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2 Escavando o solo teórico

1. Quando relacionada ao processo de produção, a ideologia é um processo, cujos conceitos operatórios são descolados de sua seqüência operatória e

2.2 O lugar da Análise do Discurso 1 Análise do Discurso e Lingüística

2.2.3. O Materialismo Histórico no posto de comando

Pêcheux era um intelectual que levava a sério a ontológica premissa marxista de que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, diferentemente cabe transformá-lo.” Pertencia ao Partido Comunista Francês e não diferenciava a luta teórica da luta política. Embora fosse um leitor atento de diversas fontes do marxismo, fora, como várias outras figuras importantes do Estruturalismo/Pós-Estruturalismo francês, aluno de Louis Althusser de quem trouxe para o projeto da AD a teoria das ideologias.

Para compreender o posicionamento de Althusser, é necessário desenredar a teia das questões históricas, políticas e teóricas na qual ele estava envolvido. A Revolução Bolchevique que transformou a Rússia tzarista na poderosa União das Republicas Socialistas Soviéticas serviu de inspiração e norte aglutinador para várias gerações de comunistas e socialistas das mais diversas matizes no mundo inteiro. No entanto, a partir da década de 50, o primeiro “país socialista”31 do mundo começava a mostrar, aos olhos do mundo, a face do

30 Sobre as relações da Análise do Discurso com a Psicanálise, ver LEITE, N. V. A. Psicanálise e Análise do

Discurso - O acontecimento na estrutura. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1994; CORACINI, M.J.;

GRIGOLETTO, M.; MAGALHÃES, I. (Org.). Práticas identitárias: língua e discurso. São Carlos: Claraluz, 2006 e MARIANI, B. A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e psicanálise. Editora Claraluz, 2006.

31 As aspas nessa designação da ex-URSS, extensivas a todos os outros países que fizeram revoluções socialistas dizem respeito ao fato de alguns teóricos marxistas não considerarem que esses países concretizaram os postulados essenciais de Marx, a começar pela própria impossibilidade, segundo Marx, de se construírem “ilhas socialistas”, citando como exemplo, a Comuna de Paris. Considerando que o capitalismo é um sistema mundial, o sistema que o substituiria ou seria mundial ou não seria socialista. Léon Trotsky atribuía à então URSS, China, Cuba, etc, a denominação de “Estados operários burocratizados” por considerar que tais países haviam passado por uma revolução econômica (estatização e coletivização da produção, etc), mas não por uma revolução política, visto que, segundo o autor, o poder político pertencia não mais aos trabalhadores em seus

chamado “socialismo real”. Os expurgos stalinistas, denunciados por Nikita Kruchev, os

gulags32 produziram uma crise sem precedentes entre aqueles que reivindicavam o marxismo,

associado, não sem uma grande dose de equívoco, ao stalinismo. De acordo com Althusser, tais acontecimentos não estavam relacionados com a aplicação do marxismo na prática. O problema, para ele, residia no equívoco de interpretação dos textos de Marx. Por isso, os títulos das suas obras desse período: Pour Marx, Lire le Capital, etc. Para Courtine (1999b, p. 13) tratava-se de que os intelectuais podiam participar da luta de classes, sem muito ônus, visto que ela agora se dava no plano teórico.33

Althusser opera uma releitura de Marx, no tocante à questão da ideologia, concebida em Marx como “falsa consciência”. Na primeira parte de Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (1974), Althusser afirma que, numa sociedade de classes, para manter a sua dominação, a classe dominante gera mecanismos de perpetuação ou de reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração. Essa dominação se efetiva, pois, através de dois mecanismos, os quais, em síntese, dizem respeito aos mecanismos de operação da ideologia: a) os ARE (Aparelhos Repressivos do Estado) – o Exército, a Polícia, a Justiça etc., e os AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado) – a Igreja, a família, a Escola etc. Para a descrição do funcionamento da ideologia, Althusser formula três postulados:

a) A ideologia representa a relação imaginária de indivíduos mantém com suas reais condições de existência;

b) A ideologia tem uma existência porque existe sempre num aparelho e na sua prática ou suas práticas e

c) A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos.

Assim, para Althusser, “a ideologia exprime sempre, seja qual for a sua forma (religiosa, jurídica, política) posições de classe” (op. cit, p. 23).34

Foi, portanto, com base na concepção althusseriana de ideologia que Pêcheux elaborou a sua teoria do discurso, relacionando-o a um exterior ideológico. Para Pêcheux (1975), a região do materialismo histórico interessante à teoria do discurso é a da organismos de decisão coletiva direta: os soviets de deputados operários, mas a uma casta burocrática configurada no Comitê Central do PCUS.

32 Campos de concentração onde ficavam os opositores do regime stalinista.

33 Nesse mesmo texto, na página 16, o autor faz uma crítica à questão dos aparelhos de Althusser, em duas perspectivas: a) No mesmo momento em que [Althusser] escrevia, a classe operária à qual ele se referia estava desaparecendo. Reconfigurações econômicas, “contra-revolução” e êxodos industriais, transformação do comportamento político e mutação da identidade cultual dos operários [...] tornavam caduca a análise de Althusser e b) Em pleno desenvolvimento do aparelho audiovisual de informação, na véspera do reinado das imagens, é para a Escola que Althusser dá o papel de “aparelho ideológico dominante”.

34 Sobre o lugar de Althusser na Análise do Discurso ver o item Sete Anotações Sobre uma Figura Nuclear:

“supraestrutura ideológica,”35 ligada ao modo de produção dominante numa dada formação social. A interpelação ideológica consiste em fazer com que cada indivíduo seja levado a ocupar “um lugar” nessa relação de classes. Isso ocorre sem que ele tenha consciência desse processo, ao contrário, com a impressão de que é mestre do seu discurso. Tal concepção de instância ideológica atua fortemente na constituição do indivíduo enquanto sujeito.

Assim, em um dado momento histórico, as relações sociais podem caracterizar-se pelo afrontamento de posições ideológicas na forma de aliança, antagonismo ou dominação. Essa disposição de posições vai constituir as formações ideológicas, definidas por Haroche et al (1971, p. 102) como:

Um elemento (determinado aspecto na luta dos aparelhos) susceptível de intervir como uma força confrontada com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em um momento dado; cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito.

É, pois, nesse marco, em que, a princípio, institui-se a noção de formação discursiva de Pêcheux et al. Para esses autores, sendo o discurso um dos aspectos materiais da ideologia, a formação ideológica teria, por conseguinte, uma ou mais formações discursivas, dependentes de condições de produção específicas.

Foi, portanto, com base na concepção althusseriana de ideologia que Pêcheux elaborou a sua teoria do discurso. Entretanto, em vários dos seus textos, Michel Pêcheux afirma que o conceito de formação discursiva com o qual trabalha é emprestado de Foucault. No entanto, essa transposição não ocorre, de forma linear, tranqüila e contínua, visto que Foucault estabelecia as relações entre os dizeres e os fazeres, apontando para a não-autonomia das práticas discursivas. Foucault não trabalhava com as questões de luta de classes e ideologia na mesma perspectiva do marxismo, concebendo as formações discursivas não em termos de ideologia e luta de classes, mas em termos de saberes/poderes.36

35 Segundo Marx, a sociedade é sedimentada de forma piramidal em infra-estrutura, estrutura e supra-

estrutura. A infra-estrutura são os meios de produção: as máquinas, as matérias-primas, a força de trabalho; a estrutura é o mecanismo pelo qual os homens se dividem para produzir os bens materiais, o que caracteriza uma

formação sócio-econômica, ou o modo de produção (feudal, existência de servos e senhores; capitalista - proletários e burgueses etc) e a supra-estrutura que são o conjunto de crenças, idéias, etc, as quais refletiriam, segundo Marx, em ultima instância, posições de classe. In BOGTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento

Marxista. Rio de Janeiro, Zahar, 1988.

36 Ver GRANGEIRO, C.R.P. Michel Pêcheux e Michel Foucault: diálogos necessários sobre formação

discursiva, sujeito e identidade. ANAIS do Simpósio Internacional Michel Foucault: perspectivas.