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A história e a construção dos sentidos: a relação entre público e Estado

2 A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DE PÚBLICO NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

2.2 Condições de produção: o discurso significando pela história

2.2.1 A história e a construção dos sentidos: a relação entre público e Estado

O processo de significação é, como vimos, um processo que envolve língua, sujeito e história, em que o peso e as interpretações dadas a cada uma dessas esferas podem resultar em diferentes maneiras de compreendê-lo. Dessa forma, abordar o sentido de elemento linguístico específico – neste caso, a palavra público – nos impõe a tarefa de aprofundar essa relação.

Entender como se misturam, hoje, as diferentes acepções de público na sociedade brasileira passa necessariamente pelas elaborações ideológicas em torno dessa palavra, proporcionando construções distintas. O público, funcionando como adjetivação dos mais diferentes substantivos, não se estabelece e se dicionariza por épocas, mas é, antes disso, uma construção necessária – e por vezes não perceptível – de uma realidade a qual a palavra integra. Estabelece-se, assim, um deslocamento que proporciona aos sujeitos sentidos que dialogam e divergem, possibilitando enfrentamentos ou adequações.

Sendo assim, o processo de deslocamento do sentido não é linear nem determinado por si próprio, passível de descrições históricas específicas (na antiguidade, público era...; hoje, é...). Ao mesmo tempo, a história, como processo dialético, é fundamental para que possamos compreender essas concepções criadas em contextos distintos e que, no interior mesmo das manifestações da língua, vão encontrando associações que lhe permitem significar diferentemente.

Decerto, as ideias de público construídas ao longo dos tempos e presentes na atual conjuntura histórica – na qual emergem os discursos que nos dispomos a analisar – encontram-se na origem das elaborações teóricas acerca da organização social através do Estado, especialmente do Estado capitalista, como defendem Silva Jr. e Sguissard (2001). Esses autores, recorrendo a clássicos do liberalismo, especialmente John Locke, mostram que a ideia de público para os liberais não se constrói em oposição ao privado, visto que o direito à propriedade é regulador desse pacto social, juntamente com o direito à vida e à igualdade29.

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Como bem mostra Magalhães (2005), o discurso dominante (liberal) da sociedade de classes tem com base de sua significação o silêncio, pois não pode explicitar as contradições que o constitui. A generalização torna-se assim um subterfúgio discursivo que afirma para negar. Nesse sentido, sendo a desigualdade a base dessa organização social, a igualdade refere-se às oportunidades garantidas por essa mesma organização, cuja efetividade é vista como resultado do esforço do indivíduo.

Assim sendo, o público estaria vinculado à sociedade civil e o Estado seria a realização do poder político dos indivíduos – naturalmente em liberdade, racionais e iguais, mas que veem a necessidade do pacto social como forma de preservação dos seus direitos naturais. Há, portanto, uma relação intrínseca entre Estado e público, e o privado “estaria circunscrito ao âmbito das possibilidades de ação dos indivíduos singulares ou considerados como coletivo, porém, em conformidade com o poder legislativo, derivado do público e a ele submetido” (SILVA JR e SGUISSARD, 2001, p.98). O privado estaria dessa maneira englobado pelo público, norteando-o de certa maneira, por meio da própria ideologia que o rege (a individualidade como condição insuperável do ser humano, realizada, nesse aspecto, por meio do direito à propriedade).

Por outro lado, a suposta contradição entre público e privado e as relações estabelecidas entre essas esferas tomam corpo por meio da regulamentação estatal, tornando- se alvo de disputas políticas que englobam diferentes concepções. Sendo o privado da ordem do(s) indivíduo(s); e a igualdade e o direito à propriedade, princípios norteadores do capitalismo, o interesse privado torna-se, também, interesse público, de forma que a contradição é manifestada superficialmente. Assim, trata-se de um discurso legal, aparentemente estável, quando na verdade é movediço e suas significações estão subsumidas aos interesses postos em jogo nos conflitos sociais.

Pêcheux (2006) define esses discursos aparentemente independentes de contradições como “discursos logicamente estabilizados”. No entanto, eles não podem ser entendidos como interpretação de um real que se põe fora deles, pois o constituem em sua complexidade. Ou seja, não há uma ideia de público e uma de privado que possam ser tomados como objeto de estudo para que se sobreponham a formulações “certas ou erradas” dessa realidade. O que há são interpretações desse real, as quais direcionam posturas e ações e indicam caminhos no que concerne à organização social humana na forma de sociabilidade capitalista. Nesse sentido, o discurso liberal é orientador, mas passível de derivas, de equívocos, de ressignificações.

O discurso legal, relativo à regulamentação do Estado, configura-se como aparentemente estabilizado porque “supõe que todo sujeito falante sabe do que se fala, porque todo enunciado produzido nesses espaços reflete propriedades estruturais independentes de sua enunciação” (PÊCHEUX, 2006, p. 31). Esse espaço estabilizado do discurso legal (que engloba o que é público ou não) é tomado pelos sujeitos sociais como algo que vem de fora, determinado de maneira externa a eles, o que fortalece a ideia de que deve ser interpretado por especialistas, como alerta Pêcheux (2006).

O que há, portanto, não é uma definição “legítima” do que é o público em relação ao Estado capitalista, mas a necessidade de que a interpretação legal, a regulamentação, seja entendida dessa forma. Os sentidos de público estariam, assim, certos ou errados, tomando como parâmetro a letra da lei e submetidos a um sentido dominante. No entanto, essa mesma regulamentação legal se altera de acordo com interesses e determinações de ordem socioeconômica.

Cabe então destacar que a definição de Locke para público não é unanimidade dentro da formação ideológica30 na qual se insere, de forma que, a nível mundial, temos outras formas de ver/pensar os espaços públicos. Em uma interpretação hegemônica mais recente, temos a associação do público ao âmbito do Estado e do privado, à sociedade civil. A interpretação tem sua origem no período pós-Segunda Guerra Mundial, sendo denominado de Estado de bem-estar social (SILVA JR e SGUISSARD, 2001).

Essa forma de organização estatal contrapõe-se à proposta de socialismo implementada nos países do leste europeu, e, como forma de evitar conflitos entre as classes, atende a reivindicações sociais a fim de garantir melhoria de vida dos cidadãos. Na tentativa de reestruturar os países após o conflito mundial, responde, portanto, a duas questões específicas: a contraposição a um ideal de igualdade a partir de uma forma de organização societária diferenciada e ao atendimento imediato dos chamados direitos sociais.

A necessidade objetiva de repensar a organização do Estado capitalista a nível micro e macroeconômico ocorreu mesmo antes da 2ª Guerra, com a crise no final da década de 1920 e o crescimento dos sindicatos e pressão do operariado. Essa realidade serve como base para as formulações de John Maynard Keynes, cuja proposta era reformular o capitalismo.

Para Keynes, o Estado deveria assumir uma posição de destaque no planejamento do desenvolvimento econômico e investir recursos em atividades estratégicas que, no final do ciclo econômico, resultassem em melhor qualidade de vida para a população e sustentassem uma situação de pleno emprego. Assim, grande ênfase era dada aos gastos públicos, motor do crescimento. (AMARAL, 2003, p.41, grifo do autor). Com isso, a ideia de público passa a ser atrelada ao Estado, tendo esse um controle muito maior que aquele preconizado nos modelos anteriores. Visto desta forma, o Estado continuava sendo o responsável por manter a ordem social, mas precisou adequar seu papel à conjuntura dada. Importante ressaltar que essa foi (e ainda está presente, em maior ou menor grau, em muitos países) uma realidade dos países desenvolvidos, mas sempre adaptada à realidade de outras nações que não possuíam a mesma força política e econômica. Desta

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maneira, os espaços e serviços públicos eram controlados pelo Estado, mesmo quando não por ele financiados.

No caso da economia, ia-se de encontro às ideias liberais, segundo as quais o mercado se autorregula, já que o Estado intervinha diretamente nessa esfera. A criação de um Fundo Público limitava a ânsia dos capitalistas pelo lucro, obrigando-os ao pagamento de impostos, taxas, contribuições. Além disso, havia ainda as empresas estatais, identificadas com o ideal de nacionalismo visto como necessário para a superação de uma condição exploratória31 dos países centrais.

Com tudo isso, a concepção de que a igualdade (de condições) é possível na organização social capitalista ganha força, e os ideais reformistas conquistam espaço mundialmente, impulsionando movimentos sociais para busca de conquistas junto ao Estado. (SILVA JR e SGUISSARD, 2001).

A garantia de igualdade está, nesse momento, condicionada às conquistas coletivas no âmbito de ampliação dos direitos sociais, autorizando a visão do espaço público como aquele controlado e provido pelo Estado. Essa interpretação ganha ainda mais adeptos com as revelações acerca da condução política nos ditos estados socialistas, implicando a crítica nas e

às forças políticas de esquerda de países em que ainda se buscava efetivar o Estado de bem-

estar social.

Essas duas principais concepções socialmente elaboradas sobre o público no Estado capitalista (neoliberalismo e Estado de bem-estar social) estiveram em confronto já no início da reformulação do Estado pós-segunda guerra, mas naquele momento os governos dos países centrais optaram pelas elaborações keynesianas. Porém, a partir do final da década de 1970, com a crise no Estado de Bem-Estar provocada pela crise do Petróleo e das grandes corporações, ressurgem as ideias neoliberais.

Tais propostas têm como principal mentor o inglês Friedrich Hayek, que, em 1944, lançara o texto “O caminho da servidão”, em defesa da total liberdade de mercado, em que condena a socialdemocracia moderada inglesa à “servidão moderna”. Em 1947, ele e outros intelectuais se reúnem em Mont Pelerin, na Suíça, e constituem uma organização que tinha como objetivo a construção de um capitalismo mais “livre” e sem a “opressão” de princípios solidários. (SILVA JR., 2002)

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No caso dos países de terceiro mundo, essa exploração acontecia por meio dos países capitalistas centrais. Nesses, a exploração seria dos interesses capitalistas privados.

Com o agravamento da crise do capital, empresários passam a culpabilizar o Estado excessivamente forte, opressor e detentor de um Fundo público que, nessa visão, seria o responsável pela crise. Na verdade, a própria indústria já experimentava outras formas de organização (especialmente o toyotismo32) que exigiam novas formas de relação e esbarravam no empoderamento dos sindicatos, de forma que a implementação do neoliberalismo ocorre nas esferas objetiva e subjetiva. A primeira, a partir de ações de governos como o de Margareth Thatcher na Inglaterra33; de Pinochet, no Chile; de Kohl, na Alemanha, Reagan, nos EUA, todos esses entre as décadas de e 1970 e 1980 (AMARAL, 2003); a segunda, especialmente por meio dos sentidos veiculados pela mídia atrelada aos novos princípios preconizados pelos ideólogos do capital.

Essas duas formas têm a função de coibir reações e pensamentos opostos aos rumos defendidos pelos capitalistas para a retomada de seu crescimento, como também de fazer circular novos sentidos sobre os limites entre o individual e o coletivo. Precisava-se desconstruir um ideal de Estado, de público e de direitos sociais, mesmo que relativamente conquistados. Assim, público-estatal passa a ser associado à ineficiência em países onde sequer o Estado de Bem-Estar se efetivou, como o Brasil.