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História de vida como elemento criativo de cena

No documento VERA SOLANGE PIRES GOMES DE SOUSA (páginas 81-87)

GRUPO DE TEATRO DA UNIPOP

2.1 História de vida como elemento criativo de cena

Para Boal (1983), o texto teatral deve ser aberto à intervenção de leitores (texto plural) que o completarão de acordo com seus respectivos imaginários e pretensão de uso. Isso favorece a compreensão não só da realidade, mas, também, do outro, mediado pelo diálogo. De acordo com Baron (2004, p. 41):

Nós começamos a nos tornar do outro na receptividade de nosso sorriso, um convite inconsciente ao diálogo. Nossa consciência de nós mesmos como sendo diferentes de nossa mãe, no entanto, inicia no momento em que começamos a identificar e reconhecer os efeitos de nossas ações no espelho de suas reações [...] Isso nos permite não só ler e imaginar os efeitos que temos sobre os outros, mas também ler, interpretar os efeitos que temos sobre os outros.

Hamlet, um dos primeiros espetáculos da Unipop, mostra como os efeitos de nossas ações no espelho podem fomentar a montagem de um espetáculo, pois, uma obra clássica foi readaptada a partir das histórias de vida dos integrantes do Grupo. Há nele um momento denominado tarefa criadora, o qual precisa ser experimentado. Nessa perspectiva, o Grupo inicia sua experiência teatral com o exercício de criação com os criadores de cena. Pois, a representação sofre ação tanto do ator quanto do espectador. Isso significa dizer que, seja qual for o espaço de representação, é estabelecido um nível de diálogo vivo e revelador de quem representa. “As representações respondem uma necessidade, à medida que sua ocorrência está inscrita na natureza dos homens” (GUÉNOUM, 2004 p.19).

Cada história é única por seu autor, por sua perspectiva artística e pelo horizonte histórico-social em que este está inserido. Entretanto, tem-se que história de vida é, também, uma narrativa na qual se mesclam textos e contra-textos.

O espetáculo Hamlet, o primeiro espetáculo do Grupo de Teatro da Unipop, mostra como um clássico foi readaptado a partir das histórias de vida dos participantes e dos espectadores. Todos são desafiados a criar. Tudo isso é próprio de um tipo de experiência teatral. Mas, na Unipop a diferença se faz pela relação dada com os fatos históricos de cada época em que o processo de criação se dá.

No espetáculo Hamlet, por exemplo, é visível a relação dada à questão social pelo que o país passa. A relação do caos econômico e a metaforização com o caos sonoro proposto pelo Grupo no Porão que traz em pauta o diálogo com a realidade vivida não no sentido de politização da arte. Mas, ressaltando o objetivo proposto pela Unipop, a formação humana para a cidadania.

No espetáculo Hamlet, percebe-se que, ao trazer para discussão as contribuições das histórias de vida, estas apresentam uma variedade de significados que precisam ser valorizados, tal como é possível perceber na figura que retrata a cela de Hamlet. A luz, o olhar do ator remetem o impacto da revelação dos bastidores de seu reinado.

Uma cela escura, um homem desacreditado das descobertas das traições em seu reino. A luz é sombria; o lugar é misterioso; o silêncio é quebrado pelos gritos do homem que se ouve ao longe: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca. Há algo de podre.” Com essas falas o homem fica preso às grades repetindo a fala enquanto percebe que a morte de seu pai foi um plano estratégico para obter o poder no Reino.

Figura 3: Cela de Hamlet

Fonte: Jornal Diário do Pará

A cena descrita, analisada a partir do acervo videográfico da Unipop, compõe o espetáculo Hamlet e, nesse episódio, o criador da cena traz em si a realidade. Suas falas contestam a realidade nacional da corrupção articulando-se com o clássico Hamlet.

Nesse contexto, pude conceber teatro como um texto à procura da representação cênica, da concretização diante de um determinado público. Ele pode, até, ser lido como literatura, mas, a rigor, não é literatura. Sua vocação é a materialização em um palco. Trata-se de um texto “grávido” de representação.

Ao analisar o processo de criação do primeiro espetáculo do Grupo, compreendi que a criação baseia-se, principalmente, na história de vida dos participantes, na relativização dessas histórias, com o texto sugerido e com o tempo da obra inspirada. Para ilustrar tal fato, observemos a notícia abaixo, a qual retrata Hamlet pelo olhar dos criadores do espetáculo: “tínhamos em comum a vontade de fazer um trabalho artístico. A gente pegou Hamlet para ajudar no crescimento de cada um. Tanto que o público é chamado de testemunho”.

A história de vida, em muito, contribui para a elaboração do texto cênico, pois de acordo com Gomes (2006), ela possibilita a articulação entre o texto teatral e o leitor em outra dimensão – a cena fala – e, à medida que isso ocorre, o texto teatral faz com que quem assista

também o interprete de várias formas. A reportagem do jornal A Província do Pará, destaca a experiência do Grupo ao apresentar Hamlet.

Figura 4: Reportagem sobre o espetáculo Hamlet

FONTE: Jornal A Província do Pará

A reportagem evidencia que os integrantes do Grupo percebem a existência conhecimento implícito no fazer artístico. É um conhecimento criador, fazedor, produtor, que pode ser compreendido da seguinte forma:

O teatro leva o leitor sentir a sentir, penetrar na realidade e desenvolver seus conhecimentos, não apenas pela via da razão e da lógica, mas também da sensibilidade, da emoção, das intuições tão importantes quanto à razão, encontramos formas outras de se apropriar do mundo e do conhecimento. Sua leitura é bem mais complexa que a comunicação do texto literário, uma vez que joga simultaneamente com diversos emissores e receptores. (GOMES, 2006)

Assim, compreendo que o teatro expõe como efeito de destaque, elementos educativos norteadores do processo de criação, possibilitando-nos “o tirar das máscaras” e evidenciando como elas foram impostas.

O Grupo, a partir de Hamlet, caracteriza-se como ponto de referência teatral para a categoria artística. As experimentações teatrais, iniciadas com um pequeno grupo de alunos, suscitaram uma orientação e uma dedicação para o teatro, o que gerou na Unipop uma política cultural oriunda da mobilização e democratização da arte, tal como ressalta Aldalice.

A formação através da arte se pensou num movimento de criticidade. Nesse intuito o nosso primeiro projeto “Cala boca já morreu” possibilitou uma ação no sentido de formar, criar elementos a partir de referências de Boal para uma nova política de formação com sensibilidade humana.

Nesse debate, o Grupo destaca-se discutindo várias temáticas, denominadas por ele como “Mote Social”. A cena a seguir, obtida no acervo documental da Unipop, traz para o palco a questão dos 500 anos do Brasil.

Figura 5: O reconhecimento do ser brasileiro por Martim Cerere

Martim Cerere, em posse do descobrimento de um novo mundo torna-se pretendente da índia Uiara. Para convencê-la, presenteia-a com a noite, simbolizada com o fruto do tucumã. A cena foi baseada nos “causos” do interior. Em entrevista ao jornal O Liberal (2000), Olinda Charone, ex-coordenadora do Grupo, afirma que “os próprios atores param em determinado momento o espetáculo para contar esses “causos” que ficaram conhecendo através de seus avós. Alguns até verídicos, mas que se tornaram lendas”.

A cena revela um regionalismo e registra personagens importantes – os avós dos integrantes do Grupo. O processo de montagem de Martim Cerere promove o reconhecimento da identidade amazônica. Na crença dos “causos”, como diz Fares (2007), “a história é contada a partir dos mitos que vão de ‘boca em boca’ registrando a história pelos sujeitos que a narram”. Portanto, percebo que uma montagem pode não ser só um texto, mas deve ser uma maneira de olhar o texto, uma idéia sobre ele, uma concepção.

Ressalto que o ser humano está enraizado às formas de sociabilidade e no jogo das forças sociais, bem como nas rupturas e reorientações com as quais se forma, transforma expande e universaliza a sua realidade. Portanto, não podemos compreender representar como algo imitativo, pois na representação existe um sujeito, e esse, por conseguinte, tem sua ação sobre a representação. Mesmo que busque a verossimilhança, a própria realidade é uma ação contínua do sujeito.

É necessário ressaltar que a ação de representar suscita a criação de conhecimento, pois são construídos elos de busca para a sua compreensão na criação de quem representa. Essa necessidade de fazer uma contextualização de como e porque está sendo possibilitada a representação se dá devido o conhecimento concebido, o qual é norteado por motivações internas e externas. Esse conhecimento consiste de um conhecimento psicossocial, o qual, juntamente com “o modo como ele se manifesta no dia a dia de nossa expressão sociocultural, precisa tornar-se consciente para entrarmos no processo de autodeterminação” (BARON, 2004, p.42).

É com base em Baron (2004) que defendo a idéia de que o teatro possibilita a relação dialética entre as capacidades sensoriais intrínsecas e o nosso corpo-pensante e, de que a nossa história de vida está marcada em nossa pele.

O teatro é fruto de valores morais, éticos e religiosos da época em que é produzido. Ele se torna materialização do pensamento coletivo e a escola, como estrutura, relativamente autônoma, poderia utilizar-se com mais intensidade das potencialidades oferecidas pelas linguagens artísticas, em especial o teatro, sobretudo como estratégia para fomentar o

desenvolvimento de consciências críticas dos seus “criadores de cena” na produção das diversas linguagens artísticas que permeiam a sua realidade.

A construção do(s) sentido(s) visada pela história de vida como elemento criativo de cena constitui uma leitura de mundo coletiva na qual poderão ser explorados diversos elementos como: personagens, estrutura da ação dramática, tempo, espaço, objetivos cênicos e discurso. Essa análise possibilita detectar as potencialidades educativas do teatro. Quanto mais diversificado for o plano discursivo da obra, autor, narrador e personagem, maior será a dimensão estilística e dialógica fundamental para o surgimento da criação criativa.

Por isso, não é possível afirmar que a leitura seja real, pois cada criador tem uma simbologia para trazer sua história para cena em diálogo com o texto, como é o caso da cena da cigana no espetáculo Pareserumano: a mulher senta-se perante seus baús e lê várias cartas; lê trechos de cada uma a cada dia do espetáculo. Por meio das cartas, a criadora discute a sua constituição de ser humano e, então, dialoga com alguém da platéia, como se pedisse atenção daquele espectador para o seu momento de vida.

No documento VERA SOLANGE PIRES GOMES DE SOUSA (páginas 81-87)