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Histórico do reconhecimento do dano moral

No documento Dano existencial: para além do dano moral (páginas 42-49)

2.2 DOS DANOS EM GERAL: ESPÉCIES NA EXPERIÊNCIA DO DIREITO

2.2.1 Dano Moral

2.2.1.1 Histórico do reconhecimento do dano moral

Algumas definições de danos morais já se reproduziam na doutrina, antes mesmo do seu reconhecimento.

Para Rizzatto Nunes e Mirella Caldeira o dano moral deve ser entendido a partir da definição isolada das palavras dano (estrago), que representa o sofrimento causado a alguém, do qual advenha um prejuízo que diminua o patrimônio da pessoa contra a qual o dano foi causado; e moral, que está fora da esfera

patrimonial do indivíduo. Fazendo referência à alma como componente da intimidade da pessoa, asseveram os referidos autores:

Assim, o dano moral é aquele que afeta a paz interior de uma pessoa, atingindo-lhe o sentimento, o decoro, o ego, a honra, enfim, tudo o que não tem valor econômico, mas que lhe causa dor e sofrimento. É, pois, a dor física e/ou psicológica sentida pelo indivíduo. A imagem denegrida, o nome manchado, a perda do ente querido ou até mesmo a redução da capacidade laborativa em decorrência de acidente, traduz-se em uma dor íntima. (...) O problema quanto ao dano moral era e sempre foi essa falta de objetividade e materialidade (que só existem enquanto dano físico, que- como também se verá- ganha objetividade parcial na forma de dano estético) (NUNES; CALDEIRA, 1999, p.1).

É no campo da lesão aos direitos da personalidade — inatos à pessoa — que o dano moral encontra aplicação objetiva e direta, sendo desnecessária a existência da dor ou do prejuízo. O conceito de dano moral é considerado recente na legislação brasileira, pois, até poucas décadas atrás o único dano reconhecido era o dano patrimonial.

Por isso a necessidade de aqui apresentar um breve histórico evolutivo jurisprudencial que culminou no reconhecimento do dano moral.

O dano moral não estava previsto no Código de 1916, que apenas o fixou, objetivamente, ao tratar dos atos ilícitos. Fazendo com que os doutrinadores se dividissem em duas correntes, aqueles que negavam a existência do dano moral e outra que o considerava indenizável (CAHALI, 2005, p.47).

Para Youssef Cahali, o texto do Código Civil de 1916 admitia a possibilidade de reparação do dano moral, somente nos casos em que a lei previsse a liquidação decorrente de atos ilícitos.

A verdade é que mesmo não estipulada uma cláusula geral de reparação do dano moral, este se encontrava inserido nos artigos 1.537, 1.538, 1.543, 1.547, 1.549 e 1.550 do CC de 1916, demonstrando ser ínsita a ideia da indenização por dano moral.

No ano de 1913, o Agravo nº 1.723, que tratava de verificar o quantum indenizatório, decorrente de acidente ferroviário, que resultou na morte da vítima, foi submetido à análise do Supremo Tribunal Federal. Que julgou inicialmente o agravo no sentido de conceder a indenização por dois danos, o material e o moral. Decisão esta que, em 26 de junho de 1915 foi reformada por acórdão, excluindo da indenização o dano moral (MONTEIRO FILHO, 1995, p.3).

O Ministro Pedro Lessa teve seu voto vencido ao defender que a lei estabelecia uma indenização aplicável a todos os danos causados à pessoa, demonstrando ser possível a indenização por dano moral. Afirmou o ministro que, a dificuldade em

quantificar o dano, derivava apenas do desconhecimento do julgador em relação aos parâmetros a serem utilizados em tal aferição. Segundo o Ministro os argumentos do Tribunal não poderiam ser utilizados como escusa a não indenização do dano moral.

O estudo jurisprudencial sobre o tema foi retomado pelo Supremo Tribunal Federal em novembro de 1942. Mesmo não deferindo a indenização por dano moral, a Corte indicou a possibilidade futura de seu reconhecimento, no voto em que foi relator o Ministro Orozimbo Nonato. Neles não se incluindo o caso de homicídio. “Porém, o princípio da reparação do dano puramente moral foi abrindo caminho, triunfando na doutrina e se inserindo nos Códigos” (RF, 1942, pág. 477).

A tese da ressarcibilidade do dano moral continuou sem guarida até mesmo em momentos históricos, como o célebre caso decidido no RE n.º 42.723–MG, conhecido como o caso dos "irmãos Naves".

Tratou-se de um processo em que dois irmãos foram presos sob a acusação de terem cometido um crime de latrocínio. A acusação baseou-se no desaparecimento do primo dos acusados, que na última vez a ser visto portava grande quantia em dinheiro, resultante da revenda de grãos adquiridos pelos irmãos Naves. A sentença foi baseada em confissões de culpa obtidas por meio de tortura, tratamentos desumanos e degradantes que resultaram na morte de um dos irmãos. Os acusados foram considerados culpados pelo crime que jamais cometeram, pois o suposto primo falecido apareceu.

O acórdão foi proferido em audiência pública no dia 2 (dois) de setembro de 1959, pela 1a. Turma do STF, e teve a seguinte ementa.

Recurso extraordinário; seu desprovimento. Juros compostos; quando são admissíveis. Dano Moral – inadmissibilidade do seu ressarcimento perante o nosso direito (RE n.º 42.723–MG, de 1959, p.45).

Apenas em setembro de 1952, o STF reconheceu a indenização por dano moral, nos casos de deformidades causadas à vítima (art. 1.538, § 2°, do CC). No caso concreto os danos morais foram relativizados por ser a vítima uma mulher casada.

Deformidade, dano moral, indenização em hipótese de deformidade ocasionada por acidente de trânsito, indenização em forma de alimentos, direito civil. Ainda que em princípio, não seja a nova lei contrária a indenização por dano moral, em caso de deformidade regula a hipótese o art. 1938 parágrafo 2 do Código Civil. Deverá a indenização ser paga em forma de alimentos, tal como dispões o art. 911, do Código de Processo Civil, com a redação que lhe deu o n. 8.570, de 8 de janeiro de 1940 (RE nº19272, 1952, p.50).

O caso versava sobre o pedido de indenização de uma mulher casada que viajava como passageira em um bonde da Companhia Cantareira e Viação Fluminense, por imperícia do motorneiro ao realizar uma manobra rápida, terminou por ser projetada para fora do bonde, sofrendo esmagamento de sua perna esquerda, que precisou ser amputada.

A ação foi julgada procedente na primeira e segunda instância, tendo sido a empresa ré condenada a pagar a indenização, em caráter de pensão, mediante juros de apólices a serem adquiridas por ela, em nome da vítima, atribuindo o Tribunal de São Paulo caráter de alimentos à indenização.

Como em grau de apelação o Tribunal negou que o montante indenizatório pedido fosse pago de uma só vez, no lugar de pensões, a autora ingressou com o Recurso Extraordinário 19.272 – DF no STF, pleiteando o pagamento de indenização por danos morais, em forma de indenização global, tomando como base a média da vida humana.

Nesta decisão emblemática, o Ministro Mário Guimarães em seu voto, discorreu um pouco sobre a doutrina do dano moral, questão até então proclamada, mas não aplicada com qualquer freqüência pelas Cortes Superiores.

Já no início de seu voto, mencionou o ministro que não haveria dúvidas que a indenização pelo dano moral satisfaria o reclamo do bom senso da Justiça, principalmente nos casos em que a dor interior causada pelo dano fosse muito superior ao prejuízo patrimonial, merecendo ser reparada. Ou ainda que o próprio artigo 76 do Código Civil (de 1916), já havia incluído como legítimo interesse para propor a ação, os danos materiais ou morais.

Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral. Parágrafo único. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou a sua família (BRASIL, 2017).

Afirmou ademais, que é difícil tarifar os sentimentos de dor ou de prazer e que, no caso do dano moral, não havia como restituir à vítima o seu estado anterior. Declarou que a indenização teria caráter punitivo, como verdadeira pena imposta ao autor do dano que teria de restituir o equivalente, patrimonialmente gasto, com o tratamento da vítima, em conformidade com o artigo 1.538 do CC/16.

Art. 1.538. No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, indenizará o ofensor ao ofendido as despesas do tratamento e os lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente. § 1º Esta soma será duplicada, se do ferimento resultar aleijão ou deformidade.§ 2º Se o ofendido, aleijão ou

deformado, for mulher solteira ou viúva ainda capaz de casar, a indenização consistirá em dotá-la, segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do defeito (BRASIL, 2017).

Mas, em se tratando de vítima casada, a última não teve o direito ao dote previsto no §2º do artigo 1.538 do CC.

A “reparação” do dano moral foi arbitrada, nela incluída a indenização de quantia correspondente a 4 meses por incapacidade total, valores correspondentes às despesas médicas e hospitalares, consequentes a sua saída do hospital (o valor quanto às verbas do hospital não entrou para a fixação do montante da indenização, pelo fato da mesma ter sido atendida em hospital público).

Restou ainda considerados o valor correspondente a um aparelho ortopédico e o depósito mensal de apólices federais, tantas quantas bastassem para que se produzisse a renda estabelecida pelo acórdão. Por fim, também foi incluída na condenação a obrigatoriedade do pagamento de montante necessário à compra de um novo aparelho ortopédico e mais a sua conservação, no intervalo de 5 em 5 anos. O dano moral, nos termos do inciso V do artigo 5º da Constituição deve ser "proporcional ao agravo". O fundamento do dano moral está na compensação, não possuindo função punitiva. Por ter natureza compensatória não haveria como haver uma fixação prévia, o valor deve ser analisado caso a caso. Para tanto, o juiz deve valer-se do princípio da proporcionalidade, e da equidade em sua fixação.

Já em 26.6.1966 o Ministro Aliomar Baleeiro em seu voto, no RE 59.940- SP, 2ª Turma, sustentou a reparabilidade do dano moral:

Responsabilidade civil. Morte de menor, sem ocupação lucrativa regular, mas que ajudava os pais, de condição humilde. Expectativa justificável de cooperação mais efetiva em futuro próximo. Indenização a ser liquidada por arbitramento (c. C. Art. 1.553). Precedente da 2ª turma: re 59.940 de 1966 (REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA, 1967, págs. 38-44).

O caso versava sobre o julgamento de Ação de Indenização promovida contra a empresa Auto-Ônibus Jundiaí S.A., em que esta fora condenada pela morte de duas crianças, em decorrência de um acidente rodoviário.

A sentença proferida em primeiro grau, apesar de ter reconhecido a culpa da ré, julgou a ação de indenização improcedente, pois ainda que existente o dano moral, no caso concreto, não teria havido qualquer prejuízo econômico para os autores. Decisão esta que fora mantida pelo Tribunal de segunda instância.

O Ministro Baleeiro iniciou seu voto, descrevendo uma passagem da sentença de primeiro grau, sobre a qual se declarou eminentemente contrário:

As vítimas tinham quase 10 anos uma e cerca de 4 anos outra, segundo a sentença, e receberam espírito de solidariedade humana. “ ão há d vida alguma quanto à responsabilidade da Ré pelo evento”, também reconhece a decisão confirmada, cujo ilustre autor entende que não houve qualquer prejuízo de ordem material para os Recorrentes, pais das duas crianças. O dano moral só seria indenizável, - continua- se ocasionasse também dano material, pois o menor é fonte de despesa e não de receita. Não se indeniza a conjetura do auxílio possível no futuro, mas só a perda certa, efetiva e atual (REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA, 1967, págs. 38-44).

O ministro continuou seu voto e defendeu a aplicabilidade do artigo 76 do CC/16 para justificar o reconhecimento do dano moral. Citando o RE 49.960 – MG, em que a Companhia Vale do Rio Doce foi condenada a pagar prestações mensais vitalícias aos pais, mais as despesas do funeral, luto, ainda que a vítima fosse uma criança e que não tivesse idade de fornecer alimentos aos seus genitores.

Muitas eram, à época, as decisões de caráter positivo, que afastariam o caráter negativo dos artigos 1.537 e 1538 do CC/16, não devendo o legislador imputar o absurdo de parecer que os dispositivos contemporâneos entre si, fossem antinômicos (artigos 76, 1.537 e 1.538 do CC/16), já que o direito positivo não vedava a indenização por dano moral. Decidindo pela admissibilidade do RE 59.940 MG, com base no artigo 1.553 em que era prevista a possibilidade de fixação de indenização, por arbitramento, nos casos não previstos no capítulo atinente às liquidações resultantes de atos ilícitos, foi reconhecido, pois, o dano moral.

Dano moral puro. Restituição indevida de cheque, com a nota 'sem fundos', a despeito de haver provisão suficiente destes. Cabimento da indenização, a título de dano moral, não sendo exigível a comprovação de reflexo patrimonial do prejuízo. Recurso extraordinário de que não se conhece por não estar caracterizada a negativa de vigência do art. 159 do código civil e do art. 333 do código de processo civil, tampouco o alegado dissídio jurisprudencial (RE 109233, 1986, pp. 17144).

Nesse recurso extraordinário afirma o Ministro Aliomar Baleeiro em seu voto:

(...) Se o responsável pelo homicídio lhes frustra a expectativa futura e satisfação atual, deve a reparação, ainda que seja a indenização de tudo quanto dependeram para um fim lícito, malgrado pelo dolo ou culpa do ofensor. Perderam, no mínimo, tudo quanto investiram na criação e educação dos filhos, e que se converteu em pura frustração pela culpa do réu. O patrimônio não são apenas coisas concretas, mas o acervo de todos os direitos que o titular deles pode exercitar (1967, p. 60).

Já no julgamento de outro apelo extraordinário, o RE n.º 59.111–CE, o relator Ministro Djaci Falcão, acolheu de forma plena, a tese de que o dano moral é ressarcível.

Responsabilidade civil. Ressarcimento do dano moral. A reparação do dano decorrente de ato ilícito, que haja causado a morte de menor, não se restringe aos limites do art. 1.537 do c. Civil. Impõe-se a indenização por arbitramento, consoante a regra do art. 1.553 do citado diploma (RE n.º 59.111–CE 1967, pp. 568).

O mesmo entendimento foi seguido pelo Ministro Carlos Thompson Flores quando deu admissibilidade ao RE n.º 62.606–MA, do qual foi relator.

Atropelamento. Morte de filho menor. Ressarcimento do dano moral. Admissibilidade, nos termos dos arts. 159, 1.537 e 1.553, do código civil. Procedentes. Recurso conhecido e não provido (RE 62606, 1969, pp. 2881).

Após o reconhecimento do dano moral pelo STF, este tribunal superior passou a apreciar, quase que exclusivamente, os casos versados sobre acidentes. Mas, apenas nos casos em que a consequência do acidente resultasse, concomitantemente, na indenização por danos moral e patrimonial. Ou nos casos de acidentes em que a responsabilidade civil decorresse da condenação por dano patrimonial, em conjunto com o dano estético.

Dos julgamentos acima mencionados, surgiram precedentes que resultaram na Súmula nº 491 do STF, a qual dispõe que "É indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado".

Para fins de fixação dessa orientação, o STF fundamentou que, nas famílias de baixa renda, a morte de filho menor, mesmo ainda muito novo, corresponderia a uma supressão de um potencial valor econômico. Há de se notar que o dano, nestes casos, continuou a ser considerado de caráter patrimonial.

Foi uma forma que o STF encontrou de conceder a indenização por dano extrapatrimonial, de forma implícita, ou seja, sem dizê-lo diretamente.

A jurisprudência do STF adotou o posicionamento de inadmitir a indenização de natureza patrimonial cumulada com a indenização resultante de puro dano moral. A Corte, no entanto, continuava a considerar não indenizável o dano moral quando requerido pelos descendentes ou beneficiários da vítima.

O STF não deixou de reconhecer, no entanto, a indenização nos casos em que houvesse o dano moral puro, a exemplo da decisão do Ministro Octávio Gallotti, no RE 109233- MA, registrando o acórdão a seguinte ementa:

Dano moral puro. Restituição indevida de cheque, com a nota 'sem fundos', a despeito de haver provisão suficiente destes. Cabimento da indenização, a título de dano moral, não sendo exigível a comprovação de reflexo patrimonial do prejuízo. Recurso extraordinário de que não se conhece por não estar caracterizada a negativa de vigência do art. 159 do código civil e do art. 333 do código de processo civil, tampouco o alegado dissídio jurisprudencial (RE nº 109233, 1986, p.246).

Com o advento da Constituição Federal de 1988 foi criado o Superior Tribunal de Justiça que passou a enfrentar e dirimir as questões sobre a indenização por danos morais, julgando por sumular a questão: Súmula nº 37 "São acumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato".

O entendimento jurisprudencial de que o dano moral é autônomo em relação ao dano patrimonial foi se tornando pacífico. O dano moral foi então incorporado como subespécie de dano não patrimonial e passou a representar objetivamente, toda e qualquer lesão aos direitos da personalidade.

A dificuldade quanto à quantificação monetária do dano moral se deu e se dá pelo fato de sua natureza compensatória e não reparável ao status quo ante. O dano Moral tem natureza indenizatória visando ao máximo compensar com fidelidade e exatidão o pretium doloris.

No documento Dano existencial: para além do dano moral (páginas 42-49)