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4 As Hipermulheres: documentário radical ou a ficção como colaboração

4.2 As Hipermulheres Itão Kuegü

Depois de grandes articulações internas para que se realizasse a festa do Jamurikumalu, que não ocorria de forma completa entre os kuikuro desde 1981, o ritual foi registrado em setembro de 2010 com recursos de um edital de salvaguarda do patrimônio imaterial brasileiro, em prêmio concedido pelo Iphan. O filme As Hipermulheres foi uma realização a partir destes registros diretos do ritual e incorporou outras encenações no estilo

auto-mise-en-scene (Comolli, 2010), em regime compartilhado com o antropólogo Carlos Fausto – que elaborou o projeto – e o Coletivo Kuikuro de Cinema em parceria com o Vídeo nas Aldeias. A direção de fotografia e de set é do já então experiente realizador indígena Takumã Kuikuro, com pesquisa e mediação de Carlos Fausto e montagem de Leonardo Sette, do VNA, responsável pela oficina de edição. Os três assinam coletivamente a direção. A edição final data de 2011, ano de lançamento do filme, arrastando, de imediato, prêmios importantes, como o prêmio especial do Júri e melhor montagem no Festival de Gramado, prêmio de melhor som no Festival de Brasília, entre muitos outros em seguida , além de 75 inúmeros convites e seleções de importantes festivais . 76

O filme é divido em duas partes, conforme bem já analisou Migliorin (2013): a primeira é sustentada por recursos de ficção clássica, como decupagem de planos, diálogo marcado, narrativa linear e controle de espaço-tempo para favorecer a ponto de vista privilegiado do espectador; na segunda, o documentário entra na própria festa em si, nos preparativos do ritual Jamurikumalu, com a corporeidade de uma câmera participante que vê por dentro, ágil e precisa nos movimentos de acompanhar as danças e cantos, “dançando junto”, vibrando e fluindo na visualidade do ritual.

A aldeia se põe a dançar e o filme é levado junto. Certa rigidez na filmagem e na montagem que vimos no início desaparece em prol de uma câmera fluida, embalada pela dança e liberta da dureza do plano e do contra plano. Se no início o cinema deveria ser aprendido, domesticado para poder documentar, em um segundo momento, cinema e festa fazem parte de um mesmo movimento. A câmera parece não querer mais narrar algo, como se

Festcine Goiânia, 2011 – Prêmio de melhor longa-metragem documentário; 2012; Olhar de Cinema, Curitiba,

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2012 – Prêmio de Melhor Filme (Júri oficial), Prêmio da Crítica – Associação Brasileira do Críticos de Cinema (Abraccine) e Prêmio do Público, junho, 2012; Hollywood Brazilian Film Festival, junho, 2012 – Prêmio de Melhor Longa-metragem Documentário; FICA – Festival Internacional de Cinema Ambiental, Goiania, 2012 – Prêmio de melhor filme pelo Júri Popular e Troféu Imprensa; V Festival de Cinema de Triunfo, Prêmio Menção Honrosa, agosto, 2012; VLAFF – Vancouver Latin American Film Festival, setembro, 2012 – Prêmio Al Jazeera de Melhor Documentário. Fonte: Vitrine Filmes. Em: http://www.vitrinefilmes.com.br/site/?page_id=2539

Semana dos Realizadores (RJ), 2011; Janela Int. de Cinema do Recife, 2011 – Filme convidado; Amazônia

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Doc, 2011 – Sessão de Encerramento; Forumdoc.bh, 2011 - Sessão de Abertura; Mostra do Filme Etnográfico (RJ), 2011 – Fora de Competição; International Film Festival Rotterdam – Official Selection (Bright Future section); World Cinema Amsterdam, agosto, 2012; Australian Anthropology Society Conference, setembro, 2012; Panorama Coisa de Cinema, em Competição, outubro, 2012; Rencontres Internationales du Documentaire de Montréal, Seleção Oficial em Competição, novembro, 2012; Leeds International Film Festival, Reino Unido, novembro, 2012; Festival Filmar en América Latina, Genebra, Suíça. Fonte: Vitrine Filmes. Em: http://

www.vitrinefilmes.com.br/site/?page_id=2539 


dominasse a narrativa, mas é, ela própria, levada pelos movimentos que o filme instaurou, com a festa. (MIGLIORIN 2013: 284)

A divisão em duas partes de Migliorin segue um critério acertadamente estético, assentado nos modos de representar, mas que não se atêm à estrutura narrativa como um todo, “diegética”, que o filme parece se valer. Do ponto de vista dramatúrgico, todavia, verifica-se que As Hipermulheres segue uma curva dramática tradicional do início ao fim, com todos seus elementos essenciais: estruturalmente, a primeira parte (“modo” ficção clássica) é composta pela introdução que apresenta os elementos-chave (ambientes, personagens, temática e conflito) e parte do desenvolvimento da trama, até o primeiro plot point. Na segunda parte do filme (“modo” documentário performático), prossegue o desenvolvimento da trama, até o segundo plot point e o clímax, com desfecho marcado por uma volta ao modo ficcional do início, alinhando esteticamente abertura e encerramento.

Em termos propriamente de conteúdo, pela via da análise da narrativa [spoiller], a introdução consiste nas primeiras articulações para a realização da festa, apresentando sua dinâmica particular de personagens, inter-relações e demandas: o pajé/ xamã ancião (ngiholo) aciona o “dono da festa” para que as cantoras ou mestres de canto (eginhoto) possam realizar a festa do Jamurikumalu, mas os “espíritos” (itsake) aprisionaram a saúde de Kanu, única mulher apta na aldeia a cantar e assumir o ritual; menstruada, Kanu não pode ser curada pelo xamã e a medicina do homem branco (kagaiha) e suas injeções têm que ser convocadas de emergência. O conflito dramático é posto e, então, encerra a introdução: será que Kanu (a protagonista) irá se curar? Será que a festa ritual (trama) irá acontecer?

No desenvolvimento da trama, Kanu é atendida pelo xamã e esboça melhoras (primeiro plot point ou “ponto de virada”), as mulheres da aldeia passam a se interessar em aprender o ritual e os homens mais velhos passam a “receber” os cantos (mas não podem ritualizar), enquanto as jovens os esquecem. Kanu melhora e põe-se a ensaiar com as mulheres jovens. A sub-trama é então tecida pelos elementos de cultura Kuikuro que compõem a cosmologia do Jamurikumalu, em que o teor dos cantos dá o tom narrativo das sequências. É o caso, por exemplo, das sequências do banho coletivo feminino, da paródia da dança feminina feita pelos homens, do ataque feroz das mulheres (seriam já as

hipermulheres? ) em represália à paródia dos homens, da mangação do velho de “pinto 77 pequeno e murcho”, entre aspectos mais sutis: a ação em si é da ordem da performance coletiva em auto-mise-em-scene, corporalizando e empregando dinâmica espacial às narrativas que os cantos evocam.

O segundo plot point marca a passagem do desenvolvimento ao clímax, com a força que o ensaio geral do ritual ganha após o ataque noturno das mulheres. Sim, ao que tudo indica, a festa irá acontecer, mas subjaz a tensão em suspense. Do primeiro ao segundo “ponto de virada”, da melhora de Kanu até o ritual, o filme intensifica a qualidade performática e a potência estética da dança, em que cantos e corporeidades tornam-se plenos e unos em relação à câmera: a imanência de espíritos e sutilezas invisíveis dá lugar a um “estado de presença” através da visualidade física que o olhar de Takumã permite adentrar. O clímax, claro, é a apoteose da realização do Jamurikumalu, em um plano-sequência tão memorável quanto os de Orson Welles, Tarkovski ou Bresson.

No desfecho, de retorno ao modo estético da ficção da primeira parte, a anciã ensina os cantos a uma menina, que os repete atenciosamente. O ciclo, então, é concluído: o ritual agora é ensinado para as jovens, que irão um dia reviver o drama d’As hipermulheres. O processo foi, enfim, bem-sucedido. No entanto, esta simples análise de narrativa, talvez um tanto “selvagem” se levada em conta as complexidade da cultura Kuikuro, não deve ser sobreposta à riqueza de detalhes, da sutileza dos sentidos dispostos em um complexo jogo de rizomas, que trazem informações preciosas sobre a cosmologia Kuikuro, deixada na maior parte das vezes na imanência, não-traduzida para os brancos, para os não-falantes do idioma kuikuro.

Aqui o intuito é fazer notar como a estrutura dramática clássica de ficção capturada pelo documentário (ao modo de Nanook, o “primogênito”) serviu ao modo de produção colaborativo, num gesto de registrar e atualizar a cultura Kuikuro. O filme encena uma grande performance coletiva de um projeto maior, do qual faz parte, sendo uma de suas etapas: o longo processo de busca e defesa da auto-identidade Kuikuro. A ficção modela e dá forma

Na bela dissertação de Bernard Belisário (2014a) dedicada à análise do Oilme – que, infelizmente, tive

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contato somente nos pontos Oinais desta dissertação que ora concluo – o autor aOirma que sim: o ritual do Jamurikumalu já havia começado como preparativos para a festa em si, de modo que aquelas eram as míticas hipermulheres registradas pelo CKC. Em: BELISÁRIO, Bernard. As Hipermulheres: cinema e ritual

entre mulheres, homens e espíritos. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social – PPGCOM/UFMG: Belo

estética a relações sociais concretas, performando-as, em que a introdução e o desfecho encenam a articulação e suas dificuldades para a realização da festa que, após, realizada, tem garantida a continuidade do ritual. Em certo sentido, representam também o processo de criação compartilhada do filme – e sua intervenção cultural, por outro lado cumprindo a ação de salvaguarda patrimonial prevista como objeto do edital do Iphan.


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Figura 35: Frame-still de As Hipermulheres. Ensaio da festa do Jamurikumalu.

Em As Hiperulheres, uma ficção clássica estrutura um documentário performático. Mas esta seria uma operação prevista, “roteirizada” e objetivamente marcada no gesto dos realizadores ou seria mais uma solução processual para situações que vieram a surgir na produção? Seria tudo ficção, com suas ações manipuladas; ou tudo performance, com vontade de potência individual exposta em tensões saindo mais ou menos do controle?

Acredito, a princípio, que estes são modelos (formas) e não formatos sedimentados (fôrmas), que, no caso, foram misturadas e sobrepostas ao ponto de refigurar uma representação; mas só os realizadores do filme poderiam responder de fato. E Takumã o faz, na narrativa que gentilmente cede em entrevista a esta pesquisa. A pergunta se justifica, contudo, pela investigação dos modos de produção e dos processos de criação, que envolveram uma hiper dedicação entre os Kuikuro e seus parceiros, mas também no sentido da análise (pós) estrutural de narrativa e do diálogo da obra com seu público. 


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