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CAPÍTULO III – DEMOCRACIA, LEGALIDADE TRIBUTÁRIA E HIERARQUIA

3.3. Hierarquia e legalidade

No regime jurídico brasileiro as normas constituídas mediante um processo legislativo são as que ostentam maior grau de elemento centrífugo em seu procedimento, que pode ser medido em dois sentidos distintos.

Por um aspecto estritamente procedimental, a aprovação de normas legislativas envolve um encontro de várias vozes – mais vozes do que as que se manifestam em discussões de órgão colegiais de outros Poderes – em posições nitidamente dialógicas – ora de harmonia, ora de refutação –, que devem obter, afinal, um consenso que leve a formação de agente enunciador habilitado pelo direito.

Nessa disputa procedimental, as forças políticas do país – centradas em dois grandes blocos, a saber, situação/oposição – manipulam os instrumentais competentes para a tomada de decisões: as normas jurídicas. O procedimento é empiricamente centrífugo, mas há um resultado prevalecente, de uma única voz: um enunciador.

O caráter centrífugo é sentido, também, pelo elemento simbólico da decisão tomada pelo Poder Legislativo: simboliza, mediante um signo de lei, a vontade do povo. Quanto mais indiciário esse caráter, ou seja, quanto mais apontar para um estado de coisas que, para seu interpretante, é uma realidade, talvez, quem sabe, mais democrático seja o regime jurídico. O caráter indiciário desse signo seria medido pelo voto – que é um índice da vontade de um eleitor de que determinado representante seja eleito –, de modo que esse símbolo, enquanto terceiridade, não exclui a secundidade. Sistemas que criam “recalls” e outros instrumentos tornam-se mais vivos, nessa relação. Por vezes, contudo, outros elementos indiciários relevam contrastes, como as diferenças de votação no Congresso e de uma pesquisa de opinião sobre determinado ponto. Para um dogmático, como nós, esses outros índices, que não criados pelo próprio sistema, são desconsiderados.

Se o símbolo caracteriza-se pela semiose, de um objeto, um representamen e um interpretante, tal que o representamen conecta o objeto àquele interpretante; e se, grosso modo, o símbolo é o signo convencional de um algo que representa outro algo, ou seja, é assim por uma lei, e, se ainda é o caso que o Poder Legislativo é composto por um alguém que representa outro alguém, de modo que a decisão por ele tomada é tida como representando a decisão que seria tomada por esse outro alguém,141 podemos inferir que a autoridade legislativa é um signo que está no lugar de seu objeto, ou seja, o Povo. Não está no lugar em todos os seus aspectos, mas, apenas no seu fundamento – fundamento do signo, que é o voto. Sua vontade, portanto, é um signo da vontade do povo e a toma como seu objeto. Tratando sobre o tema, CLARICE DE ARAÚJO assim enuncia:

Nas democracias, o caráter convencionalmente da imperatividade jurídica reside justamente no teor do correlato princípio democrático, o qual prescreve que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos. Ou seja, o próprio Direito Objetivo ou vigente resulta de uma representação! O respeito às eleições legitima e confere caráter imperativo para as leis produzidas e aprovadas pelo Poder Legislativo.142

Portanto, naquele processo semiótico do veículo introdutor, a que já nos reportamos, se norma introdutora é um signo complexo, tendo como um dos objetos a vontade de uma autoridade, essa vontade é signo que tem como um outro signo, que é a vontade do povo. Para o seu interpretante, portanto, há outro argumento jurídico, no sentido de que “dada a vontade expressa no ato legislativo, então, essa é a vontade do povo”. Por isso que a representação é uma representação de lei e é nesse sentido que, muitas vezes, a Constituição toma esses veículos legislativos, como veículos de leis, em sentido amplo.

141 Para Canotilho, a representação democrática significa: “a autorização dada pelo povo a um órgão

soberano, institucionalmente legitimado pela Constituição (criado pelo poder constituinte e inscrito na lei fundamental), para agir autonomamente em nome do povo e para o povo”. (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. 4. reimp. Coimbra: Editora Almedina, 2003, p. 293).

142 ARAÚJO, Clarice Von Oertzen. Fato e evento tributário – uma análise semiótica. In: SANTI,

Eurico Marcos Diniz de. (coord.). Curso de Especialização de direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005..

Havemos de considerar, nesse contexto, que, sendo as outras normas do sistema motivadas mediante esses signos de leis, em qualquer fenômeno jurídico que travarmos contato, estaremos aptos a reconhecer, nele, uma manifestação simbólica da vontade do povo. Efetivamente, por um lado, a norma legislativa tem como objeto, um ato de vontade, que é signo, por sua vez, dos desígnios do povo; por outro, como já assinalado, as demais normas que dela retiram fundamento de validade – ou melhor, que estão aptas a assim serem reconhecidas – operam no papel de interpretantes delas. Nesse sentido, se observamos o sistema de baixo para cima, examinaremos um processo de semiose, que tende para um interpretante final que denominaremos “vontade simbólica do povo”. Eis um prisma semiótico do regime democrático143.

Se assim é, a decisão legislativa (ou decisões), que está à esquerda de qualquer ato decisório não legislativo, é aquela que pressupõe a não submissão do povo a uma decisão que lhe seja imposta sem consentimento, ou melhor, de procedimento centrípeto. E se, de fato, é assim e se o regime democrático é aquele em que o Poder emana do Povo, e se aceitarmos a conclusão de que o regime brasileiro é democrático, partiremos de uma hipótese abdutiva que julgamos, provavelmente, acertada, a de que há, pelo menos, alguma e, provavelmente, algumas, normas já criadas pelo Poder Legislativo, que são hierarquicamente superiores a todas as demais constituídas, mediante procedimentos não simbolicamente centrífugos – aqueles cujos legissignos que se referem ao o evento- procedimento não revelam um procedimento com participação simbólica do povo. Tentaremos submeter essa hipótese a um teste empírico, a partir de critérios concretos do ordenamento jurídico, para verificar se é o tipo de hipótese que o pragmatismo permitiria adotar.

143 Nesse contexto, na escala do ordenamento jurídico, toda autoridade atua, em última análise,

como representante do povo, embora mediado pelo Poder Legislativo. PAULO DE BARROS CARVALHO assinala que “O ser ´República Federativa´ é pretender uma forma de governo na qual o povo, soberano, investe seus representantes em funções de poderes diferentes. No modelo atual, são eles tripartidos em: legislativo, executivo e judiciário.” (Direito Tributário, Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Editora Noeses, 2008, p. 274).

3.4 Teste empírico

Poderia alguém reputar como óbvio, ou inútil, o raciocínio acima exposto, argüindo que não se trata de uma informação – no sentido em que a teoria da informação concebe ao signo, ou seja, como uma novidade – a idéia de que normas legislativas são hierarquicamente superiores às normas provenientes de instrumentos ditos secundários. Mas, ainda que incorramos nesse risco – embora pensemos que seja um tipo, apenas, mediano de risco –, a importância desse primeiro critério para configuração do estudo hierárquico do sistema é de tal ordem, que negligenciar sua exposição de uma forma rigorosa que permita extrair dela todas as suas implicações, ou mesmo, o ato de se omitir de comprovar, empiricamente, seu cabimento, poderia gerar prejuízos irreparáveis às nossas investigações.

Se a democracia influencia o que denominamos primeiro critério hierárquico entre normas, é verossímil – seria um raciocínio abdutivo que julgamos valioso – acreditar que possa ter importância com relação aos demais critérios – o que buscaremos verificar empiricamente nos demais casos.

Pois bem. Os veículos introdutores criados pelos denominados processos legislativos estão previstos no artigo 59 da Constituição da República e são os seguintes: (I) a emenda constitucional; (II) a lei complementar; (III) a lei ordinária; (IV) a lei delegada; (V) a medida provisória; (VI) o decreto-legislativo; (VII) a resolução.

Eles exercem uma competência importante em nosso ordenamento que é o de falar às autoridades administrativas144, judiciais e privadas, o que for permitido pela Constituição145.

144 Habermas sustenta que “o princípio da legalidade da administração esclarece o sentido nuclear

da divisão dos poderes. Superando uma diferença funcional, que se explica a partir da lógica da argumentação que introduz uma diferença entre fundamentação de normas e aplicação de normas, a diferenciação institucional que se expressa na constituição de poderes tem por

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