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O mundo dos infames

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Será possível reconhecer ainda um pensamento heterotópico nas investigações foucaultianas? Teremos que percorrer caminhos outros, não mais na arqueologia foucaultiana, em busca dessa heterotopologia, essa ciência dos espaços absolutamente outros que para Foucault estava porvir? Teríamos que começar reconhecendo que a perda do lugar da literatura nos escritos de Foucault anuncia um pensar completamente outro em relação ao que se encontra em sua arqueologia? Talvez, seja possível perguntar a partir dos diferentes problemas colocados por Foucault em relação à linguagem, à loucura, ao corpo e ao saber, se os seus sucessivos e constantes deslocamentos, sua permanente mobilidade, não seriam espaços de formigamento, de fervilhamento, de sua vitalidade problemática?

Se as heterotopias se caracterizam pelas relações, as vinculações, entre certo fascínio de Foucault pela literatura e sua atitude de permanente problematização, poderíamos, em um primeiro momento, considerar que o pensamento heterotópico é característico da arqueologia. Dessa forma, não seria possível localizarmos esse pensamento do contraespaço, ou do espaço outro, na genealogia. Numa outra perspectiva poderíamos considerar que a literatura permanece em Foucault de uma maneira outra, mais silenciosa, “numa outra dimensão”, como pensa Ribeiro (1985).

Talvez, seja possível considerar que Foucault não abandona inteiramente o problema da literatura. A presença de Sade na História da Sexualidade seria um exemplo dessa

permanência. Outros exemplos poderiam ser mencionados, como as Jóias indiscretas de Diderot, também na História da Sexualidade, ou a breve discussão sobre a literatura e o crime em Vigiar e Punir. No entanto, para Ribeiro (1985, p. 27), essa relação do pensamento foucaultiano com a literatura, é pensada como uma estratégia da escrita de Foucault e visaria “preparar a construção de um outro tipo de discurso. Um discurso cujo traço essencial talvez seja, justamente, o de ser diferente – o de ser inesperado, o de aparecer sob a forma do talvez”. Estaríamos aqui frente-a-frente com o Foucault pós-arqueologia, um Foucault voltado para a genealogia, voltado para os discursos “como aparelhos de guerra, estratégias de poder”. Talvez, outra hipótese, seja a possibilidade de pensar essa relação a partir de certa dramaticidade, que se encontra presente tanto na escrita, quanto no pensamento de Foucault. Ribeiro (1985, p.26) se refere a uma boa coreografia, uma ordenação cênica, em que “cada personagem introduz-se, fala e sai; a sua deixa tem hora marcada, e nesta se esgota”. É o que referimos anteriormente como uma opção de Foucault a certa “dramaturgia do real”. No que se refere à escrita podemos tomar a entrevista de Foucault a Claude Bonnefoy, de 1968, como uma expressão de uma ética da escrita voltada para a “densidade” e “espessura” de nossa percepção. Foucault (2016, p. 69) afirma que não é um escritor e que a escrita, tal como a pratica,

[...] o ínfimo trabalho que faço todas as manhãs, não é um momento que deve permanecer erigido sobre seu pedestal e se manter de pé a partir de seu próprio prestígio. Não tenho de modo algum a impressão, nem mesmo a intenção, de fazer uma obra. Tenho o projeto de dizer coisas.

Foucault (Idem, p. 69) coloca o seu “modesto” projeto de escrita como “o projeto de presbita”, “de fazer aparecer o que está próximo demais de nosso olhar para que possamos ver, o que está aí bem perto de nós, mas que nosso olhar atravessa para ver outra coisa”. Foucault estaria interessado na “densidade” e na “espessura” daquilo que habitualmente experimentamos como transparente, o que “orienta o campo geral de nosso olhar e de nosso saber”.

Vaz (1992, p. 28), ao discutir a recusa de Foucault em ser um autor, ou um fundador de discursividade, lembra que ele queria que seus livros fossem usados como armas de luta, “a memória que desejava era de alguém que lutou com as armas de que dispunha; sua sobrevida, a presença do seu discurso para além dele mesmo, determinadas pelas resistências que fazemos ao que existe. Nos aproximamos da infâmia”. Foucault declara-se próximo aos infames. Nessa aproximação “o discurso é uma arma” e “quer ser mortal com o que existe”. Na leitura de Vaz (1992, p. 29), “dirigi-se contra nossas mais doces verdades, os poderes que

aceitamos, as identidades que pedimos. E para matar, ele também deve se expor a morte, ou ainda, o sacrifício de si mesmo é o motivo pelo qual se escreve”. Podemos destacar ainda da leitura de Vaz (1992, p. 29) que “a infâmia tem uma articulação diferente entre esquecimento e memória: seu renome só se dá na luta contra o poder”. Dessa forma, a apropriação das idéias de Foucault não seria possível abstendo-se ou obliterando-se a sua nocividade. Talvez, seja necessário colocar-se em risco, conforme a acertada referência de Blanchot sobre o arqueólogo como o homem em perigo.

Poderíamos, enfim perguntar, se a aproximação de Foucault com o mundo infame não seria uma intensificação de seu pensar heterotópico, intensificação da vitalidade problemática e da relação com a literatura? Faz-se necessário lembrar com Ribeiro (1985, p. 25) que “nenhuma outra obra de Foucault exibe igual fascinação pelo literário\artístico” como As

palavras e as coisas. Talvez, perguntar se não há na arqueologia foucaultiana uma espécie de mise-en-scène para o mundo dos infames? Não seria o anúncio da morte do homem, a ruptura

na experiência clássica da loucura entre o pensamento trágico e o pensamento crítico, a (In) visibilidade do corpo na experiência clínica e a diluição ou anonimato do sujeito no discurso, essas afirmações inadequadas aos diferentes humanismos, um tanto infames? Não seria o próprio fascínio de Foucault pela literatura, (sua aproximação a Sade, Artaud ou Cervantes) e sua vitalidade problemática (sua insistência com as perguntas em detrimento a certa “negligência” com as respostas) um tanto infames? Talvez, seja necessário transitarmos um pouco mais no mundo dos infames frequentado por Foucault, esses espaços ou contraespaços, esse “outro mundo”, onde “desordens insignificantes ou desgraças tão comuns são convocadas todo o poder das palavras e através delas a soberania do céu e da terra” (FOUCAULT, 2012, p. 207).

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