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Capítulo 3 – Vozes e reflexões: análise dos dados coletados

3.1. As vivências da infância: a menina negra no contexto familiar e escolar

3.2.2. A hipersexualização da mulher negra

“Falam das mulatas, que estão no céu porque as mulheres negras são mais quentes e nossa, eu detesto esse tipo de comentário!” 28.

Mais um dos resquícios do nosso passado colonial reforçado por uma ideologia machista e racista refere-se à hipersexualização da mulher negra. O estereótipo da sensualidade da mulher negra nada tem de valorização destas mulheres, pois na maioria dos casos elas são vistas e tratadas como mercadoria.

Há então, uma representação social do corpo da mulher negra associado a questões da sexualidade e sensualidade. Conforme nos aponta Nogueira (1999), ao analisarmos a representação social do corpo conseguimos compreender a estrutura de uma sociedade, pois o corpo humano, além de sua formação biológica, forma-se e transforma-se por meio da religião, grupo familiar, classe, cultura e outras intervenções sociais, cumprindo assim uma função ideológica. Relacionando essa construção social do corpo com aspectos de natureza étnico-racial, concordamos com a autora que o corpo negro

[...] socialmente concebido como representando o que corresponde ao excesso, ao que é outro, ao que extravasa, significa, para o negro, a marca que, a priori, o exclui dos atributos morais e intelectuais associados ao outro do negro, ao branco: o negro vive cotidianamente a experiência de que sua aparência põe em risco sua imagem de integridade (NOGUEIRA, 1999, p. 43).

Neste sentido a autora traz que a mulher negra encontra-se aprisionada em alguns lugares: a sambista, a mulata, a doméstica o que é herança de nosso passado histórico.

Nos relatos das mulheres colaboradoras, percebemos que muitas delas se incomodam com comentários sobre seus corpos, já que por serem negras são vistas como mais “quentes” e com maior potencial para o sexo. Quando se divulga essa imagem, a mulher negra é vista e valorizada somente por estas perspectivas e não há valorização de sua subjetividade nem de seus sentimentos.

Eu saia e um monte de caras queria ficar comigo, me conhecer, falavam "Quem é essa morena?". Porque querendo ou não é diferente, você chega no meio de uma roda de meninas brancas do cabelo liso; aí chega uma negra peituda com corpão, eles vão olhar e pensar "Nossa, que morena". Então acho que daí eu comecei a me aceitar e elevar minha autoestima, ver que eu era uma menina bonita, que tinha caras que queriam ficar comigo (Monalisa).

Considero uma mulher diferente, porque quando eu saio com as meninas aqui de casa, aqui eu sou a única negra, então eu sou a morena da roda. Sempre escuto "nossa e essa morena", "o morena";

então eu não sou igual a elas, mas eu não sou menos bonitas do que elas. Cada um tem a sua beleza, e eu sou bonita igual a elas (Monalisa).

Nas falas de Monalisa percebemos que este desejo que os homens têm do seu corpo é visto por ela como algo positivo, e ela o utiliza para melhorar sua autoestima. Concordamos que em muitos casos, quando a mulher negra é uma das únicas em um espaço, ela pode sim chamar a atenção e isto pode ser uma ação positiva. Porém, o que percebemos é que neste mesmo espaço nos quais Monalisa relata se sentir bem com esses elogios e esse “desejo” dos homens, ela também já se sentiu excluída e com sua beleza negada e satirizada.

Lembro uma vez que fui numa república, com umas amigas que conheciam os meninos, e eu li na parede deles assim "Eu nunca comeria uma menina de cabelo crespo", nossa fiquei muito brava na hora, pensei que aquilo era ridículo. Mas eu nunca tive nenhum problema em relação a isso (Monalisa).

O que ela leu na parede de uma casa de estudantes universitários marcou sua vida e está ainda em suas lembranças, por isso não acreditamos que ela não teve problemas em relação a isso. Essa questão do corpo da mulher visto como objeto é muito nítido nesta situação. São garotos com nível universitário que frequentam lugares nos quais a temática deveria ser muito bem discutida, escolhendo suas parceiras sexuais por questões estéticas associadas à negritude e que desvalorizam.

Quando pensamos nessa representação do corpo da mulher como objeto, a situação se agrava quando se trata da mulher negra. Pacheco (2008) realiza sua pesquisa de doutorado buscando compreender como gênero, raça e outros marcadores sociais operam nas trajetórias sociais e nas escolhas afetivas das mulheres negras e como essas pensam sobre as experiências da solidão. A autora sugere que raça e gênero, quando combinados, constituem- se como marcadores sociais que afetam mais as mulheres negras do ponto de vista de sua exclusão afetiva-sócio-cultural do que outros grupos, e confirma tal hipótese com pesquisas realizadas sobre a situação das mulheres negras na Bahia e no Brasil, nas últimas décadas.

Torna-se difícil não reconhecer como os discursos de ideologias raciais e de gênero são estruturantes e ordenam um conjunto de práticas corporais racializadas vividas pelo gênero, na sexualidade, no trabalho, na afetividade e em outros lugares sociais que são

“destinados” às mulheres negras, na Bahia e no Brasil (PACHECO, 2008, p. 12).

A autora nos mostra que há representações sociais sobre mulheres negras que as associam ao mundo da natureza, devido às suas características físicas e biológicas “animalescas”. Baseada em Munanga, ela nos mostra que foi nos corpos das mulheres negras escravizadas no Brasil e em outros países que tais ideologias raciais foram perpetradas.

Nas falas das mulheres colaboradoras, percebemos seus incômodos e indignações quando são analisadas e subjugadas pelos seus corpos, que são estereotipados socialmente como mais sensuais ou com melhores desempenhos sexuais.

E aí quando você escuta alguns brancos falarem, é tipo desejando, a mulher negra que é muito bonita eles veem como prostituta, eu percebo que eles veem assim, e eu não sei mesmo quando isso vai mudar (Irene).

O corpo da mulher negra quando bem cuidado é muito lindo. Infelizmente também, a gente sabe que muitas, por ter o corpão, levam para o outro lado. Tem a questão da mulata, quando fala em mulata já pensa naquele mulherão que é pra que? Infelizmente né? Então se é aquela mulata, linda, gostosa, o pessoal acha que é pra outra coisa, eles olham como mercadoria (Irene).

Nossa, mas como isso é engraçado né, o branco quer ficar na dele lá, acha que você é uma raça inferior, mas como pode ter tanta mistura? Eles falam que não gosta, mas como mistura? Tem uns que casa com a mulata, porque acha ela tão linda que casa, mas eu acho que a maioria acha que é um artigo né? (Irene).

E eu odeio que me rotulem como mulata, eu odeio. Então você quer ver eu ficar brava, é eu chegar num lugar e as pessoas querem me chamar de mulata, ou quererem falar assim: “eu gosto das pretas porque as pretas são mais quentes”. Isso me deixa mordida, porque, infelizmente, a gente vive numa sociedade de rótulo. E criaram rótulos em cima de nós e não há meio desses rótulos serem quebrados, então eu acho que tem muito que se trabalhar (Thulany). Tem um barzinho aqui que chama Toca da Crioula, e está sendo frequentado por muitas pessoas brancas, então a gente chega e

parece que é novidade, e as pessoas querem te oferecer bebidas, comprar você com bebidas, falam das mulatas, que estão no céu porque as mulheres negras são mais quentes. Nossa, eu detesto esse tipo de comentário, principalmente porque quando você começa a entender um pouco mais de história, você vê que os fazendeiros faziam isso com as escravas, saiam com elas, transavam com elas (Thulany).

Gomes (2010) desenvolve uma pesquisa objetivando analisar o imaginário social que existe em torno do Brasil como um paraíso de mulatas, bem como a relação do turismo com esse imaginário. A autora parte do entendimento deste imaginário como uma construção discursiva que articula construções e disputas em torno da identidade nacional, racial, de gênero e sexualidade. A autora também mostra essa questão da associação da mulher negra e mulata à natureza e ela acrescenta nos mostrando que há um imaginário que as considera e as vende como parte da paisagem brasileira, como paraíso.

Nesse paraíso Brasil, a mulata começa a se destacar como atrativo para diferenciar o paraíso Brasil de outros destinos construídos como paradisíacos. O imaginário de brasilidade deve ser reforçado para que o Brasil se torne destino turístico, assim a fusão entre mulher e natureza na comercialização do paraíso, deve ser reforçada com a fusão de mulher e cultura, com a comercialização da mulata. Assim, o Brasil se torna um paraíso de mulatas, onde natureza exuberante, mulheres sensuais e mestiçagem, fundem-se na figura da mulata (GOMES, 2010, p. 54).

A autora enfatiza que a mulata é “construída como síntese da miscigenação sexual e racial, como erótica, disponível, alegre, cheia de ginga” (GOMES, 2010, p. 68). Desta forma sua imagem se relaciona a uma identidade de gênero que leva a crença de que esta mulher é hipererotizada e disponível ao homem branco.

O que percebemos é que a supererotização do corpo da mulher negra é mais um dos estereótipos que objetivam diminuí-las e violentá-las. É necessário desconstruir o imaginário social da mulata erotizada para que socialmente a mulher negra seja reconhecida e valorizada pelas suas subjetividades, sua cultura e sua capacidade intelectual.