Capítulo 3. O retrocesso ambiental brasileiro: a história de uma crise
3.2. A história do Estado de Direito no Brasil e de como (não) se consolidou a democracia (nem a proteção ambiental)
Streck e Morais narram que foi na segunda metade do século XIX que o Estado de Direito emergiu. Primeiramente na Alemanha, e, depois na França, em ambos, “como um debate apropriado pelos juristas e vinculado a uma percepção de hierarquia das regras jurídicas com o objetivo de enquadrar e limitar o poder do Estado pelo Direito”
236.
Neste sentido, a partir daí pode-se dizer que a atuação estatal passa a se dar através das regras jurídicas, impondo-se ao Estado ao Direito:
A atividade estatal apenas pode desenvolver-se utilizando um instrumental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim como, os indivíduos – cidadãos – tem a seu dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva do Estado
237 238. Desta forma, no Estado de Direito há a supremacia da lei sobre a gestão estatal. O grande diferencial, no entanto, está não apenas na organização jurídica que se ampara na hierarquia das leis, mas especialmente no conjunto de direitos fundamentais que se somaram a ele:
O Estado de Direito não é mais considerado apenas como um dispositivo técnico de limitação do poder resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas. O Estado de Direito é, também, uma concepção de fundo acerca das liberdades públicas, da democracia e do papel do Estado, o que constitui o fundamento subjacente da ordem jurídica
239.
O Estado de Direito então, se apresentará como liberal, social, e, ao final, como democrático, classificação que não deve ser tomada de forma pragmática, mas, que se constrói a partir da inserção em uma realidade histórico-sócio-cultural-política.
236 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000. p. 83.
237 Até então o direito era apenas um instrumento do Estado (Estado de Polícia), ou, agia como limite e condição do agir administrativo sem, no entanto, estar numa posição hierárquica privilegiada (Estado Legal).
238 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p.84.
239 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000. p.85.
Entendo que o estudo acerca dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, que perpassam ao longo de todo este trabalho, torna necessária a compreensão do Estado e de seu papel, porque Estado e Direito estão intrinsecamente ligados:
O Estado configura-se como uma organização de caráter político que visa não só a manutenção e coesão, mas a regulamentação da força em uma formação social determinada. Esta força está alicerçada, por sua vez, em uma ordem coercitiva, tipificada pela incidência jurídica.
O Estado legitima seu poder pela segurança e pela validade oferecida pelo Direito, que por sua vez, adquire força no respaldo proporcionado pelo Estado
240.
Portanto, pode-se afirmar que um modelo diferente de Estado leva a uma nova atuação do Direito. Assim, hoje, a figura do Estado está diretamente relacionada à dignidade da pessoa humana, aos direitos fundamentais, e, logo, ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Isto se revela fundamental no que se refere à dignidade da pessoa humana, porque quando da sua incorporação ao discurso jurídico, passou a ser compreendida como uma construção histórica legada ao constitucionalismo. O ser humano tornou-se destinatário dos direitos decorrentes da dignidade da pessoa humana em razão da ordem constitucional e não mais por motivos religiosos ou inerentes à sua existência.
Logo, a evolução da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais está diretamente ligada à evolução do Estado. Quer dizer que, se o Direito é o discurso que legitima o Estado e seu poder, pode-se afirmar que a evolução da dignidade da pessoa humana está invariavelmente ligada ao modo como os direitos fundamentais foram sendo interpretados ao longo da evolução do próprio Estado de Direito.
Uma vez que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito fundamental concretizador da dignidade da pessoa humana, me parece claro que o modelo adotado de Estado irá também influenciar como se comporta a proteção ambiental.
240 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2003, p. 74.
No que diz respeito ao Estado Liberal, fundado na ideia de liberdade, este restringia o Estado ao papel de guardião da ordem pública, uma vez que deveria interferir o mínimo na vida em sociedade:
Estado liberal é assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder político tanto internamente, pela sua divisão, como externamente, pela redução ao mínimo de suas funções perante a sociedade
241.
Streck e Morais observam ainda que a este modelo de Estado cabia o
“estabelecimento de instrumentos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvimento das pretensões individuais, ao lado das restrições impostas à sua atuação positiva”
242. Consagraram-se, portanto, os direitos com noção individualista, estabelecendo uma restrição à atuação do Estado
243.
Portanto, neste modelo se revelam os direitos civis e políticos – nominados direitos de primeira geração na teoria geracional - os quais, se apresentam como direitos de resistência perante o Estado, mais especificamente como “direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder”
244 245. Daí porque no Estado Liberal a dignidade da pessoa humana é considerada como limitadora das ações do Estado e da sociedade, visto que nessa concepção a dignidade resta protegida na medida em que o ente público deixa de se intrometer nos assuntos privados.
No Brasil, as Constituições de 1824 e 1891 foram assumidamente influenciadas pelo modelo liberal. A Constituição de 1824
246, em mais de um
241 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 36.
242 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000. p. 88.
243 A respeito do surgimento do Estado Liberal, Schäfer afirma: “Natural, portanto, que as primeiras concepções formais de direitos tivessem por objetivo a proteção do cidadão frente ao Estado absolutista (Leviatã, na concepção clássica de Hobbes), pois a liberdade afigura-se como pressuposto para o exercício de outras faculdades constitucionais” (SCHÄFER, Jairo. Classificação dos Direitos Fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitário - uma proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.31).
244 SARLET, Ingo W. A eficácia dos Direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
p. 46.
245 Bastos afirma que quanto ao Estado Liberal, “seu pressuposto fundamental é o máximo de bem-estar comum atingido em todos os campos com a menor presença possível do Estado” (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, p.
139).
246 Schwarcz e Starling contam que a Constituição de 1824 foi elaborada em apenas 15 dias. Segundo as autoras, “o documento seguia o modelo liberal francês, prevendo um sistema representativo baseado na teoria da soberania nacional”. É importante, no entanto, lembrar que esta Constituição surgiu de uma imposição do imperador logo após dissolver a Assembleia. Assim, “com toda sua