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HISTÓRIAS, PESSOAS E DIZERES: O APRESENTAR INESGOTÁVEL DO SER

As discussões relativas ao outro analfabeto entram em questão nesta etapa do trabalho, seguindo debates que possibilitaram reflexões a respeito de temáticas como identidade, exclusão, representação e alteridade. O campo se faz fértil, agora, para questionar-se a respeito deste outro que não sabe ler e escrever, sobre os modos como negociam e constroem formas de ser e de estar no mundo e, também, sobre as possibilidades de acolhimento de sua alteridade.

Os percursos trilhados por ocasião da pesquisa realizada no curso de Mestrado levaram-me, como já me referi em outra etapa da tese, ao solo nortense. São José do Norte foi o ambiente que me solicitou uma visão crítica que pudesse ser capaz de compreender elementos da cultura daquele específico povo. Ali pisei, tendo como companhia os teóricos com quem, ao longo do curso, fui dialogando e que me possibilitaram a apropriação de conhecimentos relativos à cultura, à identidade e ao alfabetismo.

A cada ida ao município, novos elementos sobre suas particularidades culturais emergiam aos meus olhos e iam-se revelando a partir do contato próximo com as pessoas que ali viviam, da escuta de suas falas. Banhava-me do jeito “nortense” de ser, mergulhava nos mares de suas projeções sobre si próprios e compreendia sua convergência, segundo minhas análises e de acordo com muitas das pessoas entrevistadas, para a definição de um povo submisso e, diria até, alienado.

Não foram apenas estas, porém, as representações emergentes. Também salientou-se, na fala de sindicalistas, a consciência de que a produção histórica e social de formas de “ser nortense” é responsável pela construção da dita “realidade presente”. Não desprezam os trajetos passados que foram sendo construídos e que, de uma forma ou de outra, sempre insinuaram a necessidade de trabalhar no mar ou no campo22 em detrimento de freqüentar os bancos escolares; demonstram a consciência de que suas identidades foram construídas ao longo de um processo que não se materializa somente no presente.

A tensão entre estes modos diferentes de entendimento de si levou-me ao desejo de ampliar análises que digam respeito à compreensão que a população projeta sobre si, focando, especialmente, as pessoas analfabetas. Busquei melhor compreender, assim, de que forma suas falas reproduzem um conceito de inferioridade a respeito deles próprios e em que momentos reivindicam um lugar para si que esteja fora do lugar onde têm sido colocados. Lugares pretendidos, imaginados, desejados. Lugares de sujeitos que projetam seus dizeres sobre o mundo em que vivem e não apenas reproduzem as marcas de uma identidade que lhes foi atribuída.

Foi percorrendo esta questão, que elaborei o questionamento definido como problema de pesquisa: quais as possibilidades de aproximação da alteridade de sujeitos analfabetos, acolhendo suas palavras e distanciando-se de formas de dizê-lo que os nomeiam como “inferiores”?

Joaquim, Catarina, Olga, Davi, Ivana e Júlio. São nomes e, assim como dona Alzira, sobrenomes também. São histórias muito diferentes e muito similares. São desejos, buscas, perspectivas. São frustrações, dúvidas. Vitórias e alegrias também. São mudança e continuidade ao mesmo tempo. São metamorfoses e confinamentos em casulos, ainda não tendo gerado a mudança desejada. Mas desejam mudança? São dúvidas, certezas e também

22 O município de São José do Norte é composto, na sua maioria, de famílias de pescadores e de agricultores,

alguém construído no entremeio de tudo isto. Não são somente o que eu digo, nem tampouco somente o que é por eles expresso em palavras, mas algo original nascido no instante do ato de dizer-se, contar-se, enfim, apresentar-se.

Nesta etapa do trabalho, busco dialogar com as falas destes sujeitos, num sempre movimento de aprimorar minha escuta sobre o que estas pessoas contam, tendo a consciência, porém, de que, pela linguagem escrita, transformarei seus dizeres em ditos e, por isso mesmo, em uma forma não original do dizer. Mesmo assim, desejo manter-me próximo a este, encostando-lhes palavras escritas que sejam as mais fiéis possíveis ao modo como se

apresentaram.

Busco escutar sua apresentação, no sentido levinasiano, e, justamente por jamais cessarem de falar – jamais cessamos de falar!-, não pretendo identificá-los com formas de ser construídas no exterior do próprio ser. Busco-os para além da representação, que, sempre inadequada, dispensa por completo a pessoa e o que há nela de humano, pois supõe que, tendo sua “definição”, já a conhece. Avançar o conhecer para o nível do compreender não é algo possível de ser “proposto” pela representação.

Acolher, diria Levinas, onde o outro é compreendido em seu rosto, um conceito do qual a sociedade contemporânea carece. Muito possivelmente pelo esmaecimento do entendimento de humano do ser, o que é dito sobre o que o outro “é” adquire status de verdade. A idéia, a imagem, a representação passa a constituir-se pela certeza contida no “é”. O outro passa a ser conteúdo, absolutamente já denominado: “é”, na medida das minhas palavras. Dilui-se na representação, assim, o desejo por buscar compreender o outro por meio de suas próprias palavras.

De acordo com Levinas (1980, p.173), “o rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo”. Não poderá ser “visto, nem tocado, porque na sensação visual ou táctil, a identidade do eu implica a alteridade do objecto que precisamente se torna conteúdo”.

O fato de sermos histórias não só pessoais, mas coletivas; de sermos discursos, aponta para o fato de que somos constituídos, também, por meio das formas como temos sido representados ao longo da história (HALL, 2000). Ao mesmo tempo em que identifico o papel que a representação ocupa no que diz respeito ao entendimento da identidade, também busco movimentar-me no sentido de construir argumentos que explicitem suas limitações.

O percurso de análise de toda a riqueza dos dados coletados e materializados, principalmente, no diário de campo e nas entrevistas com os participantes da investigação, possibilitou que importantes emergências fossem percebidas a partir de suas falas e ações. São emergências, poderia dizer, não por terem “surgido” como que de forma inesperada, mas precisamente por expressarem temáticas mencionadas pelos próprios sujeitos da pesquisa e diluídas por entre suas palavras e atos.

Três categorias, em especial, puderam ser identificadas, possibilitando que fossem discutidas aproximações e afastamentos entre as histórias de vida dos participantes e suas percepções de si e do outro. É precisamente sobre cada categoria emergente que discorrerei no presente capítulo, usufruindo um recurso metodológico que possibilita agrupar temáticas referidas pelos sujeitos da pesquisa como um artifício didático para sobre elas discursar.

Sob o título de “Nomes e sobrenomes: olhando-se para além das ausências”, escrevo a primeira categoria, apresentando-a em três momentos. No primeiro, busco escrever a respeito dos primeiros contatos com cada sujeito da investigação, explorando modos singulares de se apresentarem diante de sentimentos que ora expressavam desejo de falar, ora certeza de que em nada poderiam contribuir para este trabalho. No segundo momento, exploro contextos históricos e culturais vivenciados, quando em sua infância e mocidade, pelos sujeitos da pesquisa. Busco tais contextos como modo de melhor compreender suas trajetórias de vida com referência à escolarização. É a partir daí que, olhando para um passado não muito distante, passeio pela época em que a família de cada participante morava no interior do

município, tendo na agricultura o principal meio de sustento. São, assim, nomes e sobrenomes que passam a ser significados por meio de sua contextualização. No último momento, escrevo brevemente a respeito do desejo de “descontinuidade” expresso pelos sujeitos da pesquisa, o que se refere, aqui, à não reprodução do analfabetismo ao longo das gerações precedentes à sua.

A segunda categoria emergente, “O trânsito por entre mundos de letras: alfabetizar-se para quê?”, propõe uma discussão a respeito do desejo de alfabetizar-se expresso pelos sujeitos da pesquisa, explorando suas falas no sentido de “escutar” seus motivos em suas diversas formas de expressão. Aliada a esta discussão, também são exploradas hipóteses levantadas pelos participantes a respeito do “ser alfabetizado” e, assim, as implicações de tais hipóteses na procura por ações concretas que convirjam para o aprendizado da leitura e da escrita. Finalizando esta categoria, são discutidas as limitações que os participantes relacionam ao fato de serem analfabetos. São idéias que se aproximam das representações sociais e que também estão implicadas na construção delas.

“Dos labirintos do não-aprender às trilhas do conhecer” constitui-se a terceira categoria apresentada. São discutidas, na etapa intitulada “a conjugação do verbo não- aprender”, as hipóteses dos sujeitos da pesquisa a respeito do não-aprendizado da leitura e da escrita. Entendo tais hipóteses não somente como suposições mas também como construtoras de realidades. Questões específicas relacionadas à aprendizagem são exploradas a partir das falas e ações dos sujeitos da pesquisa, sendo discutido, também, o significado das passagens dos participantes por programas de alfabetização – ou o desejo de fazê-lo- e as críticas que os próprios sujeitos fazem a respeito do modo como o sistema de ensino é organizado. Como contraponto à “conjugação do verbo não-aprender”, discuto a “pronúncia do verbo conhecer”, explorando falas e ações dos participantes da pesquisa ao valorizarem os conhecimentos que têm.

Busco aproximar-me, ao máximo, da experiência dos sujeitos para sobre elas atribuir palavras que não firam a originalidade de seus significados.

NOMES E SOBRENOMES: