde cada coisa estaria presente em seu lugar, com suas vizinhanças, suas diferenças próprias, suas equivalências imediatas” (Idem, p. 361). Entretanto vê-se, a partir do início do século XIX, uma nova disposição do saber, em que se torna possível a vida, o trabalho e a linguagem, o ressurgimento das utopias de um

acabamento, a “utopia dos pensamentos causais”. Para Foucault (Idem, p. 361),

No século XIX, a utopia concerne ao crepúsculo do tempo mais que à sua aurora: é que o saber não mais constituído ao modo do quadro, mas ao da série, do encadeamento e do devir; quando vier, com a noite prometida, a sombra do desenlace, a erosão lenta ou a violência da História fará realçar, em sua imobilidade rochosa, a verdade antropológica do homem.

Nessa nova disposição do saber a linguagem se reduz ao estatuto de objeto. Não se busca mais, como na época clássica, uma linguagem universal. A linguagem se apresenta como “uma mediação necessária para todo conhecimento científico que pretende manifestar- se como discurso” (Idem, p. 410). Vê-se também o retorno da exegese, mas não se trata mais de encontrar a palavra primeira, “mas de inquietar as palavras que falamos, de denunciar o vinco gramatical de nossas idéias, de dissipar os mitos que animam nossas palavras, de tornar de novo ruidosa e audível a parte de silêncio que todo discurso arrasta consigo quando se enuncia” (Idem, p. 412).

O aparecimento da literatura é a última das mudanças, mais importante e mais inesperada, desse nivelamento da linguagem. Para Foucault (Idem p. 415), esse “isolamento de uma linguagem singular, cuja modalidade própria é ser literária”, é recente em nossa cultura. A literatura, em sua intransitividade, “faz nascer, no seu próprio espaço, tudo o que pode assegurar-lhe a denegação lúdica (o escandaloso, o feio, o impossível) ” (Idem, p. 416).

Foucault destaca que o momento em que a linguagem se torna objeto de conhecimento ocorre o seu reaparecimento numa modalidade oposta: “silenciosa, cautelosa deposição da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela não pode ter nem sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer senão a si própria, nada mais a fazer senão cintilar no esplendor de seu ser” (Idem, p. 416).

Para Machado (2000, p. 107) As Palavras e as coisas é um dos momentos da trajetória de Foucault em “que a análise da literatura se vincula mais fortemente à análise arqueológica”. Nessa perspectiva, é como se os estudos sobre a presença das ciências do homem na modernidade funcionassem “ao mesmo tempo como unificação dos estudos sobre a linguagem literária”. Em relação aos outros saberes a literatura seria uma espécie de limiar: “os limites da loucura, da morte, do impensável...” Dessa forma, a literatura, com retorno da exegese e o reaparecimento da linguagem, marca o apagamento da ordem do pensamento clássico.

O limiar do classicismo para a modernidade é “transposto quando as palavras cessaram de entrecruzar-se com as representações e de quadricular espontaneamente com as coisas” (Idem, p. 419). Nesse retorno da linguagem tanto Nietzsche quanto Mallarmé teriam desempenhado um importante papel,

Para Nietzsche, não se tratava de saber o que eram em si mesmo o bem e o mal, mas quem era designado, ou antes, quem falava, quando, para designar- se a si próprio se dizia Agathós, e Deilós para designar os outros. Pois é aí, naquele que mantém o discurso e mais profundamente detém a palavra, que a linguagem inteira se reúne. A esta questão nietzschiana: quem fala? Mallarmé responde e não cessa de retomar sua resposta, dizendo que o que fala é, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, é a própria palavra – não o sentido da palavra, mas seu ser enigmático e precário. (Idem, p. 421).

A recondução do pensamento para a própria linguagem é o que dá origem a maior parte das questões que são colocadas hoje sobre a linguagem. A fragmentação da linguagem estaria ligada ao acontecimento arqueológico que se designa como desaparecimento do discurso. Novamente encontramos com um Foucault que coloca questões a seu próprio pensamento, juntamente aos próprios limites e impossibilidades em que podem ser colocados os estudos arqueológicos. Se as questões da linguagem, em certo sentido, tomam o lugar das questões acerca da vida e do trabalho, não é claro se é possível respondê-las. Dessa forma, Foucault (Idem, p. 423) afirma,

É verdade que a essas questões eu não sei responder, nem, entre essas alternativas, qual termo conviria escolher. Sequer adivinho se poderia jamais responder a elas ou se um dia me virão razões para me determinar. Todavia, sei agora por que é que, como todo o mundo, eu as posso formular a mim próprio – e que não as posso deixar de formular. Somente aqueles que não sabem ler se espantarão de que eu o tenha aprendido mais claramente em Curvier, em Bopp, em Ricardo, do que em Kant ou Hegel.

Canguilhem (2012) aponta que nas discussões sobre o homem e seus duplos e as Ciências Humanas tudo se desenvolve em torno da questão acerca da linguagem hoje. Dessa forma, destaca-se a raridade do posicionamento de Foucault ao se colocar na impossibilidade de responder as questões colocadas por ele mesmo sobre a linguagem. Para Canguilhem (Idem, p. 10),

Em nossos dias, em que tantos “pensadores” se arrogam dar respostas a questões das quais não se dão o trabalho de justificar nem a pertinência nem o enunciado, é raro encontrar um homem que necessita de mais de trezentas páginas para expor uma questão, sem descartar a necessidade de ter “talvez de recomeçar o trabalho”.

Talvez, entre as teses de Foucault apresentadas no livro As palavras e as coisas, nenhuma outra tenha provocado tantas polêmicas quanto a que se refere ao homem como uma invenção recente e, talvez, com o fim próximo. Para Foucault (2007, p. 536), “o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano [...] O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo”.

Deleuze (2013, p. 13), em seu texto sobre Foucault, nos aponta um breve resumo do que foi a receptividade dessa tese,

As pessoas rancorosas dizem que ele é o novo representante de uma tecnologia, de uma tecnocracia estrutural. Outros, que tomam sua própria estupidez como inteligência, dizem que é o epígono de Hitler, ou, pelo menos, que ele agride os direitos do homem (não lhe perdoam o fato de ter anunciado a “morte do homem”).

Para Foucault na Idade Clássica não havia uma consciência epistemológica do homem tal como conhecemos. Embora nenhuma outra época possa ter se referido tanto à natureza humana, era o próprio conceito de natureza humana que impedia a possibilidade de uma ciência do homem. A natureza humana e a natureza para os clássicos “são momentos funcionais, definidos e previstos”. Foucault (2007, p. 427) entende que “o homem, como realidade espessa e primeira, como objeto difícil e sujeito soberano de todo conhecimento

possível, não tem aí nenhum lugar”. As possibilidades de conhecer para os clássicos passam pela soberania das palavras, pelo discurso, e “a consequência essencial é que a linguagem clássica como discurso comum da representação e das coisas, como lugar em cujo interior natureza e natureza humana se entrecruzam, exclui absolutamente qualquer coisa que fosse „ciência do homem‟” (Idem p. 429). Mas o que vem a se revelar com desvanecimento do discurso clássico é a própria finitude do homem,

A finitude do homem se anuncia – e de uma forma imperiosa – na positividade do saber; sabe-se que o homem é finito, como se conhecem a anatomia do cérebro, o mecanismo dos custos de produção ou o sistema da conjugação indo-européia; ou, antes, pela filigrana de todas essas figuras sólidas, positivas e plenas, percebem-se a finitude e os limites que elas impõem, advinha-se como que em branco tudo o que elas tornam impossível (Idem, p. 432).

Mas o homem, na leitura de Foucault, não pôde se apresentar a uma epistémê sem descobrir, em si e fora de si, nas suas margens, “uma parte de noite, uma espessura aparentemente inerte em que ele está imbricado, um impensado que ele contém de ponta a ponta, mas em que do mesmo modo se acha preso” (Idem, p. 450). Todo pensamento moderno estaria atravessado pela lei de pensar o impensado. Não haveria possibilidade de descobrir o impensado sem que o ser do homem seja alterado. O pensamento é um certo modo de ação. Dessa forma, o conhecimento do homem, diferente das ciências da natureza está sempre ligado a éticas e políticas, “mais profundamente, o pensamento moderno avança naquela direção em que o outro do homem deve tornar-se o Mesmo que ele” (Idem, p. 453).

Talvez, seja interessante retomarmos a discussão sobre esses espaços de ausência do homem, espaços daquele “que trama todos os fios entrecruzados „da representação em quadro‟”, mais que sempre se encontrará ausente. Esses espaços nos quais nos deparamos com a liberdade do pensamento foucaultiano e que se relaciona tanto com sua vitalidade problemática quanto com o valor, ou um gesto, característico de Foucault de tratar a literatura e a arte como possibilidades do pensamento. Talvez, seja importante retomarmos ao limiar onde pouco se perguntava sobre a representação e o ser, espaço em que Foucault concede a Velasques e Cervantes22 um lugar especial. É no “teatro artificial”, quando é introduzida

22

Canguilhem (2012, p. 08) se refere a um “espanholismo” de Foucault que caracterizava a vivacidade de seu espírito, “Podemos, portanto, tomar emprestado a Henri Brulard o termo espanholismo para caracterizar a orientação assumida pelo espírito filosófico de Foucault. Para Stendhal, que em sua juventude detestava Racine e só confiava em Cervantes e em Ariosto, espanholismo é o ódio a predicação e à superficialidade. Ora, a julgar pelas desaprovações moralizadoras, pela cólera e indignação provocadas por todo lado pela obra de Foucault, alguma coisa nela parece visar diretamente, se não voluntariamente, um tipo de espírito tão vivaz quanto à época da Restauração”.

“uma personagem que não figurara ainda no grande jogo clássico das representações” que encontramos “a lei prévia desse jogo no quadro Las meninas” de Velasques23

. Se no pensamento clássico aquele que representa a si mesmo e para quem a representação existe está ausente,

[...] essa ausência não é uma lacuna, salvo para o discurso que laboriosamente decompõe o quadro, pois ela não cessa jamais de ser habitada e de o ser realmente, como o provam a atenção do pintor representado, o respeito das personagens que o quadro figura, a presença da grande tela vista ao revés e nosso próprio olhar para quem esse quadro existe e, para quem, do fundo do tempo, ele foi disposto (Idem, p. 424).

Para Foucault encontra-se nesse quadro “a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre” (Idem, p. 20). Na dispersão reunida e exibida em conjunto, é indicado um vazio essencial,

[...] o desaparecimento que a funda – daquele a quem ela assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo – que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação (Idem, p. 20-21).

Cervantes, por outro lado, já figurara na História da Loucura um papel igualmente importante. Nos “Jogos de uma era barroca” Cervantes se apresenta como testemunha “de uma experiência trágica da loucura nascida no século XV” e não do lado da “experiência crítica e moral do Desatino”. Dom Quixote, personagem de Cervantes, se apresenta no livro

As palavras e as coisas como o “herói do Mesmo” que em seu longo “grafismo magro” traça

os limites nos quais “terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos”. Para Foucault (Idem, p. 63), Dom Quixote “é feito de palavras entrecruzadas; é escrita errante no mundo em meio à semelhança das coisas”. Dom Quixote deve, em suas aventuras, “decifrar o mundo”, “transformar a realidade em signos”, e desenhando “o negativo do mundo do Renascimento”, mostrar que “a escrita cessou de ser a prova do mundo”.

Dom Quixote seria a primeira das obras modernas quando “a semelhança entra numa

idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação” (Idem, p. 67). Nesse rompimento com a similitude e os signos dois personagens aparecem face a face. O louco, como “o homem das

23 Deve ser ressaltado ainda sobre esse quadro de Velasques, que expressa o “emblema do problema

fundamental” tratado por Foucault, que “esta pintura dá conta de problemas específicos da pintura e também do sistema de pensamento da Idade Clássica ou da idade da representação, e também da era do Homem que a sucede” (FOUCAULT, M. Ditos e Escritos III (Estética: Literatura, Pintura, Música e Cinema). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2013, p.199.

semelhanças selvagens”, “o jogador desregrado do mesmo e do Outro”, o que “acredita, a cada instante, decifrar signos”. Para Foucault (Idem, p. 67),

Segundo a percepção cultural que se teve do louco até o fim do século XVIII, ele só é o diferente na medida em que não conhece a diferença; por toda parte vê semelhanças e sinais da semelhança; todos os signos para ele se assemelham e todas as semelhanças valem como signos.

Na outra extremidade desse espaço cultural estaria o poeta, aquele que “reencontra os parentescos subterrâneos das coisas”. Dessa forma, para Foucault (Idem, p. 68),

Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enunciar, apaga na sua linhagem a distinção dos signos.

Esse face a face da poesia com a loucura marca “uma nova experiência da linguagem e das coisas”. O homossemantismo do louco “reúne todos os signos e os preenche com uma semelhança que não cessa de proliferar” (Idem, p. 68). O poeta, inversamente, desempenha um papel alegórico, “põe-se a escuta de outra „linguagem‟”. Dessa forma, se “o poeta faz chegar a similitude até os signos que a dizem, o louco carrega todos os signos com uma semelhança que acaba por apagá-los” (Idem, p. 68). Para Foucault (Idem, p. 68),

Assim, na orla exterior da nossa cultura e na proximidade maior de suas divisões essenciais, estão ambos nessa situação de “limite” – postura marginal e silhueta profundamente arcaica – onde suas palavras encontram incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação. Entre eles abriu-se o espaço de um saber onde, por uma ruptura essencial no mundo ocidental, a questão não será mais das similitudes, mas das identidades e das diferenças.

Se nesses espaços liminares, no pensamento de Foucault, é possível encontrarmos com figuras como Cervantes e Velasques, ou com personagens como o louco e o poeta, também nos deparamos com um espaço em que os próprios pensamentos fervilham. Talvez, seja possível reconhecer nesses espaços pontos de intensidade entre a vitalidade problemática24 e a relação com a literatura. Marcas ou registros de um pensamento heterotópico. É desses espaços que Foucault indaga o próprio limite, “pretende-se traçar uma divisória? Todo limite não é mais talvez que um corte arbitrário num conjunto indefinidamente móvel” (Idem, p. 68-

24 Canguilhem, como já apontamos anteriormente, se refere a uma vivacidade filosófica de Foucault.

Canguilhem (2012, p. 21) vê em Foucault uma “originalidade objetiva”, por se colocar numa encruzilhada de disciplinas, para tratar da questão da linguagem na epistémê da Idade clássica. No entanto, foi também “necessário esse élan de originalidade subjetiva que nem todos possuem”.

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