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3.2 “Foucautear o que há de bom” ou de como as paralelas se encontram na infinita highway da AD

3.3 História, memória e interdiscurso

Diga qual a palavra que nunca foi dita (Milton Nascimento)

Para Courtine (2006, p. 88), o discurso político é um lugar de memória e a memória é um poder. O autor toma de empréstimo um termo de Nora, que assim define o lugar de memória:

O que nós chamamos de memória é, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar [...]. À medida que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar prova em não se sabe que tribunal da

história. (NORA, 1993: p. 15).43

No entanto, quando Courtine (1999a, p. 72) discute a questão da memória, ele o faz na perspectiva do que chama de memória discursiva. Partindo do ponto de vista do enunciado como “acontecimento discursivo”, a memória discursiva é concebida, pois, como a articulação entre singularidade e repetição. Tudo que é dito é necessário que já tenha sido dito, sendo que esse dizer jamais é repetido. É necessário que algo já tenha sido dito e esquecido, apagando-se certos sentidos para assim, ressurgir e fazer outros sentidos. O que ouvimos, pois, são apenas ecos, fragmentos de coisas já-ditas. “O novo não está, pois, no que é dito, mas no acontecimento à sua volta.” (FOUCAULT, 2000, p. 26).

O sujeito que enuncia o faz de um lugar social, sócio-histórico, funcionando como porta-voz dos discursos. Daí deriva a ilusão de univocidade do sujeito e das formações discursivas. No entanto, essa univocidade é desfeita no momento em que se inicia o trabalho de desenredar os fios decontínuos e ininterruptos tecidos pelos discursos. Isso quer dizer que as formações discursivas não são homogêneas, ao contrário, elas são traspassadas, entrecortadas por saberes/dizeres produzidos em outras regiões, cujos sentidos são deslocados, dialogam, parafraseam-se, transformando-se, reelaborando-se, fazendo com que todos os trajetos de uma região a outra pareçam possíveis. Elas são recuperáveis por meio do interdiscurso, da memória discursiva, definida por Pêcheux (1999a, p. 54) como:

Aquilo que, em face de um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré- construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc), de que sua própria leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. (aspas do autor, grifos nossos).

Assim, todo dito é um já dito em outro lugar, que atua de forma decisiva no processo de memória/esquecimento, responsável pela ativação de determinadas representações, culturalmente construídas, arquivadas numa memória discursiva, cultural, sócio-histórica e responsáveis pela produção e interpretação dos efeitos de sentidos produzidos nos diversos enunciados. Para Courtine (1999, p.16):

A memória concerne à existência histórica do enunciado, no seio de práticas discursivas [...], capaz de dar origem a atos novos, no sentido de que toda a produção discursiva acontece numa conjuntura dada e coloca em movimento formulações anteriores já enunciadas.

Para Pêcheux (1999, p. 56), a memória não pode ser concebida como um esfera plana, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório. Ao contrário, a memória é necessariamente um espaço móvel de divisões, disjunções, deslocamentos e retomadas, conflitos de regularização. Um espaço de desdobramentos, réplicas polêmicas e contra-discursos.

É, pois, considerando os dois folhetos de cordel como “acontecimentos a ler” que os analisamos na perspectiva discursiva, cujos sentidos são tecidos considerando que possuem uma memória e uma atualidade, sendo, pois, esse aspecto que constitui esses documentos como “monumentos”. Segundo Foucault (1999a, p. 54), todo enunciado atua no domínio de memória que constitui a “exterioridade do enunciável para o sujeito enunciador na formação dos enunciados ‘pré-construídos’ de que sua enunciação apropria-se.”

A memória, na perspectiva da AD não é concebida, pois, no sentido psicológico, de memória individual, mas presumida pelo enunciado enquanto inscrito na história.44

Até o século XIX, a noção de história relacionada à língua pressupunha sempre uma dimensão temporal, expressa na forma de cronologia e/ou de evolução, acentuando um forte sentido de exterioridade de uma com relação à outra: a língua como produto da história, por exemplo. A partir da própria fundação da Lingüística como ciência, com a noção de língua como sistema, já não é mais possível colocar a história como algo exterior, complementar ou em relação de causa e efeito com o sistema lingüístico. Com a Análise do Discurso, essa relação umbilical da língua com a história é aprofundada, tornando-se

constitutiva. Quando se pensa numa temporalidade, na perspectiva da AD, trata-se de uma

temporalidade interna, ou seja, não se pensa a história como algo exterior que “se reflete” no texto. Não se parte da história para o texto, como nas análises de conteúdo, mas se considera o texto como materialidade histórica. Trata-se, pois, de verificar, não a historicidade refletida no texto, mas de compreender como a materialidade verbal (ou imagética ou sonora, dependendo do corpus a ser analisado) produz sentidos, conforme afirma Orlandi (2004, p. 55): “são, pois, os meandros do texto, o seu acontecimento como discurso, a sua “mise-en-ouvre”, como dizem os franceses, ou, como podemos dizer, o trabalho dos sentidos nele, que chamamos historicidade.”

44 Sobre as relações da abordagem foucaultiana da Análise do Discurso com a história, ver GREGOLIN, M.R.

Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In: FERNANDES, C.A e SANTOS, J.B.C. Análise do Discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2004a.